Morador consegue retirar o máximo de pertences possíveis: a roupa do corpo e algumas galinhas“Em nenhuma parte se sacrificaram tão aberta e descaradamente os direitos da pessoa ao direito de propriedade do que nas condições de habitação da classe trabalhadora. Cada grande cidade é um local de sacrifícios humanos, um altar sobre o qual milhares são sacrificados a cada ano ao Moloch da avareza.”

Samuel Laing, citado por Marx no Livro I de O Capital

No dia 17 de janeiro, a ocupação urbana do Pinheirinho em São José dos Campos foi tomada de grande euforia quando uma liminar da Justiça Federal suspendeu a iminente “reintegração” de posse, que colocaria na rua os quase 10 mil moradores residentes na área desde 2004. Todavia, como se vê, a ordem judicial, mesmo estando em vigor, em nada mudou o curso dos eventos que se sucederam. Apesar da ilegalidade, milhares de policiais foram mobilizados para a repugnante desocupação do Pinheirinho.

Desenvolveu-se um verdadeiro massacre, com clara ocultação de feridos e possivelmente de mortos. Milhares de famílias, crianças, idosos e deficientes físicos foram lançados em precários abrigos públicos, sem qualquer garantia. A constituição de nada serviu quando,o que estava em jogo, era o interesse de milhares de trabalhadores. A lei nada representou quando confrontada com os interesses dos proprietários e dos especuladores imobiliários.

Neste caso, tais interesses apareceram personificados na figura do Estado, uma vez que este era o único credor da massa falida da empresa Selecta, a qual reivindicava os direitos sobre a área ocupada. A prefeitura de São José dos Campos e o governo do estado de São Paulo que empreenderam a ação, ambos do PSDB, contaram com a total condescendência do governo federal, encabeçado por Dilma Rousseff, que até o presente momento não moveu um único dedo contra a criminosa desocupação. Seria legítimo se silenciar diante do massacre de milhares de trabalhadores? Porque Dilma e o governo petista com uma ordem judicial em mãos, não fizeram uso de seu poder para paralisar o massacre?

Paradoxalmente, este mesmo Estado, este guardião dos direitos individuais, apresenta-se, hoje, no Brasil, como parceiro – direto ou indireto – de diversas organizações que supostamente lutam por moradia, reforma agrária e até por uma outra sociedade. Querem nos fazer acreditar que uma reforma urbana que solucione por completo o problema habitacional pode ser levada a cabo no interior e a partir do aparato estatal capitalista. Tais organizações caracterizam o governo petista como “progressista”. A pergunta que fica é: Progressista para quem? Provavelmente para os intelectuais, uma vez que encabeçaram no segundo turno da última eleição presidencial uma numerosa lista de assinaturas em apoio a candidatura de Dilma Rousseff, encorpada inclusive por muitos daqueles ditos “marxistas”, temendo perder as migalhas provenientes do governo “progressista” do PT. Já para os trabalhadores do Pinheirinho, assim como, para aqueles expulsos de suas habitações na esteira das obras públicas para a Copa do Mundo e Olimpíadas, ao que parece, não há nenhum progresso.

Para Marx, a questão habitacional além de não possuir solução no interior de uma economia de mercado, tende a ser, neste cenário, permanentemente agravada. Em “O capital” ele dirá que “a conexão interna entre o tormento da fome das camadas mais laboriosas de trabalhadores e o consumo esbanjador, grosseiro ou refinado, dos ricos, baseado na acumulação capitalista, só se desvela com o conhecimento das leis econômicas. É diferente a situação habitacional. Qualquer observador isento percebe que, quanto mais maciça a centralização dos meios de produção, tanto maior a consequente aglomeração de trabalhadores no mesmo espaço; que, portanto, quanto mais rápida a acumulação capitalista, tanto mais miserável a situação habitacional dos trabalhadores.”

Como se vê, Marx não apenas demonstra que o problema habitacional é constituinte do capital enquanto tal, como constata que sua percepção está acessível mesmo para aqueles que desconhecem por completo a real natureza da economia capitalista, uma vez que este problema aparece imediatamente para todos os agentes da sociedade. Neste recente episódio do Pinheirinho fica evidente o papel nada imparcial do Estado, de sua polícia, do executivo, do judiciário. Desvela-se a falácia da cidadania, se desmorona não apenas as casas, mas também o paraíso dos direitos universais do homem. Não por acaso, o massacre do Pinheirinho tem gerado comoção em elementos da mídia burguesa, como comprova o belo comentário realizado pelo jornalista da Rede Bandeirantes Ricardo Boechat, assim como a colaboração do senador petista Eduardo Suplicy. Todavia, outros problemas, como as reformas em curso na universidade pública, como se constata, não atingem a percepção dos intelectuais brasileiros, os quais mediocremente se ajoelham diante das migalhas produzidas pelo “modo petista” de gerir o capital.

Em seguida Marx afirma que a acumulação da riqueza, a construção e ampliação de obras públicas, produz, por seu turno, a especulação imobiliária e a precarização da situação habitacional para a classe trabalhadora: “As “melhorias” das cidades, que acompanham o progresso da riqueza, mediante demolição de quarteirões mal construídos, construção de palácios para bancos, casas comerciais etc., ampliação das ruas para o tráfego comercial e de carruagens de luxo, introdução de linhas de bondes puxados por cavalos etc., expulsam evidentemente os pobres para refúgios cada vez piores e mais densamente preenchidos. Por outro lado, todos sabem que o preço alto das moradias está na razão inversa de sua qualidade e que as minas da miséria são exploradas por especuladores imobiliários com mais lucros e menos custos do que jamais o foram as minas de Potosí”.

Na sequência, é descrito de maneira pormenorizada os problemas habitacionais da Inglaterra industrializada da época, problemas estes que nos parecem, ainda hoje, tão familiares e concluí que “quanto mais rápido se acumula o capital numa cidade industrial ou comercial, tanto mais rápido o afluxo do material humano explorável e tanto mais miseráveis as moradias improvisadas dos trabalhadores”. Neste sentido, a tendência a precarização da situação habitacional, aparece para Marx, como necessária no interior do capitalismo, donde se segue que “devido ao fluxo e refluxo de capital e trabalho, a situação habitacional de uma cidade industrial pode ser hoje suportável para se tornar repugnante amanhã”.

Várias daquelas organizações que buscam sanar o problema habitacional através de parcerias com o estado, também apoiam o “progressista” governo de Cuba. Provavelmente porque este tenha, no último ano, restabelecido a propriedade privada das moradias, permitindo sua comercialização e, sendo assim, a aquisição direta de propriedades. Se Marx tem razão ao afirmar que a situação habitacional está acessível a percepção de qualquer observador isento, talvez possamos dizer o mesmo no que diz respeito a percepção da verdadeira natureza do estado cubano, a luz dos novos acontecimentos.

Seja como for, neste momento, quando centenas de grandes obras são levadas a cabo por todo país, quando a economia brasileira se transforma na sexta maior do planeta – superando a Inglaterra, a terra natal do capital -, agora, com um brasileiro marcando presença na lista dos dez homens mais ricos do planeta; os trabalhadores, por sua vez, amargam as carências mais fundamentais e são brutalmente arrancados de suas próprias casas. Em outras palavras, citando uma vez mais Marx, “a acumulação da riqueza num polo é, portanto, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância, brutalização e degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital”. Como remete a frase citada neste texto, como epígrafe, no Brasil a regra é clara: aos proprietários e altos funcionários do estado, milhões; aos setores médios, as migalhas; aos demais trabalhadores, com um pouco de sorte, as galinhas.

Gustavo Henrique Lopes Machado é militante do PSTU e cursa História na Universidade Federal de Minas Gerais. Artigo publicado originalmente no Diário Liberdade