Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

Wilson Honório da Silva

Esta foi uma semana particularmente dolorosa para o mundo das artes e da cultura brasileira. No dia 30 de abril, perdemos Beth Carvalho. No dia 2 de maio, foi a vez de nos despedirmos de Antunes Filho, um dos principais e mais importantes nomes do teatro nacional.

Ambos tiveram vidas longas – Beth morreu aos 72 anos e Antunes, aos 89 – e carreiras ultraprodutivas, construídas durante décadas de dedicação aos seus ofícios. E, com certeza, estão entre aqueles e aquelas que serão imortalizados, seja na voz do povo, seja nos palcos país afora.

Contudo, o fato de terem saído de cena neste exato momento ganha um significado todo especial. Beth e Antunes não só foram figuras excepcionais e realmente geniais (no sentido original do termo – “aquele(a) que dá forma à beleza”), mas, principalmente, foram artistas dignos deste título em função de terem desempenhado seus ofícios com independência, mas sempre sintonizados com as coisas e a vida do povo; com absoluta liberdade, apesar dos entraves do mercado e com a honestidade e a dignidade daqueles que realmente entendem que a arte e a cultura, como dizia Marx, são fundamentais para o resgate da integridade do ser humano.

Todo o oposto do projeto obscurantista, tacanha, repressivo, retrógado e fundamentalista de Bolsonaro e sua laia. Por isso, já rendemos nossa homenagem a Beth, em um comovente depoimento de Cyro Garcia e, agora, queremos resgatar um pouco da vida e obra de Antunes Filho.

Renovação estética, política e cênica
Os adjetivos associados à carreira, à obra e à personalidade de Antunes Filho são dos mais contraditórios. Generoso e tirânico, genial e delirante, mestre e carrasco são apenas alguns dos termos que sempre foram associados a ele. Contudo, no que refere à História do Teatro, há um palavra que jamais poderá ser desvinculada de seu nome: imprescindível.

Paulista, nascido em 1929 no Bairro do Bixiga, Antunes, depois de uma breve passagem pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, começou sua carreira por volta de 1950, como diretor de grupos amadores. Pouco depois foi convidado para ser assistente de direção no Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, por onde passaram nomes “sagrados” do teatro brasileiro, como Cacilda Becker, Sérgio Cardoso, Paulo Autran, Cleyde Yáconis, Fernando Torres e Fernanda Montenegro.

Neste período, o teatro brasileiro ainda vivia sob forte influência de diretores estrangeiros, como o polonês Ziembinski e italianos como Adolfo Celi, Luciano Salce, Ruggero Jacobbi e Gianni Rattto. Todos eles geniais e que muito contribuíram para nossa história artístico-cultural, mas que, no entanto, por razões óbvias, não eram as figuras ideais para desenvolver uma “dramaturgia brasileira”.

Mas, foi aprendendo com eles que uma geração de jovens encenadores, todos eles pedras fundamentais de nossa dramaturgia, deram início a uma verdadeira revolução nos palcos brasileiros. Nomes que merecem ser lembrados, até mesmo porque, durante a vida, mantiveram um intenso e produtivo diálogo.

A Flávio Rangel (1934-1988) devemos a montagem de um dos maiores e mais potentes gritos de protesto no início da ditadura militar, a peça “Liberdade, Liberdade”, escrita em parceria com Millor Fernandes. Augusto Boal (1931-2009), não só atuou no Teatro Arena, como também ganhou fama mundial com seu Teatro do Oprimido. Antônio Abujamra (1932-2015) foi fundamental para trazer para o Brasil os métodos do teatro “épico” e dialético do alemão Bertolt Brecht. E José Celso Martinez Corrêa, Renato Borghi e Amir Haddad (felizmente ainda “em cena”) nos brindaram com o antropofágico, anárquico e libertário Teatro Oficina.

Cada um deles enveredou por caminhos próprios, mas todos foram responsáveis por renovações estéticas, políticas e cênicas que marcaram e continuam marcando sucessivas gerações de diretores, atores, atrizes, cenógrafos e todos demais envolvidos na cena teatral.

TBC, o Teatro Brasileiro de Comédia

Antunes Filho, em particular, começou a deixar sua marca em um momento-chave de nossa história, com a montagem, em 1964, no TBC, de Vereda da Salvação, de Jorge Andrade (1922-1984) que, aqui, será utilizada como exemplo de seu método e objetivos.

Rigor técnico a serviço da criatividade
O espetáculo baseava-se em um episódio ocorrido, em abril de 1955, na comunidade de Catulé (MG), onde agricultores miseráveis sacrificaram quatro crianças, que acreditavam estar possuídas pelo demônio. A resposta do Estado foi uma violenta e sangrenta repressão.

Para Antunes Filho, essa história trágica serviu como ponto de partida para a discussão de temas como o messianismo e a falta de liberdade e de igualdade na sociedade brasileira, principalmente no meio agrário. Uma situação que poderia (como de fato aconteceu) levar pessoas sem perspectiva de melhoria de vida e sem esperança de “salvação” à “histeria” e ao fanatismo religioso.

Para além da narrativa, “Vereda” foi determinante no que se refere ao método ultra-rigoroso que caracterizou a direção de Antunes e, muitas vezes, literalmente, aterrorizou seus atores e atrizes, que, na montagem original, contou com verdadeiros “monstros” de nossos palcos, como Raul Cortez, Cleyde Yáconis, Lélia Abramo, Aracy Balabanian, Stênio Garcia e Ruth de Souza (que, é sempre bom lembrar, era uma das principais atrizes do Teatro Experimental do Negro, dirigido por Abdias do Nascimento).

Os ensaios consumiram meses de trabalho árduo e exaustivo na busca daquilo que Antunes chamava de um “novo realismo” e “um estilo brasileiro de interpretação”, baseado no “sistema” criado pelo russo Constantin Stanislavski (1863-1938), que revolucionou a interpretação e a representação teatral voltando-se contra o estilo afetado, os textos “declamados”, a representação exagerada e estereotipada e a figura de “estrelas” que ofuscavam as peças.

Não há um ator ou atriz que tenha passado por Antunes Filho que não destaque o quanto o “sistema” poderia ser penoso, principalmente porque, também, se baseava em explorar e expor as contradições íntimas e vivências pessoais dos intérpretes, o que, obviamente, poderia implicar em um doloroso desgaste psíquico e emocional. E se isso não bastasse, a direção de Antunes também exigia muitíssimo do corpo do atores e atrizes, em duríssimo exercícios físicos.

Em contrapartida, não há um único interprete, cenógrafo, roteirista, iluminador etc. que tenha trabalhado com Antunes que não elogie sua tentativa de envolver todos nas muitas etapas do processo criativo. Seu objetivo era formar “atores criadores”. E, para tal, o diretor exigia uma pesquisa intensa e profunda não apenas sobre o texto e a linguagem teatral (cenário, figurino, voz, sonoplastia etc.) que melhor o traduzisse para os palcos; mas, também, sobre o contexto histórico em que foi escrito e como a espetáculo dialogava com o momento da montagem. .

O fato é que sua postura lhe rendeu umas tantas acusações de autoritarismo e o rompimento tempestuoso com muita gente do meio teatral, algo que o próprio diretor comentou em uma entrevista concedida ao Diário de São Paulo, em 4 de março de 1973: “Se massacrar é obrigar o ator a estudar, a assumir responsabilidade do momento em que vive, é fazer do ator o senhor dentro do palco e dentro da história em que ele participa, então, nesse sentido, massacro o ator. Eu o quero independente, eu o quero senhor absoluto do palco (…) o ator terá que ser ao mesmo tempo cientista, artista, físico, matemático, professor de literatura, político e sociólogo. Pode ser meio utópico o que vou dizer, mas o ator será a grande síntese do conhecimento humano. (…) Se mostrar tudo isso ao ator é massacrar, então eu o massacro”.

Com declarou em uma entrevista, em abril de 1979, tudo isto estava a serviço de um objetivo bastante ousado e inovador: “Eu parti da seguinte proposta: tudo o que é romântico não interessa; vamos fazer a realidade, como se nós estivéssemos vendo alguém trabalhando, fazendo alguma coisa”. E, por isso, não é de se estranhar que a montagem de 1964 dividiu o público e a crítica, pouco acostumados em ver atores e atrizes cuspindo em cena, se arrastando pelo palco e atuando sem os exageros expressivos que, até então, vigoravam nas artes cênicas.

Vale lembrar que, em 1993, Antunes fez uma nova montagem do espetáculo, mais uma vez preocupado com aquilo que acontecia não só nos palcos, mas também país afora. Vivíamos, então, mergulhados na lógica individualista, mercadológica e supérflua do neoliberalismo que, nas artes, se manifestava (e continua se manifestando) em produções que, cada vez mais, investiam na “forma” (pensada sob medida pra “encher os olhos” do público e, consequentemente, ter rentáveis bilheterias), em detrimento do conteúdo e da reflexão, resultando em espetáculos completamente esvaziados de sentido.

Como declarou ao Jornal do Brasil, em 30 de agosto daquele ano, a retomada do espetáculo foi um ato consciente de protesto contra esta situação: “Estou espantado com a atual alienação do teatro, só fazem comédias de costumes comerciais ou espetáculos masturbatórios, de um misticismo barato. O teatro virou uma coisa ornamental”. E, por isso, a remontagem, que teve à frente Laura Cardoso e Luis Melo, incorporou outros setores oprimidos que sofriam violentos ataques naquele momento, como os indígenas, os sem-teto, os sem-terra e os presidiários (ainda sob o impacto do Massacre do Carandiru).

Nacional, universal… antropofágico
A “antropofagia” foi uma das sacadas mais geniais dos modernistas da década de 1920. Mais que uma ideia, foi uma proposta teórica em busca da identidade nacional em um país marcado pelo colonialismo e, consequentemente, pela imposição do eurocentrismo como padrão artístico-cultural.

Em poucas palavras, a proposta era, ao invés de copiar o que vinha de fora, assimilar, de forma crítica, as idéias e modelos europeus (entendendo-os como parte da cultura universal) e, como antropófagos (canibais), deglutir as formas importadas para produzir algo que fosse, simultaneamente, nacional e universal. Ou seja, reproduzir o sentido mítico do canibalismo indígena: se alimentar da força e energia do “inimigo”, mesclando com a essência do próprio “ser”, para dar origem a algo novo e ainda mais forte.

Alguns dos nossos mais criativos momentos e movimentos culturais, como a Tropicália, o Cinema Novo e, mais recentemente, o Mangue Beat, beberam desta fonte e na história da literatura, o livro exemplar destas ideias é Macunaíma, escrito em 1928 por Mário de Andrade. E foi exatamente este texto que deu origem a uma das montagens mais célebres de Antunes Filho.

Montada em 1978 pelo Grupo Pau Brasil (mais tarde Grupo de Teatro Macunaíma), não por acaso quando o país começava a fervilhar na luta contra a Ditadura, a peça foi resultado de uma “oficina teatral” realizada com jovens atores durante o período de um ano (contando, inclusive, com a participação de indígenas que auxiliaram os atores a se aproximarem do seu universo cultural) e foi a consolidação de sua proposta da formação de “atores criadores” e da construção de um método de “teatro coletivo e cooperativo”.

Como “prova” do caráter antropofágico do espetáculo e, consequentemente, de sua capacidade de dialogar tanto com aquilo que é nacional quanto universal, o espetáculo ganhou o mundo, sendo apresentado em mais de 20 países da Europa, da Ásia e das Américas, sempre com enorme impacto e abrindo caminho para muitas outras produções brasileiras.

Sempre transitando, antropofagicamente, entre o nacional e o universal, e rompendo os limites do “texto teatral” Antunes e sua trupe “deglutiram” e renovaram alguns dos mais importantes textos do teatro, como também incorporaram em seu repertório peças baseadas em coisas que vão da literatura aos quadrinhos. A lista é gigantesca, mas vale citar alguns exemplos para que se tenha a dimensão desta proposta.

Dentre os brasileiros, um dos nomes mais visitados foi o sempre polêmico Nelson Rodrigues, que teve boa parte de sua obra encenada por Antunes desde os anos 1960. Além disso, o diretor também levou aos palcos textos dos geniais Guimarães Rosa (“A Hora e Vez de Augusto Matraga”), Ariano Suassuna (“A Pedra do Reino”), Lima Barreto (“Triste fim de Policarpo Quaresma”) e Oduvaldo Vianna Filho  (“Corpo a Corpo”),

Em relação aos clássicos do teatro mundial, Antunes colocou em cena versões bastante autorais de “Romeu e Julieta”, “A megera domada” e “Macbeth: Trono de Sangue”, de William Shakespeare; de “Gilgamesh” (baseado no poema sumério, região do atual Iraque, considerado o primeiro texto literário da História); de tragédias gregas (“Fragmentos Troianos”, “Medeia” e “Antígona”) e de autores fundamentais como Arthur Miller (“As Feiticeiras de Salem”), Federico Garcia Lorca (“Yerma” e “Bodas de Sangue”) e Samuel Beckett (“Esperando Godot”).

E, ainda, adaptou histórias dos Irmãos Grimm (“Novas e Velhas Estórias”) e contos de terror (“Drácula e outros Vampiros”). Em todos os casos, o caráter autoral e as pesquisas em torno da linguagem deram origens a espetáculos que dialogaram com o cinema, com a cultura oriental, com a psicanálise, com a cultura popular e com as mais distintas tradições do teatro.

Aliás, no que toca ao cinema, vale lembrar que o único filme dirigido por Antunes, “Compasso de espera”, é, desde sempre, um marco em nossa história, não só por sua qualidade, mas, principalmente, por ser um dos primeiros a escancarar o racismo e desbancar o mito da democracia racial.

Compasso de Espera, incursão de Antunes no cinema

Produzido em 1969, mas só lançado em 1973 (e estrelado por Zózimo Bulbul, Elida Palmer e Léa Garcia), “Compasso de Espera” acompanha a história de um poeta negro, cuja trajetória serve como metáfora tanto para a luta contra o racismo quanto para a luta de classes em geral e, por isso mesmo, é considerado um filme-manifesto contra a herança escravocrata do país e a hipocrisia das elites nacionais.

Mestre para gerações de artistas
Para além de seu legado artístico, a imortalidade de Antunes está garantida pelo excepcional papel que ele cumpriu na formação de gerações de atores, técnicos e demais criadores cênicos através do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), fundado em 1982, em parceria com o Serviço Social do Comércio (Sesc), em relação ao qual Antunes, vale lembrar, sempre manteve uma elogiável autonomia.

Centrado na formação de atores, mas com núcleos de pesquisa sobre cenografia, figurino, iluminação, design de som e dramaturgia, o CPT, promoveu, a partir de 1990, inúmeras jornadas (num projeto intitulado Prêt-à-Porter), com dramaturgias elaboradas pelos próprios intérpretes, com o objetivo de compartilhar seus métodos, processos criativos e técnicas com o público e os profissionais, transformando-se em um dos principais centros de investigação teatral da América Latina.

Por isso, não foi por acaso que, na despedida a Antunes, uma das palavras mais usadas pelas gerações de atores, atrizes e diretores que passaram por seu velório foi “mestre”. E estamos falando de gente que, hoje, é referência para a arte da interpretação, como Laura Cardoso, Juca de Oliveira, Stênio Garcia, Irene Ravache, Pascoal da Conceição, Giulia Gam, Alessandra Negrini, Camila Morgado, Marcelo Tas, Denise Stoklos, Bete Coelho, Roberto Alvim e Cacá Carvalho, dentre muitos outros.

Aliás, foi este último, que viveu Macunaíma na antológica montagem dos anos 1970, que talvez melhor tenha traduzido o significado de Antunes para a nossa história e da sua “saída de cena” no momento atual.

Em entrevista concedida ao Portal G1, Cacá lembrou: “Antunes é raro, porque é um mestre. Mestres nós temos poucos, mestre que transmite o conhecimento, mestre com a sua generosidade e o seu rigor que transmite tudo que sabe ou intui e consegue enxergar em um artista futuro o que está atrás daquela pessoa. Isso não tem preço”.

Um mestre que, ainda, tinha plena consciência do papel da Arte no momento atual, como deixou evidente para Cacá em sua última conversa com o diretor: “Ele me ligou pro meu aniversário, dias antes (…) e me disse ‘não desista’. Eu disse ‘Como assim?’, ele continuou ‘É importante, nós precisamos resistir a isso tudo que está aí, porque ainda virá pior. Nós precisamos de pessoas com força’.”

Evoé, Antunes!
Todo e qualquer um que tenha acompanhado a carreira de Antunes sabe que seus métodos e sua obra são passíveis de inúmeras críticas e que não foram poucos os espetáculos que causavam um “estranhamento” ao ponto da ruptura do diálogo com o público. Como também, sua obsessão pela disciplina, como ele próprio admitiu, muitas vezes podia parecer “tirânica”, o que, evidentemente, lhe rendeu muitos desafetos.

Contudo, independentemente de qualquer coisa, seu lugar na história da arte brasileira está garantido em função daquilo que é essencial na obra de artistas que realmente merecem esse título. Primeiro, seu papel e contribuição para a história do teatro são inquestionáveis. Ele sempre será exemplo de alguém que conduziu sua vida e construiu sua obra alicerçado no honesto e comprometido propósito de colocar seu ofício e sua criatividade a serviço do despertar da consciência e da reflexão.

Segundo, e talvez até mais importante, entre erros e acertos, Antunes nunca perdeu algo fundamental de vista. O fazer-artístico tem que ter o ser humano como centro de suas preocupações e, por isso mesmo, só merece ser chamado de Arte, de fato, aquilo que serve de “veículo” para discutir as dores, dissabores, prazeres e contradições do ser humano.

E, por isso mesmo, não há o porquê se estranhar que o ser humano que esteja por trás das produções artísticas seja ele próprio um poço de contradições. Então, mais do que lamentarmos a morte de Antunes Filho, queremos saudar e festejar sua obra e sua vida com o grito de felicidade, alegria, entusiasmo e exaltação que, desde a Grécia Antiga, ecoa nos bastidores dos palcos: “Evoé, Antunes!”