Nossos erros
Frente à paralisação, tivemos três acertos: defender uma política independente da classe, nos definirmos contra o governo e a Sociedade Rural [1] e termos uma política para separar os pequenos produtores da grande burguesia agrária.

Porém cometemos importantes erros. Seguindo a tradição morenista, uma vez que nos demos conta do erro, o reconhecemos, tentamos corrigi-lo e encaramos a discussão para também aprender com os erros, já que não podemos descartar que voltem a se apresentar situações semelhantes.

Não nos colocamos contra a paralisação
O primeiro erro foi não haver definido qual era o caráter da paralisação. Se favorecia ou ia contra os trabalhadores. Dissemos que a patronal agroexportadora lançou a paralisação porque recusava que diminuíssem seus lucros. Alertamos que os que pagariam com os pratos vazios éramos os trabalhadores, com o desabastecimento e o brutal aumento do preço dos alimentos.

Vimos que nossos irmãos de classe, os superexplorados trabalhadores rurais, não estavam na paralisação e que não havia nenhuma reivindicação a favor deles. Tampouco a paralisação defendia os produtores verdadeiramente pobres, os donos de umas poucas cabras e ovelhas, que são expulsos de suas terras pelos grandes grupos econômicos.

Mas não vimos que tudo isso indicava que essa era uma paralisação reacionária. Que a patronal agrária, para defender seus interesses, atacava a economia operária. Conseqüentemente, não dissemos aos trabalhadores que tinham de se posicionar contra a paralisação.

Isso não significa que teríamos de apoiar o governo. Foi evidente que o denunciamos. Eles têm uma diferença tática com os agroexportadores (a percentagem das retenções [2]), mas têm um grande acordo estratégico, porque a exportação de soja é a “galinha dos ovos de ouro”, não somente da patronal agrária, mas também do governo que tira daí o famoso superávit fiscal. Essa é uma das razões de fundo de por que o perigo de golpe nunca existiu e de por que o governo se cuidou em não utilizar a repressão contra os piquetes. Alguém poderia imaginar três semanas de piquetes operários sem repressão?

Foi correto nos colocarmos contra os dois e chamar os trabalhadores da cidade e do campo a unirem-se em torno a um programa operário para garantir a alimentação que exige: aumento de salário que cubra a cesta básica familiar, carteira assinada para os trabalhadores rurais, provisão de alimentos a preço barato, expropriação dos posseiros, controle de preços pelas organizações populares, Junta Nacional de Carne e de Grãos [3], monopólio do comércio exterior, créditos baratos para os pequenos produtores, sistema de fomento à produção de carne, cereais e laticínios, retenções diferenciadas e coparticipáveis [4], impostos progressivos aos lucros rumo à expropriação dos grandes latifúndios, expulsão da Monsanto.

O apoio aos “pequenos produtores”
O segundo erro foi atuar como se houvesse uma luta dos pequenos produtores e outra da Sociedade Rural (SR). Dissemos que estávamos contra a SR, mas dávamos solidariedade às mobilizações dos pequenos produtores. Participamos de uma marcha cuja consigna era “Nem com o governo, nem com a Sociedade Rural. Apoiamos a luta dos pequenos proprietários”.

Porém não existiu uma luta independente dos pequenos. Houve uma única luta com um único programa: não ao aumento das retenções. E essa luta teve uma direção unificada: a Federação Agrária, a Coninagro, a CRA e a Sociedade Rural [5]. Essa direção lançou a paralisação e essa direção a levantou no ato de Gualeguaychu [6], onde se mostrou a profunda unidade entre as quatro entidades e, inclusive, com os “autoconvocados” [7]. Então, quando apoiamos a luta dos pequenos, estávamos apoiando a única luta que existia: a dirigida pelas quantro entidades.

Foi correto ter uma política para enfrentar os pequenos com os grandes. O que não vimos é que existia uma frente única fortíssima de toda a patronal agrária. Assim o vêem a revista O Federal e Grondona [8], que saúdam a “profunda unidade” que, pela primeira vez na história, se conseguiu no “campo”. Têm razão, é um fato histórico: aqui não se deu o enfrentamento dos produtores pobres contra os grandes latifundiários, como se deu no Grito de Alcorta [9], em 1912, mas pelo contrário: uma luta unificada para defender interesses comuns.

O modelo de monocultura agroexportadora já liquidou grande parte dos pequenos produtores. Porém com a desvalorização e os altos preços internacionais dos grãos, os sobreviventes começaram a ter grandes benefícios. Segue havendo setores endividados e alguns (rancheiros, pequenos produtores de gado) foram parte dos cortes. Contudo, o programa da paralisação não respondia a eles, mas aos que foram o coração da medida: os produtores de soja. E estes, em sua grande maioria, deixaram de ser “produtores pobres”. Basta ver que, hoje, um “pequeno” produtor com 300 hectares em Buenos Aires, Córdoba, Entre Rios, Santa Fé, que não queira correr risco, as pode alugar por US$ 180 mil por ano (US$ 15 mil por mês, sem realizar nenhum esforço).

Por isso, ainda que existam contradições com os grandes monopólios, saíram todos juntos a defender os privilégios que lhes dá o atual modelo. O mesmo que está acabando com a fertilidade da terra e que encarece os alimentos porque (como disse o Mocase [10]) provocou a grande mudança do campo argentino: de produtor de alimentos passou a ser produtor de forragem para o mercado internacional.

Primeiras conclusões
Nossa política foi ambígua. Tínhamos de denunciar a paralisação como um lockout patronal, explicando que os interesses são opostos: enquanto sofremos cada vez que vamos ao açougue, os dirigentes da Federação Agrária levantavam a paralisação aconselhando: “entreguem aos poucos os produtos para que não caiam os preços”

Daí tínhamos de partir para denunciar o governo por aplicar o modelo que beneficia a patronal do campo, garante o saque e provoca o aumento dos preços, exigindo-lhe a aplicação das medidas que mencionamos para garantir a alimentação, começando por um aumento geral de salários para os trabalhadores da cidade e do campo.

Não podíamos apoiar a luta dos pequenos produtores. Ainda que fosse muito difícil, tínhamos de chamar a romper com essa paralisação reacionária e a unirem-se aos trabalhadores para lutar contra o governo, a grande patronal agrária e o modelo que defendem em comum.

NOTAS:
1.
Sociedade Rural: entidade que agrupa os grandes proprietários de terra da Argentina.
2. Retenções: denominação do imposto sobre exportações.
3. Organismos estatais que regulavam as exportações de carne e de grãos e seus preços. Foram dissolvidos durante o governo de Carlos Menem (1989-1999).
4. Retenções diferenciadas são aquelas que aumentam sua porcentagem de acordo com o volume exportado; “coparticipáveis” são aqueles impostos que destinam uma parte de sua arrecadação para as províncias e municípios.
5. Federação Agrária (FAA): historicamente, era a organização dos pequenos produtores, mas, nos últimos anos, foi expressando cada vez mais os interesses dos produtores da “pampa úmida”, muito favorecidos pelas exportações. Confederações Rurais Argentinas (CRA): agrupam um setor de produtores intermediários entre a SR e a FAA. Coninagro: agrupa as cooperativas que processam matérias-primas agropecuárias, algumas delas, como Sancor, é uma das principais empresas fabricantes de produtos lácteos do país.
6. Cidade da província de Entre Rios, um dos principais centros do conflito agrário.
7. Produtores afiliados ou não às diferentes entidades que organizavam e impulsionavam os piquetes agrários.
8. Mariano Grondona é um conhecido jornalista e analista político de direita.
9. Nome com o qual ficou conhecida uma grande luta dos pequenos produtores arrendatários de terra com os latifundiários e as empresas que controlavam o comércio de grãos. Dessa luta, nasceu a FAA.
10. Movimento Camponês de Santiago do Estero, que agrupa pequenos produtores para o mercado interno.