A Alemanha que saiu das eleições é um país dividido. Até mesmo as polêmicas – que atravessam a sensível dissonância ao redor dos variados diagnósticos – sobre o cenário político do país indicam isso. As eleições alemãs, antecipadas em um ano pelo ex-premiê Gerhard Schröder, deram lugar a uma “grande coalizão” entre o Partido Social-Democrata Alemão (SPD) e a direita conservadora – sob a plataforma formada pela União Democrata-Cristã e a União Cristã-Social (CDU-CSU) –, encabeçada por Angela Merkel. Em face ao amplo descrédito das massas alemãs em relação à institucionalidade democrático-burguesa e à ofensiva neoliberal, Schröder decidiu-se pela dissolução do parlamento e subseqüente convocação de novas eleições. Após a aprovação do tribunal constitucional, a virulência verbal marcou a disputa eleitoral entre os principais concorrentes durante o período de campanha. Mas logo foi convertida em discurso de conciliação de interesses.

“O parâmetro que deve guiar nosso trabalho é a solução de problemas. Esse é o critério, e não o cumprimento dos programas eleitorais”, afirmou o Secretário de Organização da plataforma CDU-CSU, Norbert Roettgen. Na verdade, a renúncia ao posto mais alto do governo executivo do SPD a Merkel constituiu o nó górdio das negociações. Em debate pela tv, Schröder chegou a ironizar essa possibilidade que, semanas depois, iria selar o acordo entre os sociais-liberais do SPD e os democratas-cristãos de CDU-CSU. A aparente divergência se desfez rapidamente perante a unidade real no que se refere à necessidade da defesa dos interesses da burguesia imperialista no enfrentamento à classe trabalhadora alemã.

“Cinza é a teoria perante a verde árvore da vida”
Não é casual que Lenin recorra à dialética de Goethe, expressa na frase acima, para afirmar a necessidade de substituir a afirmação peremptória – ou a mera constatação muda da existência de “tendências históricas irresistíveis” – pela “análise concreta da situação concreta” que, segundo insistia, trata-se da “verdadeira substância do marxismo”. A “crise nas alturas” constituída pelas dificuldades em conformar um governo de coalizão burguesa e a expressão superestrutural de uma nova formação partidária à esquerda do SPD – composta pelo descendente do partido estalinista da Alemanha Oriental (Partido Socialismo Democrático ou PDS) e um recém-criado partido de ex-socialdemocratas, dirigentes sindicais e organizações trotsquistas da Alemanha Ocidental (Iniciativa Eleitoral Trabalho e Justiça Social ou WASG) – representam um quadro geral de crise da institucionalidade burguesa no país.

A entrada em cena do movimento de massas na Alemanha – questionando abertamente as contra-reformas neoliberais do governo rubro-verde (SPD e Partido Verde) anunciadas pela “Agenda 2010” de Schröder, em especial a proposta “Hartz IV” de corte do seguro-desemprego – abalou os arranjos de poder. A partir do segundo semestre do ano passado começaram a ocorrer greves espontâneas de advertência, manifestações de massas durante as segundas-feiras e importantes lutas setoriais por reajuste salarial e condições de trabalho que indicam uma tendência à recomposição da consciência e organização dos trabalhadores, em detrimento da burocracia sindical. Evidentemente que o processo eleitoral – hegemonizado pela burguesia – não pode ser mais que a expressão distorcida de um deslocamento do alinhamento de forças. O sentimento de descontentamento e revolta social, em última instância, expressa que o humor das massas manifesta a necessidade de mudanças.

O Velho Continente se levanta
A polarização social cujos pontos mais candentes encontram-se no Oriente Médio e na América Latina vai se estendendo também ao Velho Continente, renhido de greves operárias e manifestações de massas. Na Alemanha esta polarização implica um embate reacionário que busca destruir conquistas históricas do movimento operário e fazer retroceder a situação dos trabalhadores ao período anterior à II Guerra Mundial. Neste marco, as massas começam a pôr em cheque as principais alternativas eleitorais da burguesia. Não só do SPD, mas também a direita democrata-cristã, que ganhou as eleições por uma margem estreita de votos (CDU-CSU 35,2% e SPD 34,3%), aquém de seu objetivo declarado de 45% dos votos e, inclusive, em relação às eleições de 2002. O SPD perdeu 4% e os Verdes 0,5% em relação às últimas eleições, demonstrando o descrédito de suas políticas neoliberais de desmantelamento dos direitos trabalhistas como o seguro-desemprego, a aposentadoria e a assistência médica, além da elevação do índice de desempregados, cerca de 5 milhões, aproximadamente 10% e quase 20% no oeste e leste da Alemanha, respectivamente.

Nesta condição de tensionamento, o chamado “voto útil” e os indecisos foram disputados de forma acirrada, até o último dia das eleições. Enquanto os Verdes tiveram 8,1% e o Partido Liberal (FDP) 9,8 %, a plataforma SDP-WASG obteve 8,7 % dos votos. Mas quem foram os eleitores deste novo partido? Dirigido no Oriente por Gregor Gysi, do PDS, e no Oeste por Oskar Lafontaine, ex-presidente do PSD, ex-Ministro da Economia e recém-filiado ao WASG – de acordo com as pesquisas de instituições como Infratest-dimap e a ARD –, mais de 25% de seus votos vieram dos votos da antiga Alemanha Oriental, e somente 4,9% dos votos do Ocidente. Na sua maioria, seus eleitores são em grande parte trabalhadores (12%) e desempregados (23%), destacando-se onde a taxa de desemprego é alta. Um grande número de votantes (970 mil) mudou seus votos do SPD para o Partido de Esquerda, bem como 430 mil eleitores que não votavam, passaram a votar neste partido.

Qual é a alternativa?
A despeito desta oscilação eleitoral-parlamentar, há um aceso debate entre as forças sociais que se lançaram no movimento internacional contra a Guerra do Iraque e, mais recentemente, na Campanha contra a Constituição Européia. Junto às velhas e novas gerações do movimento operário alemão – que ainda com diferentes formas de apreensão da queda do Muro de Berlim, experienciaram direta ou indiretamente o dito “socialismo real” –, perguntam-se se a acumulação de forças passa, neste momento histórico, pela necessidade de um agrupamento político-partidário da natureza do novo Partido de Esquerda e pela via eleitoral-parlamentar. A institucionalização e burocratização das esquerdas, por um lado, e a ampla deslegitimização da estrutura e funcionamento da democracia burguesa, por outro, podem ser determinantes nesta discussão.

No mesmo mês em que as forças imperialistas atacavam o Iraque, março de 2003, Schröder faz seu mais importante discurso no parlamento alemão lançando seu principal programa, a chamada Agenda 2010: a consolidação do neoliberalismo a este país. Ainda que num primeiro momento se opusesse à guerra – ratificando-a, posteriormente, sob a chancela dos capacetes azuis da ONU – Schröder demonstrou, involutariamente, a relação entre a ofensiva colonial contra as nações oprimidas e a necessidade de superexplorar os trabalhadores das metrópoles imperialistas.

Os sindicatos se encontram divididos. Enquanto IG-Metall e Verdi estão cada vez mais envolvidos, inclusive encabeçando postos dentro do WASG, a central sindical DGB – tradicionalmente ligada à social-democracia – demonstra-se oficialmente cética com a formação de um novo partido de esquerda, e ainda acredita na luta por mudanças dentro do próprio SPD. Em um recente artigo no jornal alemão Frankfurter RundschauWeniger wird mehr sein”, 13/jun./2005), o professor Ulrich Brandt argumenta que alternativas reais não vão surgir somente através de um partido ou um programa que tirarão votos do SPD e dos Verdes; mas sim através da transformação da correlação de forças sociais a partir das lutas diretas de massas e de um projeto histórico contra-hegemônico, sem instrumentalizá-las tão-somente para o calendário eleitoral.

Alemanha, eleições e análise de conjuntura
A “concretude” da situação – segundo a conhecida síntese lenineano – é designada pela especificidade da situação e equivale, no plano da análise, à exigência de que cada configuração histórico-transitória da correlação entre as forças e classes sociais em presença seja examinada na rica inteireza de sua particularidade e ineditismo.

Distinguir os movimentos histórico-estruturais das meras oscilações de conjuntura – ocasionais e imediatas – trata-se de ponto de partida fundamental para a análise marxista de qualquer situação. Enquanto os primeiros têm significado de amplo alcance histórico, os segundos dão lugar a uma crítica política e ideológica do dia-a-dia, que envolve grupos, direções e lideranças imediatamente envolvidas nas estruturas de poder. As mudanças de longo termo efetuadas pelo SPD-Verdes no interior das forças produtivas e nas relações de classe na Alemanha – ampla privatização de telecomunicações/energia e profunda precarização do trabalho de crescentes parcelas dos trabalhadores – determinam, em última instância, o caráter e a dinâmica que assume a presente crise.

A ofensiva burguesa, desta forma, tende não só a continuar, como a se aprofundar cada vez mais. Para além da suposta fragilidade do governo alemão – dividido, profundamente deslegitimado e desde já enfrentado às massas –, este já anunciou a demissão massiva de 10 mil trabalhadores da planta da empresa Mercedes-Benz (Daimler-Chrysler). Não há como prever de antemão se terá condições de conter as massas ou se, pelo contrário, sofrerá reveses dos trabalhadores.

A História se “atualiza” a partir de “situações concretas” – singulares, únicas e irrepetíveis – cuja configuração objetiva deve ser apreendida e “analisada”, de forma acurada, dinâmica e totalizante, se objetivamos interpretar e, por fim, transformar a realidade social.