Riachão preparava um novo disco para ser lançado ainda este ano - Foto: Daniela Carvalho/Divulgação
Roberto Aguiar, de Salvador (BA)

A música brasileira está de luto. O samba perdeu um dos seus maiores mestres, o cantor e compositor baiano Clementino Rodrigues, mais conhecido como Riachão. O sambista morreu no último dia 30, aos 98 anos, por morte natural, em Salvador.

Soteropolitano de nascimento, alma e coração, nascido no bairro do Garcia, iniciou a carreira aos 9 anos de idade, apresentando-se em festas infantis. Aos 12 anos, compôs a primeira canção, mas só gravou seu primeiro álbum em 1960, aos 39 anos: Umbigada da Baleia (disco 78rpm – rotações por minuto).

Riachão foi um dos expoentes da era de ouro do rádio baiano, entre as décadas de 1940 e 1950. Mesmo cantando em trio de seresta, era o samba que ele amava e tinha Dorival Caymmi como grande inspiração. Arrastou outros sambistas para seu lado, alguns dos quais seriam seus parceiros de verso, como Batatinha (1924-1997) e Panela (1944-1999). Juntos gravaram o histórico disco Samba da Bahia, em 1975.

Crônica urbana

Com o sucesso dos programas de auditório e a força que o rádio tinha naquela época, muitos artistas baianos, a exemplo de Dorival Caymmi, mudaram–se para o Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Riachão até foi para lá, mas não para ficar. O sambista sempre teve como meta fortalecer o cenário do samba na Bahia. Seu amor por Salvador e seu povo encontra–se nas letras de suas músicas. Riachão pegava fatos do dia a dia da capital baiana e transformava em música. A canção título do seu primeiro disco, “Umbigada da Baleia”, nasceu após assistir à exposição de uma baleia na praça da Sé, no Centro Histórico de Salvador. A simplicidade da vida na capital é narrada através de seus sentimentos, o que faz de Riachão um cronista musical.

O sambista também incomodou a ditadura militar. Em 1976, Riachão teve um dos seus sambas censurado. A música “Barriga Vazia” tinha a fome como tema, foi proibida de ser gravada e cantada em shows. “Eu, de fome, vou morrer primeiro / você, de barriga, também vai morrer um dia”, dizia a letra que incomodou os militares. Mas no mesmo ano, em show histórico no Instituto Cultural Brasil Alemanha (ICBA), que no período da ditadura se tornou um espaço de resistência, a plateia universitária, entusiasmada, pedia que Riachão cantasse “Barriga Vazia”. O sambista soltou a voz, enfrentou a censura e ganhou destaque na imprensa. O show foi considerado uma provocação aos militares. Na verdade, foi um grito de liberdade.

Carreira

Com esse enorme talento, reconhecido pela crítica, gravado por grandes artistas como Jackson do Pandeiro, que na década de 1950 gravou três canções de Riachão (“Meu Patrão”, “Saia Rôta” e “Judas Traidor”), o sambista baiano não conseguia se inserir no mercado. Em toda sua carreira gravou apenas seis discos, mesmo deixando um legado de cerca de 600 canções entre inéditas e gravadas.

Riachão é dono de clássicos do samba como “Cada Macaco no seu Galho”, lançada em 1972 nas vozes de Caetano Veloso e Gilberto Gil, após o exílio em Londres, e “Vá morar com o diabo”, apresentado em disco em 2000, em dueto com Caetano. Essa canção ganhou sucesso nacional no ano seguinte, com a gravação feita pela cantora Cássia Eller (1962-2001).

Em 2000, Riachão lançou Humanenochum, o seu álbum mais aclamado pela crítica e pelo público. O disco foi indicado ao 3º Grammy Latino, na categoria melhor álbum de samba/pagode. No mesmo prêmio, Riachão foi indicado na categoria melhor compositor pela canção “Vá Morar com o Diabo”, gravada por Cássia Eller.

Seu último disco lançado em vida foi Mundão de Ouro, em 2003. O álbum foi indicado ao 25º Prêmio da Música Brasileira na categoria álbum de samba. Riachão concorreu ao prêmio de cantor do ano.

Futuro

O mais importante membro da velha guarda do samba baiano morreu sem ter a carreira reconhecida como deveria e sem ser homenageado como merecia pela Bahia e por todo o Brasil. Planejava lançar um novo disco em 2020 com o título Se Deus quiser eu vou chegar aos 100, com repertório inédito e autoral. O álbum está sendo produzido pelo sambista Paulinho Timor.

O disco vai ser lançado, mas Riachão não chegou aos 100. Hoje temos o dever de deixar o seu legado vivo. Temos uma dívida com ele, o futuro cobra. Não temos que lamentar a sua morte, temos que agradecer por tudo que fez pelo samba, pela música e pela arte brasileira.

Temos que lembrar de Riachão como um sambista negro, que sempre que teve de lutar na vida, enfrentou o racismo e cantou a vida simples do povo de sua terra, com irreverência e alegria. Ganhou o apelido porque gostava de brigar na rua, quando menino. E assim fez a vida toda.

Por tudo que representa, só temos a agradecer.