A vida no acampamento
Wladimir de Souza

No dia 16 de março, cerca de 200 famílias ocuparam um terreno destinado à especulação imobiliária, em Itapecerica da Serra, grande São Paulo. Rapidamente, milhares de outras pessoas se juntaram à ocupação. Passado pouco mais de um mês, o acampamento João Candido – homenagem ao heróico marinheiro negro, líder da revolta da chibata de 1910 – já tem cerca de seis mil pessoas.

Não há água potável nem luz elétrica. Os banhos são frios. O tempo também esfriou em São Paulo. Há muitas crianças nas ruas do acampamento, improvisando sua própria diversão. No centro, um enorme campo de futebol foi preservado para os poucos momentos de lazer dos sem-teto em meio à luta. Ao lado do campo, uma bandeira com o rosto do líder da revolta da chibata tremula.

O mar de lonas pretas, pontilhado por algumas poucas amarelas e azuis, causa, à primeira vista, impressão de desordem. Logo percebe-se que isso não passa de um engano. Toda a organização, segurança e preparo das refeições ficam sob a responsabilidade de todos os moradores. Os barracos estão divididos em grupos identificados por bandeiras. Tal estrutura resulta numa enorme facilidade para a mobilização dos sem-teto.

Desde o início da ocupação, diversas ações de resistência foram promovidas. Passeatas ao palácio do governo estadual, marchas e atos em Itapecerica, protesto diante da casa de Lula e os bloqueios das rodovias Regis Bitencourt, Raposo Tavares e Castelo Branco são alguns exemplos de ações desse bravo movimento. O objetivo é chamar a atenção para a ausência de políticas sociais que garantam os direitos da população pobre.

Viagem à Periferia
Para chegar à ocupação, é preciso atravessar uma boa parte da periferia de São Paulo. O acampamento faz divisa com a Zona Sul da capital, depois de Capão Redondo, um dos maiores e mais violentos bairros da cidade. A situação da moradia na periferia de São Paulo é marcada pela exclusão, miséria e descaso dos governantes. O déficit habitacional do estado chega a 600 mil moradias. Além disso, a geografia das cidades metropolitanas é quase inteiramente favelizada, como é possível perceber em Guarulhos e Diadema.

Em todo o Brasil, seria necessária a construção de dez milhões de moradias para suprir toda a demanda, mas esse número pode ser muito maior. Segundo o IBGE, entre todas as moradias construídas no Brasil, 18,6 milhões não possuem infra-estrutura básica: falta água, esgoto, luz elétrica, coleta de lixo, etc. Projetando uma estimativa de três pessoas por família, temos 55,8 milhões de pessoas que vivem em condições precárias.

O desemprego e a implementação dos planos neoliberais estão na raiz do problema. Nas últimas décadas, milhares de pessoas foram excluídas do acesso ao trabalho, gerando a ocupação urbana desordenada. Milhões de trabalhadores foram empurrados para as favelas e moradias precárias. A ampliação da pobreza coloca um duro dilema para essas pessoas: se pagam aluguel, não comem; se comem, não pagam aluguel.

Essa é a realidade das pessoas que estão no acampamento João Candido. Grande parte delas vieram de Itapecerica da Serra ou de favelas da região. Sob cada um dos barracões, há milhares histórias episódios desse mesmo drama.

Conversa na cozinha
Em cada grupo do acampamento, existe uma cozinha comunitária. Mais do que um espaço de preparação e consumo de alimentos, são nas cozinhas que se reúnem os moradores para conversar de forma descontraída e para trabalhar. Nossa reportagem chegou bem no momento em que três cozinheiras estavam preparando o almoço. “Hoje vai ter feijão, arroz e macarrão”, anunciou Elaine Fernandes diante de um fogão improvisado. “Aqui preparamos o almoço para mais de 60 pessoas”, disse.

Elaine está na ocupação desde o início. Chegou com seus quatro filhos. “Não temos emprego, vivíamos de bicos e não dava pra pagar o aluguel”, disse. Seu pai se juntou a ela semanas depois. “Ele foi despejado de um barraco em Arujá, aí resolvi trazer ele”.

Quando o acampamento foi construído, as aulas das escolas da região foram suspensas sob ordens da prefeitura. Elaine acredita que o fechamento das escolas foi uma demonstração de preconceito contra os sem-teto e reclama que a medida impediu que seus filhos fossem à escola.

Em outro barraco, em frente à cozinha, está Thiago, 23 anos, sentado numa cama improvisada. Tímido, ele fala pouco. Seus colegas, porém, rapidamente, começam a falar sobre a sua dedicação às atividades do acampamento. Thiago sofre de epilepsia e, recentemente, foi socorrido por seus amigos depois de um ataque. “Agora eu estou tomando os medicamentos” , assegura sob o olhar atento dos seus companheiros.

Ele nos conta que está desempregado, que vivia de bicos, catando latas para sobreviver e desabafa: “ninguém quer contratar alguém que tem ataques epiléticos”. Seus amigos fazem questão de dizer que ele é um dos ativistas mais destacados do acampamento e realiza todos os trabalhos para os quais é destacado. “Arrumei outra família, a militância é minha família agora”, disse com satisfação.

Mais adiante, encontramos o senhor Wilson Silva, 58 anos, ex-operário da construção civil. A história de como ele foi parar no acampamento mostra com toda a crueza como os poderosos tratam as pessoas humildes.

Ele nos conta que trabalhou numa obra patrocinada pelo ex-prefeito da cidade de Arujá, Antônio Carlos Mendonça. “Tínhamos combinado que eu receberia 400 reais por mês, mas ele nunca me pagou, ele só me dava comida e deixava eu viver em um barracão na obra”. Vivendo três anos nessa situação, Wilson relata que foi expulso do barracão que ocupava pelo ex-prefeito. “Ele foi lá e me expulsou com um pedaço de pau e me chamou de ‘vagabundo´ e ‘sem-vergonha´. Me humilhou na frente de todo mundo”, conta com revolta. Sem ter onde morar, seu Wilson acabou parando debaixo de uma das centenas de lonas da ocupação.

A insegurança de cada dia
Por enquanto, as atividades de luta e divulgação do acampamento ajudam a afugentar os jagunços que rondavam a região. No início alguns jagunços estiveram por aqui, mas com o crescimento do acampamento e as atividades de lutas, como as marchas, eles resolveram ir embora”, disse Natália Szermeta, integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), organização que coordena a ocupação.

As ameaças de repressão, contudo, estão longe de terminar. Durante o bloqueio da rodovia Raposo Tavares, um motorista de uma caminhonete Blazer, sem placa de identificação, furou a manifestação, jogando o carro em cima dos sem-teto. Para completar, ele atirou contra os ativistas. Três ficaram feridos e foram levados ao pronto-socorro. O atirador fugiu em seguida, conforme testemunhou a própria polícia.

Como se não bastasse, a Justiça de São Paulo expediu uma liminar de reintegração de posse para ser cumprida até o dia 7 de maio, o que provoca um estado de tensão permanente entre todos os sem-teto.