Leticia Hastenreiter*

Tomou posse do Ministério da Educação (MEC), na última semana, no dia 16 de julho, Milton Ribeiro, o quarto chefe do MEC em um ano e meio de governo Bolsonaro. O pastor presbiteriano de 62 anos assume o cargo já envolto a diversas polêmicas. Em um vídeo gravado durante uma pregação em 2016, podemos ver o novo ministro de educação afirmar que “a vara da disciplina não pode ser afastada da nossa casa”. Ele continua: “Talvez uma porcentagem de crianças muito pequenas, de criança precoce, superdotada, é que vai entender seu argumento. Deve haver rigor, desculpe severidade. E vou dar um passo a mais, talvez algumas mães até fiquem com raiva de mim: devem sentir dor.” Ou seja, o homem que ocupa o cargo máximo da educação no governo brasileiro é um defensor da punição corporal como forma de educar as crianças.

Pastor Milton Ribeiro, novo ministro da Educação (Agência Brasil, Isac Nóbrega/PR)

Nada mais coerente. Por que um governo, como o do Bolsonaro, que prega cotidianamente a violência contra os pobres, negros e negras, indígenas, mulheres e pessoas LGBT, não pregaria também a violência contra as crianças?

O Brasil é o país com as maiores estimativas de maus-tratos contra crianças no mundo, entre cerca de 30 países analisados em um estudo de 2016, realizado pela Sociedade Internacional para a Prevenção dos Abusos e Negligências às Crianças, instituição ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS). Em tal estudo, divulgado por professores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), foram pesquisados dados de abuso sexual, físico e emocional, bem como a negligência física e emocional em regiões de todo o mundo. Se dependermos da vontade do nosso ministro da educação, nunca sairemos deste triste pódio dos maus tratos às crianças.

A violência traz péssimas consequências para o desenvolvimento infantil

Segundo a OMS, a punição corporal se define como o uso intencional da força física contra a criança, que resulta em prejuízo para a sua sobrevivência, para sua saúde, seu desenvolvimento ou sua dignidade. A definição da Organização das Nações Unidas (ONU) é parecida: “qualquer punição em que a força física emitida é destinada a causar algum grau de dor ou desconforto”. Ou seja, envolve bater com a mão, ou mesmo com um objeto (como o chicote, cinto, sapato, colher de pau ou similar), além de chutar, sacudir, atirar, arranhar, beliscar, morder, puxar o cabelo ou orelhas, queimar, forçar a ficar em posições desconfortáveis ou ingerir qualquer elemento, como lavar a boca de uma criança com sabão ou forçá-la a engolir algo quente.

Como se vê, há variadíssimas formas de se punir fisicamente as crianças. E todas elas devem ser rechaçadas. Inclusive a conhecida “palmada”, que pode até não ter a intenção de machucar fisicamente a criança, deve ser considerada uma punição corporal, pelo seu efeito humilhante e degradante.

Há aqueles que, com as melhores das intenções, pensam que a punição física é indispensável para se educar a criança e ensinar o que está certo ou errado. No entanto, em um estudo recente da Academia Americana de Pediatria, revelou-se que estratégias violentas de disciplina não demonstram qualquer benefício em longo prazo. A criança obedece ao comando por um período de 10 minutos, mas, após esse tempo, repetirá o ato que a levou a apanhar.

Nesse mesmo estudo, há a confirmação dos efeitos negativos da punição corporal. Entre eles, pode-se destacar:

– O castigo corporal repetido aumenta a agressividade das crianças e os conflitos entre filhos e pais. O que, por sua vez, pode provocar ainda mais violência por parte dos pais, criando um círculo vicioso de agressão;

– O castigo físico em casa se associa com mais agressões entre crianças a partir dos dois anos de idade;

– As agressões fazem aumentar a chance de que a criança seja desafiadora e agressiva no futuro;

– Crianças que apanham têm maior risco de desenvolverem problemas de saúde mental e de conduta;

– Ter recebido simples palmadas foi associado com mais tentativas de suicídio, alcoolismo e uso de drogas na idade adulta;

– As punições físicas, ou simplesmente os abusos verbais (gritos, ameaças, insultos e humilhações), produzem até mudanças anatômicas no cérebro, que podem ser detectadas mediante exames de imagem.

Ou seja, além de não possuir o efeito desejado, a punição corporal trará inúmeros problemas para a família e, principalmente, para a criança vítima da violência.

Os adultos têm o direito de bater nas crianças?

Dos mesmos criadores de “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” temos “da educação dos meus filhos, cuido eu”. Será que isto realmente é um assunto particular? Não deveria ser.

No Brasil, em 1990, foi publicado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em seu artigo 18 diz: ­“É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor

Em 2014, após a lei que ficou conhecida como “lei da palmada” (lei 13.010/2014), o ECA recebeu o seguinte complemento: “A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los”.

Como se vê, não é um “direito seu”, educar seus filhos na base da violência. Mas, como acreditar que essa lei possa ser respeitada se nem o Ministro da Educação defende esta ideia? E mais: como acreditar que as crianças e adolescentes poderão receber uma educação respeitosa (na escola e em casa) em um país em que os trabalhadores sofrem tanta violência do estado? Seja a violência física, praticada pela polícia aos negros da periferia, seja a violência social diária, que não dá aos trabalhadores direitos mínimos de sobrevivência…

Por uma educação para os trabalhadores!

O ministro Milton Ribeiro, em vez de defender a violência e de falar absurdos por aí, como a afirmação de que as universidades ensinam “sexo sem limites”, deveria estar preocupado em resolver os inúmeros problemas que temos no ensino do nosso país. Deveria promover uma ampla discussão democrática, com a participação dos trabalhadores em educação, a comunidade científica, os estudantes e seus familiares para elaborar um plano educacional diante da pandemia da Covid-19 e o consequente (e necessário) fechamento de creches, escolas e universidade. Deveria traçar um plano para acabar com a exclusão digital que atinge as famílias dos trabalhadores mais pobres do país (menos da metade dos brasileiros das classes D e E têm acesso à internet), que ficou tão escancarada diante da pandemia. E deveria investir pesado na educação.

Para que estas e outras medidas necessárias possam ser tomadas, é necessário revogar a Emenda Constitucional 95, que congelou os investimentos sociais por 20 anos. E, para garantir a verba, o estado deve parar de pagar a dívida externa aos banqueiros. Não é possível que, mesmo diante da catástrofe social e sanitária que vivemos, ainda se privilegie o lucro de meia dúzia de acionistas bilionários em detrimento da saúde e educação das famílias trabalhadoras…

Mas, afinal, qual é o projeto de educação defendemos?

Artigo XI. É abolida a escola “velha”. As crianças devem sentir-se como em sua casa, aberta para a cidade e para a vida. A sua única função é a de torná-las felizes e criadoras. As crianças decidem a sua arquitetura, o seu horário de trabalho e o que desejam aprender. O professor antigo deixa de existir: ninguém fica com o monopólio da educação, pois ela já́ não é concebida como transmissão do saber livresco, mas como transmissão das capacidades profissionais de cada um.

Artigo XII. A submissão das crianças e da mulher à autoridade do pai, que prepara a submissão de cada um à autoridade do chefe, é declarada morta. O casal constitui-se livremente com o único fim de buscar o prazer comum. A Comuna proclama a liberdade de nascimento: o direito de informação sexual desde a infância, o direito do aborto, o direito à anticoncepção. As crianças deixam de ser propriedades de seus pais. Passam a viver em conjunto na sua casa (a Escola) e dirigem sua própria vida”.

Os decretos acima são da Comuna de Paris e versam sobre a educação das crianças. A Comuna foi uma experiência de governo operário, que durou pouco mais de dois meses em 1871, mas que, apesar de seus limites e contradições, demonstrou a força e a justeza da causa comunista. Que tomemos seu exemplo para nos fortalecermos na luta por uma educação que vá ao sentido diametralmente oposto daquele pregado pelo ministro Milton Ribeiro. E por uma sociedade em que, como defendeu a Comuna, as crianças sejam livres e criadoras. Uma sociedade em que não haja mais submissão das crianças e mulheres aos homens e nem dos trabalhadores aos chefes. Uma sociedade socialista.

*Pediatra