Claudicéa Durans e Vera Rosane

Por: Claudicéa Durans e Vera Rosane – Secretaria Nacional de Negras e Negros

Escravidão, Abolição Gradativa e Marginalização do Povo Negro no Pós-Abolição

No próximo dia 13 de maio se completam exatos 132 anos de abolição da escravidão no Brasil. Não é demais lembrar que a escravidão no país durou cerca de quase quatro séculos (1550-1888) e foi um verdadeiro holocausto do povo africano e um dos maiores crimes contra a humanidade. Um continente inteiro teve seus habitantes transformados em escravos, não se distinguia se era criança, homem ou mulher, muito menos a classe social. Foram vítimas do tráfico, da escravidão e do racismo. Muitos morreram na travessia do Atlântico em tumbeiros abarrotados de corpos humanos, mal alimentados, vítimas de todo tipo de doenças como sífilis, varíola, disenteria, sarampo e infecções decorrentes das condições insalubres a que foram submetidos, além da violência física e da fome.

Do século XVI ao XIX, os historiadores relatam, que desembarcaram aproximadamente 4,9 milhões de pessoas traficadas da África para o Brasil, cerca de 45% da população de África. As mulheres traficadas constituíram cerca de 20% a menos que os homens, um número expressivo que demonstra um tratamento desumano e igual para homens e mulheres, fato também comprovado na divisão de trabalho árdua que não distinguia gênero.

Neste marco, queremos reforçar o óbvio, a escravidão nada teve de benigna e que a abolição2 da escravatura, não reparou os danos causados à população negra. Falamos isto para nos opor a certas ideologias racistas que tem sido reforçada no atual governo brasileiro, sobretudo por Sérgio Camargo, que está à frente de um dos principais órgãos públicos de acervo da cultura negra e afro-brasileira, a Fundação Palmares. Este capitão do mato, a serviço da casa grande teve a audácia de negar a existência do racismo no país, caracterizando-o de “racismo nutela”, invenção da esquerda, exalta a benevolência de Princesa Isabel e considera Zumbi de Palmares um falso herói.

No artigo anterior3, falamos dos principais acontecimentos no país, anteriores à Abolição e que determinaram, em grande medida, a marginalização dos negros e de seus descendentes no país.

Como se não bastasse teve a petulância de afirmar que tem pretensões de acabar com o dia da consciência negra, defende o 13 de maio como uma conquista histórica dos negros, enfim, é um sujeito acrítico, capacho e bajulador de branco burguês e vem prestar um desserviço ao povo negro.

A contação de história, reforçada nos dias de hoje, de protagonismo da Princesa Isabel, tida como “redentora dos escravos” teve como objetivo naquela época tornar Isabel popular, garantindo-lhe a sucessão decadente do reinado de sua família e da monarquia no Brasil. É bom lembrar que nenhum outro feito histórico é atribuído à Isabel. A “piedade” com os negros lhe rende dádivas até hoje, a título de informação, destacamos um pedido em 2012 de beatificação da princesa ao arcebispado do Rio de Janeiro.

RESISTÊNCIA QUILOMBOLA E A LUTA ANTIRACISTA TEVE PRESENÇA DE MULHERES NEGRAS

O sistema escravista nesses longos anos de experiência no país foi marcado por uma situação de permanente conflitos sociais, de interesses de classes inconciliáveis, condicionando os negros a permanentemente buscarem a construção de sua liberdade, e isto só se realizava com organização e luta. Vale lembrar algumas delas: na Bahia foram mais de 30 rebeliões, sendo a mais conhecida a Revolta dos Malês. Em Minas Gerais ocorreu a rebelião de Carrancas, no Rio de Janeiro, a revolta de Manoel Congo e no Maranhão a Balaiada, liderada por Cosme Bento das Chagas.

Chiavenato (1988) aponta que desde o “descobrimento do Brasil” muitas lutas tiveram participação popular, apesar da omissão na historiografia oficial, isto por conta de delegar aos ditos heróis, santos e grandes homens essa incumbência, fazendo-nos acreditar que a política é para os grandes, mantendo o controle ideológico sobre os trabalhadores. Para ele algumas lutas insurrecionais populares visavam a tomada do poder, a exemplo da Cabanagem, ocorrida na Província de Grão- Pará. A Balaiada no MA chacinou 12 mil e Revolta dos Malês, teve como desfecho execução, condenação de morte, deportação e prisões, demonstrando a violência como é tratada as lutas no Brasil, caso de polícia.

Entretanto, neste texto queremos enfatizar a luta dos quilombos que no período colonial e na atualidade cumprem um importante papel na questão agrária no país. De acordo com Moura (1988) os quilombos dinamizaram a sociedade brasileira, maior símbolo da luta contra a opressão nesse período. Em suas palavras … “Em todas as partes da Colônia em que surgiram a agricultura e a escravidão, logo os quilombos apareciam enchendo as matas e pondo em sobressalto os senhores de terras”.

A presença foi tão expressiva que Moura (2001) caracteriza esse movimento como quilombagemum movimento de rebeldia permanente (…) que se verificou durante o escravismo brasileiro em todo o território nacional. Movimento de mudança social provocador, ele foi uma força de desgaste significativa do sistema escravista, solapou as suas bases em diversos níveis – econômico, social e militar – e influiu poderosamente para que esse tipo de trabalho entrasse em crise e fosse substituído pelo trabalho livre”.

Os quilombos constituíam-se em unidade de resistência, organização e combate político em diferentes regiões do país. Palmares foi a nossa principal referência, resistiu por mais de um século, alcançou uma população de 30 mil habitantes, teve como principais líderanças Aqualtune, Ganga Zumba, Zumbi, Acotirene e Dandara. Enfim, essa organização social se contrapôs ao mundo dos engenhos de açúcar e ao sistema escravista latifundiário e consequentemente contra a exploração e da opressão da população negra. Palmares resistiu a 27 guerras impostas ao domínio português e holandês até ser dizimado em 1695.

As mulheres negras tiveram e tem importante papel na luta antirracista. Nesse período estiveram na organização dos quilombos, a frente de comando de batalhas, dominavam táticas de guerra. Cabe destacar algumas delas: Luiza Mahin, a frente da Revolta dos Malês, Tereza de Quariterê, dirigiu o Quilombo de mesmo nome, Zereferina, liderou o quilombo do Urubu e Adelina Charuteira, maranhense, vendedora de charutos teve importante papel no movimento abolicionista do Maranhão. No pós abolição a presença de mulheres negras é acentuada na direção e participação de associações com diferentes propósitos: religiosa, culturais e político-sociais, no movimento negro, nas casas de cultos afro, nas periferias e lutas por moradia, enfim, a organização e luta é parte da condição social que lhes é imposto para sobreviver.

Problemas históricos não resolvidos: a luta segue

A resistência negra na atualidade é visível com a existência dos quilombos. A Fundação Cultural Palmares mapeou 5 mil quilombos no território brasileiro, contudo, nos últimos 15 anos, apenas 206 áreas quilombolas, cerca de 13 mil famílias foram tituladas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária- INCRA, o que demonstra a permanente tarefa de regularização e titulação de terra e oposição ao latifúndio, um problema social histórico que está ligado à não realização de uma reforma agrária no país e a realização de abolição sem políticas de reparações, é preciso corrigir esse erro histórico.

O que temos visto são violência, assassinatos e constantes ameaças aos quilombolas. Em todos que governos que passaram não houve regularizam das terras. O atual governo, que defende o agronegócio e o latifúndio, é genocida, ameaça constantemente os povos tradicionais. O recente decreto aprovado por ele prevê a remoção de mais de 800 famílias de 30 Comunidades Quilombolas do município de Alcântara no Maranhão para ampliar a base de lançamento de foguete e satélites para os EUA, um duro golpe às comunidades seculares.

Diante de tudo isso, concluímos que, no capitalismo, não há solução para problemas centrais como reconhecimento das comunidades e quilombolas e o direito justo a suas terras, porque a reforma agrária necessária questiona diretamente o grande latifúndio e agronegócio e o capital. A abolição foi uma farsa, traz em comum, um grande traço de sua herança nefasta, que é a condição de vida dos negros e negras, que seja, nos quilombos ou nas grandes favelas urbanas, lutam cotidianamente por condições dignas de vida, onde não mais apenas 12,05% da população negra tenha coleta de lixo, onde mais 17% não tem água encanada e potável, onde 42,8% se quer tem esgoto sanitário.

Esta situação num momento em que ocorre a pandemia do novo coronavírus fica evidente que os pobres e mulheres e negros, estão desprotegidos, são os maiores infectados e mortos por esta doença, principalmente pela situação de vulnerabilidade em seus lugares de moradia dificultam o cuidado com higiene do corpo e da casa, levando-os a contraírem doenças. Além disso, a falta de postos de saúde e hospitais públicos em quantidade e qualidade, o acesso em grande escala ao teste da COVID-19, a falta de acesso a medicamentos e produtos de higiene como álcool em gel são pequenas ações que poderiam proteger a vida dos pobres e negros deste país, mas infelizmente isso não ocorre, nossas vidas não valem nada para a burguesia e seus governos.

É preciso ter política emergencial que garanta a vida, bem como emprego e renda, auxílio emergencial que contribua de fato para as pessoas satisfazerem suas necessidades básicas. Contudo, continuamos afirmando que isto não é suficiente, devemos continuar lutando contra o sistema, exigindo políticas de reparações históricas, associadas às medidas redistributivas que promovam a igualdade racial. Enfim, a revolução socialista é necessária e urgente, é preciso unir a classe trabalhadora, os quilombolas, ribeirinhos e indígenas em aliança com os setores populares, para essa tarefa, e tantas outras como a reforma urbana, igualdade de raça e gênero, sejam resolvidas.

REFERÊNCIAS

CHIAVENATO, José Júlio. As Lutas do Povo Negro Brasileiro: do“descobrimento” a Canudos. São Paulo: Moderna, 1988.

MOURA, Clóvis. Rebeliões na Senzala, Quilombos, Insurreições, Guerrilhas. São Paulo, Ed. Ciências Humanas, 1998.

MOURA, Clóvis. Dialética Radical do Brasil Negro. São Paulo: Anita. 2001.

SCHWARCZ, Lilian Moriz. Artigo “É hora de falar sobre escravidão mercantil moderna”. NexoJornal, 30 de julho de 2018.

1 Claudicéa Durans e Vera Rosane, da Secretaria Nacional de Negros e Negras do PSTU.

2 A Lei Áurea (Lei Nº 3.533) aprovada no dia 13 de maio de 1888, possui apenas 2 artigos: 1: “É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil. Artigo 2: Revogam-se as disposições em contrário”.

3 Ver: https://www.pstu.org.br/13-de-maio-uma-fabula-racista/