A surpreendente vitória do Hamas nas eleições legislativas da Palestina (Gaza e Cisjordânia) pode expressar muito mais que a raiva contra a corrupção deslavada promovida pela ANP e Fatah no governo e contra as péssimas condições de vida nos territórios. A imprensa burguesa e o imperialismo tratam de ressaltar esse aspecto, o da corrupção, como principal motivo do desgaste de Abbas e seu governo. Têm suas razões.

O primeiro deles é que a corrupção de fato tomou conta do aparato governamental palestino, formado por quase 200 mil funcionários burocráticos sustentados pelos dólares e euros da Comunidade Européia, EUA, além de países árabes, como a Arábia Saudita e uma infinidade de ONGs, interessados em fazer com que os palestinos se conformem com o que têm e deixem Israel e os negócios das multinacionais em paz no Oriente Médio. O governo da ANP foi ocupado por uma burguesia corrupta, interessada em embolsar a “ajuda humanitária” que recebe e empregar em negócios escusos, faturando em cima da desgraça da população. O exemplo do empresário do setor da construção, o palestino A. Korei, que vende cimento para Israel erguer o muro da separação na Cisjordânia é o menor deles.

A segunda razão para jogar toda a culpa na corrupção é que não interessa ao imperialismo e a Israel lançar luz ao que de fato ocorre: o povo palestino votou contra as péssimas condições de vida, contra a ocupação de seu território por Israel, enfim, contra a política do imperialismo e de Israel, consumada nos Acordos de Oslo. Mesmo que tenha sido de forma ainda inconsciente, não declarada, não verbalizada. Afinal, foi uma eleição no terreno da burguesia, controlada por ela e com milhares de observadores estrangeiros. E mais, uma eleição em território ocupado, onde falar em democracia, em escolha livre e soberana é brincadeira de mal gosto.

A ilusão nos Acordos de Oslo
Em 1993, quando foram assinados os Acordos de Oslo como culminação de um processo de cooptação de Arafat e a direção da OLP por parte do imperialismo americano e europeu, a campanha internacional foi tão violenta que as massas palestinas, em geral, deram seu apoio a eles. Ansiosas pela paz e a melhoria de suas condições de vida, elas depositaram confiança em que os acordos com Israel fossem de fato garantir um estado palestino, para onde os refugiados pudessem retornar. Deixariam de ser párias em sua própria terra e passariam a ter seu próprio estado. Era o mal menor, diante da política adotada por seus dirigentes, que desistiam de ver Israel desaparecer do mapa e ter a integridade de seu território de volta.

Foi uma campanha sórdida, abraçada inclusive por grande parte da intelectualidade européia, e assentada na bandeira de dois povos, dois estados, que parece muito democrática, mas na verdade consolida uma usurpação e um genocídio. E, de fato, nem isso os Acordos de Oslo pretendiam, mas simplesmente fazer algumas concessões aos palestinos, confinando-os em pedaços ínfimos de território, sob controle militar israelense. De fato, o que se generalizou foram espécies de “bantustões”, como os que cobriam a então África do Sul sob o governo do apartheid, ou mesmo guetos, semelhantes ao Gueto de Varsóvia, criado pelo nazismo.

Essa campanha dos dois estados, que tinha como figura emblemática Yasser Arafat, excluía do programa histórico da OLP a bandeira de destruição do Estado de Israel e devolução de todos os territórios ocupados com vistas à criação de uma Palestina laica, democrática e não racista, onde judeus e palestinos pudessem conviver em paz.

A ilusão nos Acordos de Oslo incutida a fórceps no povo palestino fez com que o imperialismo e Israel conseguissem um respiro de pelo menos quatro anos para acirrar sua investida para consolidar o Estado gendarme na região. A primeira medida foi marginalizar a OLP.

A OLP sempre foi a direção reconhecida dos palestinos, a que lhe dava uma identidade e uma representação, já que por seu caráter laico e não racista de então, abarcava a todas as correntes e grupamentos palestinos nos territórios ocupados e aqueles que estavam espalhados pelo mundo. Pelos Acordos de Oslo, a OLP ficou em segundo plano, subordinada à recém criada ANP, Autoridade Nacional Palestina, que na verdade não passa de um “estado colonial” totalmente financiado pelo imperialismo e empenhado em concretizar o mais rápido possível os Acordos de Oslo em concordância com Israel.

Arafat saiu das negociações como grande líder e foi eleito com 80% dos votos para presidir a ANP. Mas a OLP, apesar de ter ficado em segundo plano, conservou seu respeito junto às massas palestinas. Tanto é assim que um dia depois da vitória do Hamas, Mahmud Abbas, presidente da ANP, declarou que para negociar com os palestinos vai lançar mão novamente da OLP. Não tem outro remédio diante do descrédito monumental da ANP e de seu próprio partido, o Fatah.

Esse canto de sereia chamado Acordos de Oslo permitiu a trégua na onda de derrotas e retrocessos que os palestinos e os povos árabes vinham impondo às pretensões expansionistas de Israel. Batidas no sul do Líbano, as tropas israelenses, comandadas por Ariel Sharon, tiveram de se retroceder, em 1985, deixando atrás de si um rastro de sangue, como foi a organização do massacre executado pelos falangistas cristãos nos acampamentos palestinos de Sabra e Shatila, em Beirute, em 1982. Em 1987 explode a primeira Intifada, insurreição armada dos palestinos contra Israel, que estavam conseguindo avançar sobre as forças israelenses. Os Acordos de Oslo em 93 foram justamente uma jogada diplomática do imperialismo para tentar frear essa escalada palestina, domesticar suas lideranças e encontrar uma alternativa viável à pretensão palestina de retomar a integridade de seu território. Vem daí a política dos dois estados, que parecia mais plausível e democrática, que conquistou várias organizações palestinas e iludiu boa parte da esquerda mundial.

Mas a resistência palestina prosseguiu e em 2000 explode a segunda Intifada. Foi então que o imperialismo planejou a retirada de cena de Arafat e a ascensão de um novo líder na ANP, menos “radical”, com menos história de luta pela causa palestina e, assim, menos compromissos com as alas mais radicais da OLP. A ascensão de Mahmud Abbas vem daí, bem como a política de reação democrática, para promover eleições que cooptassem os grupos mais radicais. Em 2004 fica acordada uma trégua, à qual o Hamas adere. Apesar de não ter suprimido de seu programa a luta pela destruição de Israel e não ter entregue as armas, o Hamas de fato abandonou essa luta e, alentado pela burguesia árabe, transformou-se em um partido assistencialista, dedicado a administrar a miséria e as violações dos direitos humanos promovidos pelo governo ditatorial e corrupto da ANP, construindo escolas e hospitais e arrecadando esmolas para os palestinos, com o respaldo de ONGs dos mais diversos tipos, além de ajuda financeira do Irã e organismos oficiais da União Européia e Estados Unidos.

Vitória do Hamas mostra fracasso dessa política
Se antes as massas palestinas haviam “votado” a favor dos Acordos de Oslo, agora pode-se dizer que, elegendo o Hamas, partido que ainda mantém em seu programa a luta pelo fim de Israel, elas expressam seu repúdio a esses Acordos. Nesse sentido, podemos dizer que houve um avanço e uma radicalização em seu nível de consciência. O fato de o Hamas ter mantido esse discurso radical, também. Ele aparece para as massas palestinas como aqueles que mantiveram de pé a bandeira da luta contra Israel, abandonada e pisoteada pela Fatah e a OLP.

No entanto, existe uma pressão enorme por parte do imperialismo para que o Hamas aceite os Acordos de Oslo e renuncie à violência. Tanto as União Européia quanto os Estados Unidos ameaçam cortar a ajuda financeira que enviam à ANP. É, no mínimo, hipócrita essa exigência, que parte desses “paladinos da paz”, como George W. Bush, Condolezza Rice e os governos europeus, que invadiram o Iraque e não exigem nada de Israel, nem mesmo que pare de assassinar os dirigentes palestinos ou que suspenda o construção do muro da vergonha. Se querem mesmo a paz e o fim de toda violência, teriam em primeiro lugar que exigir isso de Israel. Ao contrário, defendem toda a política dos sionistas, inclusive que eles violem descaradamente as convenções de Genebra, com os assassinatos seletivos, ataques a civis, inclusive crianças. Os Estados Unidos entregam mais de 3 bilhões de dólares a Israel, por ano, e todo esse dinheiro é aplicado nisso. E ainda têm a cara de pau de ameaçar os palestinos dizendo que vão cortar o dinheiro se não renunciam à violência!

A política do Hamas é continuar negociando
Ao invés de denunciar a ocupação e exigir a imediata devolução de todos os territórios ocupados por Israel, falando claro às massas palestinas que os Acordos de Oslo são uma armadilha e só servem para favorecer os planos imperialista e sionista, o Hamas tem a política de continuar negociando com Israel, mas não mais diretamente, e sim através de terceiros. Dessa forma, também estarão frustrando as aspirações históricas do povo palestino que massivamente votaram no Hamas nas eleições.

O projeto do Hamas é a criação de um estado teocrático, o que, de fato, poderá levá-lo a ceder às pressões imperialistas e aceitar os Acordos de Oslo na prática. Essa posição não resolve o problema dos palestinos. É antidemocrática, pois obriga os palestinos a serem muçulmanos, e impõe a hierarquia religiosa como governo. Além de abrir espaço para o sionismo, dentro e fora de Israel, acirrar sua campanha contra os palestinos, dizendo que eles querem acabar com os judeus.

Por isso, é preciso ficar clara a necessidade de destruição do Estado colonial, de apartheid, que é Israel, para que judeus e palestinos possam viver em paz numa Palestina aberta a todos, sem qualquer tipo de discriminação.

A bandeira da Palestina laica, democrática e não racista precisa ser retomada
A vitória do Hamas nas eleições mostra outros aspectos importantes. Um deles é que o projeto imperialista de construir uma nova direção para a OLP após a morte de Arafat fracassou. Apesar de ser totalmente fiel ao imperialismo, Mahmud Abbas é um dirigente burguês, fraco e corrupto, sem o histórico de lutas que tinha Arafat, e que não conseguiu conquistar a confiança das massas palestinas. E agora, com a derrota de seu partido, o Fatah, está por um fio. O Hamas, que surge como grande líder do processo eleitoral, além de não ter um dirigente de destaque, com o carisma que tinha Arafat, é um movimento muito ligado a um dos maiores adversários do imperialismo no Oriente Médio, o Irã, que encabeça o chamado “eixo do mal”, tem sido alvo de imensas pressões dos EUA por causa do enriquecimento de urânio e já declarou sua oposição a Israel.

A massiva votação no Hamas, mais que um simples voto, foi um recado ao mundo: o povo palestino não suporta mais a opressão, a humilhação, a fome, o desemprego. Não suporta mais a guerra, as perseguições, os guetos. E está disposto a dar a volta por cima em todos esses anos de trégua e traição de suas direções históricas, para prosseguir na luta contra o colonialismo e por reconstruir a Palestina. E nessa luta, precisa do apoio dos trabalhadores do mundo inteiro, sobretudo do Oriente Médio, para que seja capaz de construir uma direção que, nos moldes do que foi a OLP nos seus primeiros tempos, leve adiante esse combate até o fim, sem traições, sem tréguas, sem conciliação. Em 1969 a OLP adotou a Carta Nacional Palestina, que defendia a destruição do Estado de Israel e o estabelecimento de uma sociedade democrática livre na Palestina, aberta a todos os palestinos-muçulmanos, cristãos e judeus. Essa é a bandeira da Palestina laica, democrática e não racista, que sintetiza uma das principais tarefas da revolução socialista na região. É necessário ser laica, para abolir o Estado teocrático de Israel, que se baseia em uma só religião, o mesmo que prega o Hamas, e que não serve para abrigar todos os povos árabes. Tem de ser democrática e não racista para garantir direitos iguais para todas as nacionalidades, sem qualquer preconceito de raça, credo e etnia.