Merino: Governo Correa é um governo "bonapartista"
Diego Cruz

Seria mesmo um governo popular, como pensa grande parte da esquerda?No dia 30 de setembro, não foi só a sublevação policial que causou surpresa. Acuado e acusando a existência de um suposto seqüestro e golpe de Estado, o governo convocou uma mobilização popular em defesa de Correa. Convergiram, porém, à “Plaza Grande”, em frente ao Palácio Candorelet, algo como 3 mil pessoas, em sua maioria partidários do Alianza País.

O Equador é um país que construiu uma forte tradição de mobilizações na última década. No final dos anos 90 e início do século, três presidentes foram derrubados por revoltas populares. Quando Lúcio Gutierrez caiu, pelo menos 200 mil pessoas lotavam as ruas da capital Quito exigindo a sua saída.

As manifestações em favor do mandatário pouco lembravam, por exemplo, as mobilizações durante a tentativa de golpe contra Hugo Chávez na Venezuela em 2002. Por que houve a sublevação policial? E, depois, por que não houve uma grande resposta da população ante a convocação do governo, apesar do apelo massivo realizado em cadeia nacional pela TV?

Um país dividido
“O que aconteceu naquele 30 de setembro é, na verdade, o resultado de um processo anterior”, explica Miguel Merino, professor de Sociologia da Escola Nacional Politécnica de Quito e dirigente do MAS (Movimento ao Socialismo), seção equatoriana da LIT-QI. Um processo que teve por um lado a imposição de uma série de leis pelo governo que atingia uma série de setores sociais e, de outro, uma investida autoritária de Correa a esses mesmos setores.

Eleito em 2006 pela frente Alianza País, que reunia um amplo espectro de forças políticas, sobretudo da esquerda, como o Partido Socialista e o Partido Comunista do Equador, Rafael Correa apresentava um discurso de esquerda e de defesa a setores como os indígenas. Uma vez presidente, conseguiu convocar uma Assembleia Constituinte e uma nova Carta Magna que concentrava poderes na figura do presidente e, apesar de tocar em algumas reivindicações dos movimentos sociais, não continha qualquer mudança estrutural do país.

“Correa canaliza habilmente o descontentamento popular, elimina o velho congresso que era símbolo de toda essa corrupção, convoca a Assembleia Constituinte, gerando uma ilusão de que uma nova Constituição iria mudar a sociedade ou, como ele dizia, ‘refurndar´ o Estado” , resume Merino.

No começo do mandato, Correa se beneficiou com alto preço do petróleo exportado pelo país. Seu governo incrementou um programa social de governos anteriores, o “bônus dignidade”, semelhante ao Bolsa Família do governo Lula. Ao mesmo tempo, sua política para o petróleo e na gestão de recursos naturais, como a água ou o minério, já o colocaram contra setores indígenas e os petroleiros.

A chamada lei das águas e a lei da mineração provocaram uma série de mobilizações encabeçadas principalmente pelo movimento indígena. A repressão do governo é dura e acaba assassinando um manifestante na Província de Morona, coincidentemente no dia 30 de setembro de 2009, exato um ano antes da sublevação policial.

O avanço autoritário do governo se estende às universidades, com a Lei de Educação Superior, que reduz significativamente a representação de trabalhadores e estudantes nos organismos de decisão. “O governo ataca uma conquista do movimento estudantil na década de 60, ao reduzir para 25% a representação dos estudantes nos organismos universitários, que era de 50%”, explica Miguel Merino.

Já os trabalhadores têm sua representação reduzida de 25% para apenas 5%, ficando também completamente fora dos organismos acadêmicos. “O governo fez isso com o argumento de que os estudantes e os trabalhadores são manipulados politicamente”, critica o docente. A lei de Correa indispõe o governo com os professores e estudantes das universidades.

O estopim para o 30 de setembro, porém, se dá com a Lei de Serviço Público, que ataca uma série de direitos dos que trabalham para o Estado. O governo já impunha uma política que incluía demissões em massa no setor público, como na estatal Petroecuador, em que foram demitidos 1.200 trabalhadores em 2009 e mais 628 no ano seguinte.

A nova lei afeta, sobretudo o sistema de bonificações e condecorações dos militares, atacado como “privilégio” por Correa. Apesar da propaganda massiva nos meios de comunicação, o governo não consegue conter a onda de indignação nas fileiras da polícia. Como os demais setores sociais atingidos, lançaram-se às mobilizações, com uma diferença importante agora. Eles têm as armas.

O governo que enfrenta a rebelião policial no dia 30 é, assim, um governo com certo respaldo popular, garantido por meio de sua política focalizada, mas desgastado com importantes setores organizados, como o movimento sindical e indígena. Um governo ainda em plena escalada repressiva contra os movimentos sociais.

Um governo de esquerda?
Quem chega ao Equador pode se surpreender com a “Revolução Cidadã” de Correa, ou melhor, seu discurso radical e pretensamente de esquerda. O mandatário, por exemplo, conta com um programa semanal exibido nas manhãs de sábado em rede nacional, onde freqüentemente ataca os “pelucones”, ou seja, os ricos e os banqueiros, com discursos “radicais”.

Na prática, porém, a “Revolução Cidadã” se resume a políticas sociais focalizadas e, em geral, a mesma política econômica dos governos anteriores. Ou seja, as multinacionais continuam explorando o petróleo e os minérios do país, os bancos e grandes empreiteiras seguem lucrando, assim como os grandes agro-exportadores, enquanto a taxa de pobreza chega a 68% da população.

“Correa não pode e não quer se enfrentar com a burguesia ou com os banqueiros e, por outro lado, trata de gerar a ilusão de que é apoiado pelo povo” opina Merino. “O leva da Revolução Cidadã, ‘La Patria ya és de todos´, significa que, sob Correa, já não há luta de classes, tenta gerar essa ilusão de conciliação de classes, que caracteriza o governo Correa como um governo “bonapartista”, ou seja, um governo cujo objetivo é manter a ordem atual, mas que aparentemente se “desloca” das classes, parecendo independente.

Para ele, o surgimento de Correa está diretamente ligado à onda revolucionária que correu o país em 2000. Mas para freá-la. “A burguesia precisava de uma nova figura que pudesse garantir seus interesses e o funcionamento do sistema capitalista, mas os partidos tradicionais de direita estavam desprestigiados após a queda de Abucarán, Mahuad e Gutierrez”, explica.

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