Ao visitar Havana, em novembro de 1999, Hugo Chávez [1] declarou, dirigindo-se a Fidel Castro: “em nome de Cuba e da Venezuela, faço um chamado à unidade de nossos dois povos e das revoluções que ambos dirigimos. Bolívar e Martí, um país unido!”. Declarações desse porte ajudaram a fomentar a idéia de que o processo venezuelano encerra profunda identidade com a revolução cubana. Vejamos até que ponto isso parece impróprio.

Fidel versus Chávez
A aproximação entre Fidel e Chávez contribui para criar a ilusão de semelhanças entre Cuba e Venezuela. Comparemos o que dizia Fidel na revolução cubana e o que diz Chávez, a partir de sua posição de comandante da locomotiva do “socialismo do século XXI”. No plano econômico, o que diz o presidente da Venezuela?

“Nosso programa não está nem a favor do Estado, nem a favor do neoliberalismo. Estamos explorando um caminho do meio, em que a mão invisível do mercado una-se à mão visível do Estado; tanto Estado quanto seja necessário, tanto mercado quanto seja possível”.

Movendo a velha manivela da memória histórica, observemos o que dizia Fidel Castro [2] sobre a possibilidade de um caminho do meio:

“É precioso levar em conta que não existe meio-termo entre capitalismo e socialismo. Os que se empenham em encontrar terceiras posições caem em uma posição verdadeiramente falsa e verdadeiramente utópica. Isso equivaleria a se desentender, ou seria cumplicidade com o imperialismo”.

Qual o valor político e metodológico dessa observação? Em primeiro lugar, não há identidade entre os processos econômicos da Cuba revolucionária e da Venezuela do “socialismo do século XXI”. Depois, pelas palavras de Fidel, antes de ser o que diz ser, um antiimperialista, Hugo Chávez estaria em “cumplicidade com o imperialismo”, uma vez que defende o indefensável: uma “terceira posição” ou um “caminho do meio”.

De outro lado, para que não paire dúvida, Fidel concluía:

“Esse é o caminho que seguimos: o caminho da luta antiimperialista, o caminho da revolução socialista. Porque, por outro lado, não cabia nenhuma outra posição. Qualquer outra posição era uma posição falsa, uma posição absurda. E nós nunca adotaremos essa posição, nós jamais vacilaremos. Jamais!”.

Era, nesse sentido, uma fala de conteúdo objetivamente distinto do horizonte chavista. Há algo mais importante em jogo: isso significa definir a estratégia de Chávez de um “caminho do meio” como uma “posição absurda”, “falsa” e vacilante. Dessa maneira, na revolução cubana tivemos a expropriação da burguesia, a planificação econômica e se estabeleceu o monopólio do comércio exterior. Esse foi o caminho, diametralmente oposto da soma zero da “mão invisível do mercado” e da “mão visível do Estado”.

Pondo-se de lado esse aspecto, a fragilidade do chavismo não se inscreve puramente na arena econômica. No terreno das relações com as Forças Armadas, as suas inconsistências são notáveis. Nessa toada, o projeto belo e comovente de Hugo Chávez é resumido, pelo próprio, da seguinte maneira:

“A idéia é os militares voltarem a sua função social fundamental, de modo que, enquanto cidadãos e enquanto instituição, possam se integrar aos projetos de desenvolvimento democrático do país”.

Ele vai mais longe, ao dizer que entende “a alma do exército” e faz “parte dessa alma”. Assim sendo, o exército é parte do seu projeto de “socialismo do século XXI”, bem como Chávez é parte indissociável do braço armado do Estado burguês. Aqui, uma vez mais, a Venezuela não repete Cuba e nem Hugo Chávez repete Fidel. Para este último, a tarefa da revolução cubana era a da “liquidação do aparelho da maquinaria militar que sustentava todo aquele regime de privilégio”. Conforme Castro, na história da América Latina, o que a reação e o imperialismo “tratam de conservar a todo custo é o aparelho militar, a máquina militar do sistema. Nem ao imperialismo nem às classes dominantes importa, em última instância, quem é o presidente, quem é o representante, que é o senador”.

Quer dizer, não interessa se é Chávez ou outro quem governa, se é um congresso “bolivariano” ou não; interessa, principalmente, manter intacta a guardiã zelosa da ordem: as Forças Armadas. Para Fidel Castro, empurrar o processo histórico adiante, significava liquidar a “maquinaria militar”, mantenedora de um “regime de privilégio”, ao passo que Hugo Chávez recomenda integrá-la “aos projetos de desenvolvimento democrático do país”. Uma vez mais, as análises feitas acima demonstram a cissura, e não uma suposta identidade, entre a revolução cubana e o projeto do presidente venezuelano.

Che versus Chávez
Há sempre o risco de toparmos com uma pedra no caminho. Hugo Chávez tropeça também em um novo obstáculo: Che Guevara. Ocupou um lugar central no pensamento deste último o problema dos funcionários armados do Estado burguês. Para ele, diferentemente da concepção chavista, a instituição militar burguesa é incapaz de se integrar a um projeto de “desenvolvimento democrático do país”. Che [3]colocava o foco na questão da seguinte maneira:

“Que podem dar os militares à verdadeira democracia? Que lealdade se lhes pode pedir, se são instrumentos de dominação das classes reacionárias e dos monopólios imperialistas, e como casta, que vale em função das armas que possui, aspiram apenas a manter suas prerrogativas?”

Basta comparar.Guevara jamais compartilhou das ilusões de Chávez quanto ao potencial “democrático” das Forças Armadas, embora o guerrilheiro argentino não tenha rejeitado “a utilização dos militares como lutadores individuais, separados do meio social em que atuaram e, de fato, rebelados contra ele”. Sob essa perspectiva, Che arremata: “esta utilização deve ser feita no contexto da direção revolucionária à qual pertencerão como lutadores e não como representantes de uma casta”. Em suma, há um corte que separa de um só golpe as concepções do líder venezuelano do pensamento de uma das principais lideranças dos guerrilheiros de Sierra Maestra.

Algumas conclusões
Não foi o nosso objetivo dar conta de todas as questões, mas capturar com equilíbrio as divergências de fundo entre dois processos que alguns tomam como de natureza simétrica. Aqui, não chegamos a forjar um exame, ainda que sucinto, da restauração capitalista que golpeou e dilacerou perversamente o sentido essencial da revolução cubana, nem seus efeitos reativos imediatos.

Igualmente, o fluxo descrito sequer recolheu a necessária análise crítica dos papéis cumpridos por Che, e particularmente Fidel, no que diz respeito não apenas a Cuba, mas, num sentido mais abrangente, à própria América Latina. Trata-se de um acerto de contas que pode ser levado a cabo numa outra oportunidade. Por enquanto, contentamo-nos em desfazer, utilizando palavras que são dos “contendores” examinados, a lenda que começa a cavalgar e ganhar mundo, a saber, que o “socialismo do século XXI” é irmão siamês do que irrompeu ruidosamente sobre a ilha de Cuba há cerca de meio século. Já é tempo dos vendedores de ilusão arrojar-se em demanda de comparações e argumentos menos inconvenientes

NOTAS:
1.
Esta e as demais citações de Chávez ao longo do artigo foram retiradas do livro À sombra do libertador, de Richard Gott (São Paulo: Expressão Popular, 2004).
2. Os textos de Fidel que citamos são: 1) o discurso Revolução socialista e democrática em Cuba, pronunciado em 16 de abril de 1961, no enterro de vítimas de um bombardeio norte-americano; 2) o discurso De Martí a Marx, proferido em 2 de dezembro de 1961. Ambos foram reunidos por Michael Lowy em seu livro O marxismo na América Latina (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003).
3. As citações de Che foram extraídas de um escrito seu do ano de 1963 e estão aqui reproduzidas conforme as encontramos no livro de Lowy citado na nota anterior.