Frida Pascio Monteiro, de Fernandópolis (SP)

Frida Pascio Monteiro, de Fernandópolis (SP)

Em tempos de pandemia da Covid-19, sabemos que os setores mais subalternizados, invisibilizados, precarizados e que sofrem com exclusão e vulnerabilidade social serão os mais afetados. Esses setores são os (as) negros (as), os periféricos, a população em situação de rua, as mulheres e os LGBTQIA+[1]. Mas, entre esses últimos há quem sofrerá mais: as travestis e transexuais.

Nós, do PSTU, já publicamos um material sobre LGBTs e a pandemia (leia os artigos Covid-19 e as LGBTs), mas acreditamos que seja importante ter um artigo à parte para tratar de nossa realidade, já que travestis e transexuais possuem particularidades no sistema machista, transfóbico e racista (em se tratando de mulheres transexuais e travestis negras) que fazem com que nossas opressões e vulnerabilidades sejam mais acentuadas.

E são justamente essas particularidades que tentaremos trazer à tona para que possamos refletir coletivamente e pensar em saídas e formas de enfrentar toda essa transfobia, lutando juntos como cis-aliados[2].

A marginalização extrema das trans

Sabemos que 90% da população de travestis e transexuais no Brasil vivem da prostituição. Quase a totalidade de toda uma comunidade. Enquanto isto, somente 6% das travestis e transexuais estão em empregos informais, muitas vezes subalternizados e precarizados, sem que os mínimos direitos trabalhistas sejam respeitados. E apenas 4% das pessoas trans e travestis de todo o país possuem empregos formais. (Dados da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

A diferença de realidade de vida é tão notória entre pessoas cisgêneras (que se identificam com o sexo biológico que foram designadas ao nascerem, vide nota abaixo) e transgêneras (travestis e transexuais) que até as formas e a intensidade da exploração, assim como a realidade concreta, se dão em níveis extremos de distinção.

Enquanto pessoas cisgêneras lutam pelos seus direitos trabalhistas e previdenciários, que são atacados e retirados, pessoas trans lutam por terem um emprego formal antes de tudo. E desde muito antes dos tempos de não-pandemia.

Agora, com a Covid-19, a população cisgênera luta contra a PEC do Orçamento de Guerra que quer jogar os custos da crise econômica gerada pela pandemia para as costas do trabalhador e do povo pobre. Mas, enquanto a população cisgênera luta para que não haja cortes de até 70% em seus salários, a população trans, ou pelo menos 96% dela (as que vivem de prostituição e as que vivem de empregos informais) luta para terem empregos formais que as pessoas cis possuem.

Opressão e exploração como obstáculos para o isolamento

Por conta de tudo isso, é que cumprir o isolamento social como medida da Organização Mundial de Saúde (OMS) é algo que não será realidade de muitas pessoas trans e travestis. A maioria de nós é expulsa de casa com idade muito jovem, algumas com 12, 13 ou 14 anos, e sem completarmos os estudos (já que, também, a transfobia e os preconceitos nos expulsam das escolas). E, vivendo nas ruas desde muito jovens, muitas acabam sendo atraídas para o mundo da prostituição como única fonte de renda possível.

Morando nas casas de cafetinas, as que se prostituem têm de pagar as diárias de habitação, que são como taxas de um hotel ou pensão pagas para se ter um teto. Portanto, sem diárias pagas elas são expulsas dessas casas ou pensões e têm de morar nas ruas. Este é um dos motivos pelo qual o isolamento social não será cumprido pela maioria das mulheres travestis e transexuais que vivem da prostituição.

Muitas cafetinas e donas de pensão não abrem mão de suas diárias e com isso as travestis e transexuais são obrigadas a romper o isolamento social e irem para as pistas (ruas) para se prostituírem e, somente assim, lamentavelmente, terem dinheiro para comer e morar. Dentro desta “lógica” perversa, sem se prostituir diariamente, não há como se alimentar e habitar.

Há campanhas para conscientização das cafetinas para liberarem essas mulheres de pagarem diárias em tempos de pandemia e para que elas possam cumprir o isolamento social dentro das casas, protegendo a si mesmas, a seus pares, e, respectivamente, a seus clientes, suas famílias e a sociedade como um todo. Infelizmente, contudo, muitas cafetinas e donas de pensão ainda obrigarão travestis e mulheres transexuais a se prostituírem, pondo em risco a nossa sociedade.

Por isso, antes de sequer criticarmos quem quer que seja que, numa situação como a das trans, rompa com o isolamento, temos que discutir o que elas precisam fazer para comer, ter onde morar e sobreviver. Agora e depois da crise.

Falta de tudo, menos preconceitos…

Diante da situação de extrema gravidade que estamos enfrentando, estas medidas começam por algumas sugestões apresentadas numa cartilha divulgada pela ANTRA, com o objetivo de tentar minimizar os danos causados pela interrupção e quebra do isolamento social.

No texto intitulado “Dica profissionais do sexo Covid-19 Antra” são apresentadas medidas que, apesar de importantes (como dicas sobre autocuidados e higienização, como agir na prostituição em tempos de pandemia até como agir com a doença), são “medidas de contenção de danos”. Mas, o problema é que os danos já estão causados quando se rompe o isolamento social para ir trabalhar nas ruas ou quando se entra em contato com o outro, tocando-o, e, mais gravemente, com a troca de fluidos corporais entre dois corpos (saliva, suor, esperma).

Tudo isto, contudo, ainda está na superfície do problema, pois ainda estamos falando de mulheres trans que têm onde morar. Mas, sabemos do grande número de travestis e mulheres transexuais que estão em situação de rua por falta de recursos ou drogadição (dependência química), em decorrência da precarização e opressão geradas por suas muitas carências e, também, o peso do trabalho na prostituição.

Nesse caso, o problema se agrava por ser uma população sem acesso à água encanada e potável e produtos para higienização e cuidados próprios de prevenção contra o coronavírus. As travestis e transexuais que vivem em periferias não enfrentam situação muito diferente desta. A maioria dessa população é considerada como sendo preta ou parda (nos dados da ANTRA), portanto, são mulheres trans e negras que sofrem, novamente, com a falta de higiene e condições sanitárias que, sabemos, são enfrentadas nas periferias de nosso país.

Além disso, temos que lembrar que a letalidade da pandemia da Covid-19 é ainda mais grave para mulheres travestis e transexuais em virtude de uma parte desta população ser imunodeprimida, ou seja, são mulheres vivendo com HIV/AIDS (este é o termo atual e correto, em substituição ao antigo termo “soropositivas”, utilizado pelo conjunto dessa militância).

Uma luta de todos e todas nós

Construir consciência de classe e política e engajamento para lutar e se organizar politicamente dentre essa população não é tão simples. É uma enorme batalha e um difícil desafio colocados para todos e todas que militam contra a opressão e a exploração. As prioridades dessas meninas são outras. É ter o que comer. É não morrer a cada noite que saem para as ruas sem saber se voltam, já que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais.

Justamente por isso, falar de militância, socialismo e revolução pode parecer algo distante para muitas delas. E como a franqueza e a sinceridade devem ser totais entre os (as) revolucionários (as), temos que admitir que, por uma série de questões históricas (a enorme maioria delas decorrente dos crimes que o stalismo cometeu no campo das opressões), há um inegável (e real) ranço, em relação aos “marxistas, mesmo por parte das trans que militam de alguma forma nas entidades dos movimentos LGBT, popular, negro etc.

Algo que temos que encarar e superar partindo de uma constatação que tem tudo a ver com a própria essência do marxismo. Estamos falando de mulheres trabalhadoras, periféricas ou excluídas, que, como poucas (os), sabem o real significado das palavras opressão, marginalização, precarização e vulnerabilidade que o sistema capitalista lhes impõe.

E, por isso mesmo, nossa principal tarefa é mostrar, na prática, que juntos, como pessoas trans e cis-aliados, podemos construir um mundo diferente. E, para tal, os “marxistas”, nossa ideologia e visão de mundo não são “o problema” e, sim, a solução.

E isto é algo fundamental. Vital, na verdade. Já que, sem alternativas, parte das mulheres travestis e transexuais acaba defendendo políticas públicas bolsonaristas, como o fim da quarentena e do isolamento social para que as pessoas possam voltar a trabalhar, porque elas, seus parceiros e familiares, em suas realidades concretas e objetivas, muitas vezes estão sem ter dinheiro para comer ou/e pagar um aluguel.

E, a médio prazo, não são poucas as que vêm uma saída para sua terrível situação na simples eleição de pessoas trans para que, num futuro incerto, possamos viver em plenitude e com dignidade. Uma ilusão que, sabemos, está cada vez mais desmascarada pela própria crise que enfrentamos.

Socialismo ou barbárie

Isto não significa, de forma alguma, que devamos dizer para as trans se conformarem com a atual situação e esperem pelo desenrolar da crise. Pelo contrário. O que queremos é exatamente nos juntarmos na luta, incentivar sua auto-organização e contribuir da forma que for possível para, também, lutarmos em defesa da vida das travestis e transexuais.

Neste sentido, uma primeira medida é que a população de rua, na qual se inclui parte da comunidade trans, possa ter onde dormir e praticar sua auto-higienização e uma das soluções para isto obrigar as redes de hotéis, pensões e hostels (albergues) a receberem essa população de rua, como já está sendo feito em alguns países.

Além disso, devemos incluir, sempre, as trans e suas especificidades quando falamos na luta, imediata e emergencial, pelo acesso à saúde de qualidade (o que implica na transferência para o SUS de toda rede hospitalar e serviços de saúde), por garantias (reais) de renda e emprego e tudo mais que temos defendido para o conjunto do povo trabalhador e pobre. Uma luta que, desde já, deve levantar o debate sobre a construção de alternativas reais e concretas para pormos um fim à situação que mantém 90% das trans em situação de prostituição.

Mas, não podemos parar por aí. É preciso avançar no sentido da exigência da taxação das grandes fortunas e dos bilionários, para que eles paguem pela crise. Chegou a hora deles botarem a mão nos bolsos. Não é justo que aqueles que já sofrem diariamente com a precarização e vulnerabilidade social paguem novamente.

E, para conseguirmos isso, além do “Fora, Bolsonaro! Fora, Mourão!”, precisamos pôr para fora e abaixo todos esses políticos e mais, todo esse decadente e cruel sistema sustentado pelo capitalismo que se vê ancorado pelos braços do machismo, racismo e LGBTfobia.

Não há outra solução: ou é socialismo e revolução socialista, já, ou é a barbárie!

Por isso, é vital e urgente trazermos toda a classe trabalhadora para nosso lado e a nossa luta, sem nos esquecermos das travestis e transexuais como nossas irmãs trabalhadoras e que precisam do nosso apoio em suas batalhas e reivindicações. E tem que ser assim em tempos de não-pandemia. E, agora, em tempos de Covid-19, mais do que nunca!

[1] LGBTQIA+ é a sigla utilizada internacionalmente para designar lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, travestis, transexuais, queer, intersexos, assexuais, com o sinal de (+) indicando quaisquer outras possibilidades para além da chamada “heteronormatividade” (a heterossexualidade vista como padrão único para a sexualidade). No Brasil, como em outros países, há uma tendência a se utilizar LGBT como “abreviação” de todas categorias. No caso, o “Q” (queer) se refere as pessoas que não se identificam com os padrões heterossexuais, mas também transitam entre gêneros e orientações sexuais, sem necessariamente se encaixar em nenhum. O “I” (intersexos) é o nome dado para os que eram chamados “hermafroditas”; ou seja, cujos órgãos sexuais são ambíguos em relação ao gênero da pessoa. E o “A” se refere aos “assexuais”, ou seja, que não praticam sexo ou transam sob determinadas condições específicas.

[2] Cis-aliados é um termo comum no movimento trans para se referir às pessoas cisgêneras que apoiam e lutam conjuntamente na causa trans e contra a transfobia, entendendo-se que cisgêneras são as pessoas que têm anatomia, sexo e biologia alinhados com o gênero com o qual se identifica. Em termos bem simples, por exemplo, um homem que nasceu com um pênis e se identifica como alguém do sexo masculino.