A transfiguração do Cordel do Fogo Encantado

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Yara Fernandes Souza, da redação

O Cordel do Fogo Encantado, desde o surgimento, mescla a música, o teatro, a poesia dos cordelistas sertanejos, o samba de coco, a arte popular nordestina em seus espetáculos. Com influências diversas, que vão desde as batucadas da umbanda até a literatura estrangeira, o Cordel tem som e presença próprios. Lirinha, compositor-cantor-declamador do grupo, costuma dizer que o Cordel não faz shows, mas espetáculos. Isso porque, apesar de ter a música como elemento central de sua arte, o Cordel do Fogo Encantado vai além.

O grupo surgiu no final dos anos 90 na cidade pernambucana de Arcoverde, a partir de um espetáculo mais teatral do que musical. Já enraizado na música e depois de levar seus espetáculos a diversas cidades, o grupo lançou o primeiro disco, com o mesmo nome da banda, no início de 2001. No final de 2002, o segundo disco, O palhaço do circo sem futuro, estava pronto. Durante todo esse período, o Cordel do Fogo Encantado adquiriu um público grande e apaixonado, apesar de não tocar em rádios ou TV.

No compasso do batuque
A percussão é o que dá vida às canções do Cordel. O terceiro disco, que acaba de sair do forno, Transfiguração, assim como os anteriores, traz um Cordel também inebriado pelas batucadas.

Emerson Calado, Nego Henrique e Rafa Almeida são os percussionistas do Cordel que transformam sons em verdadeiras imagens. Em muitas músicas do novo disco, os tambores são trovões, são canhões, armas, pedras, flores arrancadas. Na canção Preta, entretanto, a percussão ganha cores suaves e o instrumento se converte em pingos de chuva.

É pela percussão do Cordel que o público sente na pele e no estômago os versos cantados, gritados ou declamados. Todavia, neste terceiro álbum, as cordas de Clayton Barros estão mais presentes, não só no som do violão mas no banjo, no cavaquinho, na craviola, no bandolim.

Versos de fogo
Além da força dos instrumentos, os versos do Cordel também possuem poder próprio. Não é à toa que Lirinha não só canta, como declama, fala e grita tais versos em muitos momentos. Quando Lirinha e Bnegão (em participação especial) cantam “Juntem as forças pra seguir nessa jornada/ Busquem as forças pra lutar na sua própria batalha!“ no início da música Pedra e Bala (ou Os Sertões), o fazem em tom de convocação.

E muito mais pode ser dito sobre esta mesma música. Com o subtítulo a la Euclides da Cunha, sua letra fala sobre a luta pela terra, os latifúndios e a seca. Mas também está nela a luta da Intifada palestina, com suas pedras contra os tanques. Está a denúncia das guerras imperialistas. Aponta o dedo aos coronéis, não só os de latifúndios, mas também os `Ubiratans`. Ela canta o conflito da pedra contra as balas e os tanques sob suas diversas formas. “Guerra pela terra, a pedra contra o tanque/ Guerra altera a terra nada será como antes“, afirmam os versos.

Em Morte e Vida Stanley, a criança que nasce, filho de uma de muitas Marias, é “mais um homem pra trabalhar“. O nome americanizado não disfarça mais um `severino`.

No início do disco, há a música que canta de dentro da prisão, Aqui (ou Memórias do Cárcere), precedida da poesia Tlank, de Manoel Filó, sobre o momento em que alguém sai da cadeia. No encarte azul, um homem se transforma em borboleta. Manoel Filó, principal influência poética de Lirinha, morreu recentemente e é homenageado com essa primeira faixa.

Já a última música do álbum, Na estrada (ou quando encontrei Dean pela primeira vez) aponta um infinito pela frente, afirmando “nossa vida é feita assim/Na estrada“ e “vou por aqui/ vou por alí/ o infinito é tão longe“. Os versos, vindos de um grupo nordestino que mora em São Paulo, resgatam mais do que a trilha de muitos retirantes, mas o sentimento nômade, viajante, desbravador da literatura de Jack Kerouac.

Transfigurado
Em todo o CD há uma forte presença e influência da literatura brasileira e mundial. Além dos títulos, as músicas possuem subtítulos ou segundos títulos. E estes são sempre nomes de livros que influenciaram o grupo. Há Graciliano Ramos, Ítalo Calvino, Nietzsche, Euclides da Cunha e João Cabral de Melo Neto, entre outros.

Transfiguração nasceu de uma dinâmica diferente, pois já era para ser um CD, sobre o qual se criou o espetáculo. Os dois álbuns anteriores, inicialmente eram shows e se converteram em discos. A mudança na ordem de criação trouxe um maior rigor musical.

As metamorfoses do encarte e o caminho musical seguido parecem dizer que o grupo se sente mais livre para criar. Mas não há dúvidas de que lá está o Cordel. Como na química, tudo aqui se transforma, sem que nada se perca.

Um show encantado
Apesar das observações sobre o disco novo, é importante lembrar que o verdadeiro Cordel, o melhor do Cordel, está no palco e não nas lojas. Ouvir o disco novo é apenas um convite para o espetáculo.

E nesta nova apresentação do grupo nos palcos, o Cordel está mais encantado que nunca. Os meninos parecem se divertir produzindo sons que fazem a platéia voar. A força das percussões parecem gerar terremotos sob os pés. Lirinha faz malabarismos com uma lamparina acesa, se pinta de palhaço, dança, interpreta, ri, chora.

Lirinha conta que a música Ela disse assim (ou A teus pés) fala sobre uma moça linda que pulou do alto de um prédio e “morreu-se“. E canta com a dor e solidão de um suicida. O verso “se ela quer voar é porque tem asas“ é seguido de pungentes gritos de `não` e tambores nervosos.

Ele também dedica a música Joana do Arco (ou Agitprop) a uma guerrilheira cubana de mesmo nome. Explica que Agitprop é agitação e propaganda. O termo se refere ao teatro didático revolucionário, que tem como principal influência Brecht. A música chama a Joana de Fogo a salvar o povo: “Venha levantar pétala caída/ com seu alimento/ Paz, Ira“. E aponta a renovação, cantando “flores que arrancamos vão nascer de novo“.

O público não pede bis de forma tradicional. O grupo sai do palco e seu retorno se dá depois que a platéia, com centenas de vozes juntas, recita do começo ao fim os versos de Ai se sêsse, do poeta Zé da Luz, poesia presente no primeiro disco do grupo.

Essas cenas são do espetáculo de lançamento do disco em São Paulo. Outras tantas estão encantando o público pelo país, por onde o Cordel leva sua Transfiguração. Ao final dos espetáculos, quem se transfigura é a gente.

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