É inegável que a morte do “Rei do Pop” mexeu com todo mundo. O impacto do falecimento do cantor pode ser facilmente verificado pela cobertura nos meios de comunicação, que estão transformando sua morte no exemplo mais acabado do que foi sua própria vida: um espetáculo midiático.

Para muita gente que cresceu e se tornou jovem, em diferentes gerações e setores sociais, entre os anos 1960 e 1980, o que aconteceu na tarde do dia 25, em Los Angeles, foi a morte de alguém que, infelizmente, há muito não tinha nada a ver com os memoráveis “The Jackson Five” ou com revolucionário clipe de “Thriller”. Para muitos, o que temos visto parece-se mais com o fim de um agonizante velório. Uma quase segunda morte.

A primeira se deu lá por meados dos anos 1990, quando o genial dançarino, cantor de timbres inigualáveis e compositor inspirado mergulhou de vez na fantasia que ele construiu em torno de si próprio. Quando o Peter Pan negro se perdeu definitivamente numa alucinada e doentia “Terra do Nunca”, construída com os estilhaços da vida de um sujeito que teve sua infância roubada por um pai autoritário e violento, que entrou numa guerra insana contra sua etnia, sua idade e, também, sua sexualidade. E que, no meio de tudo isso, perdeu sua genialidade artística e musical.

Era uma vez, cinco meninos pobres que…
Sua história começou como a de muitos outros astros da música negra: jovens talentosos, de bairros pobres, dispostos a tudo para fazer sucesso, num mundo dominado por brancos e ricos. O problema adicional, no caso de Michael e seus irmãos (Jackie, Tito, Jermaine e Marlon), é que, por trás do talento deles, estava o pai Joseph “Joe” Jackson. Um músico frustrado e ambicioso que decidiu transformar seus filhos num pote de ouro e os treinava para o sucesso com métodos fascistas: de surras de cinta a horas exaustivas de trabalho contínuo.

Entre os muitos traumas possivelmente deixados pelo Sr. Joe Jackson, muitos destacam a eterna e autodestrutiva guerra que Michael travou contra sua negritude e aparência. O pai costumava chamá-lo apenas de “macaco feio” e ironizava constantemente seu “enorme nariz”. Todo mundo sabe o quanto de absurdo (entre eles, 50 operações plásticas) o cantor fez para “corrigir esses defeitos”.

…viraram “The Jackson Five”
Mas, em meio à explosão de musicalidade e orgulho negros em meados da década de 60, nem mesmo a truculência de Joe poderia barrar o talento dos garotos, principalmente de Michael. Com pouco mais de cinco anos, ele já encantava o mundo com sua afinadíssima voz dando vida a canções que fizeram dançar e sonhar, como “A.B.C.”, “The love you save”, “I’ll be there” e “I want you back”.

Em 1968, eles migraram para a Motown, a mítica gravadora de música negra. E a lenda em torno de Michael começou a tomar vida própria. Foi seu rosto que estampou os quatro discos que rodaram em vitrolas e estações de rádio dos quatro cantos do mundo: “Got be there” (1972), “Ben” (1972), “Music, me” (1973) e “Forever, Michael” (1975).

Gênio do pop, rei da mídia
A soma de presença em todos os meios e um talento ainda vibrante fez com que o seu primeiro disco solo, “Off the wall”, vendesse impressionantes 25 milhões de cópias. Contudo, foi no início dos anos 1980 que Michael Jackson realmente mostrou a que veio. Dezembro de 1982 foi a data de lançamento de “Thriller”, considerado até hoje o disco mais vendido de todos os tempos, com cerca de 100 milhões de cópias.

Faturamento à parte, tudo que diz respeito a esse álbum mexeu profundamente com a “cultura pop” e com a própria indústria da música. O enorme sucesso do disco não foi, porém, um produto da mídia. Foi o enorme impacto na juventude de todo o mundo que fez com que o disco atingisse números nunca vistos, ficando por mais de seis meses em primeiro lugar nas paradas e com nada menos do que sete, de suas nove canções, entre as dez músicas mais tocadas.

Para muitos, as faixas “Thriller”, “Billie Jean” e “Beat it” redefiniram a história da música contemporânea. O disco deu a Michael um papel central na criação e popularização daquilo que é a própria essência da chamada “musica pop”. Sua música misturava James Brown com “rock progressivo”; fazia um Marvin Gaye ainda mais romântico; promovia o encontro de Stevie Wonder com o rock, dava mais ritmo soul a Elvis Presley e lançava Bill Haley numa pista de disco.

“Thriller” também fez com que ele deixasse, para sempre, sua marca na história da dança. Dando a ela sua forma “pop”, Jackson fez com que os passos de Fred Astaire se fundissem com os de dançarinos de “break”, que pipocavam pelos bairros negros. É bom lembrar que por trás de muito disso estava a mente igualmente genial do produtor Quincy Jones, o músico de jazz que foi o principal parceiro criativo do cantor neste período. Aliás, sua saída, logo depois do lançamento de “Bad” (1986), foi um dos primeiros indícios da queda na qualidade artística de Michael.

Nasce “Wacko Jacko”…
Foi também no final da década de 1980 que as excentricidades de Michael começaram a se sobrepor ao seu talento. Neste período, começaram a surgir todo tipo de justificativa (como uma misteriosa e rara variação de vitiligo) para que Michael começasse, literalmente, a embranquecer.

No início dos anos 1990, a visível decadência do cantor começava a chamar a atenção e passou a se tornar seu principal “espetáculo”. Com uma aparência cada vez mais andrógina e artificial, o seu principal palco para essas aparições passou a ser o bizarríssimo rancho “Neverland” (Terra do Nunca).

A “casa” de Jackson, comprada por US$ 28 milhões, foi onde o cantor viveu cercado de crianças (de astros mirins a jovens carentes e doentes). Muitas delas, anos mais tarde, estariam no centro de escândalos envolvendo acusações de abuso sexual.

Os tabloides de Londres não demoraram para dar um nome nada lisonjeador ao “novo personagem”: “Wacko Jacko”, algo como “Jackson Maluco”.

…que virou branco e ficou triste!!!
Devemos a Gilberto Gil um dos versos síntese do que aconteceu com Michael nos últimos vinte anos: quanto mais branco ele ficava, mais triste e patética era sua figura.

Em 1993, uma primeira acusação de abuso sexual teve o peso de uma pá de cal na vida de Michael. E, apesar de um acordo de US$ 20 milhões ter livrado o cantor da cadeia, o estrago foi generalizado, dando início a uma agonia pública.

Teve de tudo. O apressado e meteórico casamento com a filha de seu ídolo Elvis Presley. Filhos programados com o mesmo cuidado com que se sacode uma criança pela varanda de um hotel. E caixas e mais caixas de antidepressivos e tranquilizantes.
Enquanto isto, as vendagens caíam. “Invicible”, lançado em 2001 (e o disco mais caro produzido até então, com um custo de 30 milhões de dólares), vendeu pouco mais que 10 milhões de cópias; “Number Ones”, 6 milhões; “The essential”, 2,5 milhões; “King of Pop” não chegou aos 2 milhões.

Na proporção inversa cresciam as dívidas, as quebras de contrato e os súbitos desaparecimentos. Os 50 shows programados para Londres seriam uma espécie de tentativa um tanto desesperada de “retorno” após 12 anos de ausência dos palcos. Mas havia pouca esperança de ver ressurgir o velho Michael Jackson que se encontrava enterrado em algum canto da bizarra figura em que ele se transformou.

Para aqueles que simplesmente cresceram dos anos 1960 para cá, o personagem que sempre continuará vivo, em memórias trazidas à tona por uma quantidade razoável de ótimas músicas e momentos inesquecíveis, será a do jovem negro Michael Jackson, que tinha um suinge e uma voz que, literalmente, fizeram história.

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