Renúncia de Bento 16 expõe uma Igreja em crise, retrógada e mergulhada em escândalos

Oito anos após ter sucedido João Paulo 2º, o papa Bento 16 surpreendeu o mundo ao anunciar que renunciará no dia 28 de fevereiro. Até mesmo os altos funcionários do Vaticano foram pegos de surpresa. Afinal, Bento 16 se tornará o primeiro papa a renunciar nos últimos 600 anos. O último foi Gregório 12, que deixou o cargo em 1415 devido a uma enorme crise na Igreja.
A versão oficial sustentada pelo Vaticano é de que a renúncia de Bento 16 se deve à “falta de condições físicas” de um papa ancião, com 85 anos de idade, que não teria mais forças para chefiar a Igreja Católica. Porém os dias que se sucederam após o anúncio mostram que o desligamento está relacionado a uma profunda crise no interior da Igreja, marcada por escândalos de pedofilia, corrupção e muitas intrigas.
 
Crise interna
Após a renúncia, Bento 16 realizou pronunciamento públicos no qual criticava a “hipocrisia religiosa”, “a divisão” que estaria “desfigurando a Igreja”.  Segundo analistas, o alvo das críticas do papa seriam grupos comandados pelo cardeal Tarcísio Bertone, uma espécie de primeiro ministro do Vaticano incumbido de governar a poderosa Santa Sé.
O Vaticano é o Estado mais obscuro de todo o mundo, um monastério absolutista sobre o qual o papa tem mandato vitalício e controla sozinho os poderes Judiciário, Executivo e Legislativo. Portanto, os detalhes das intrigas e da crise que levaram Bento 16 a renunciar talvez nunca sejam totalmente revelados. Porém a renúncia do papa não deixa de ser mais um capítulo de um pontificado marcado por um farto cardápio de crises, escândalos e disputa de poder.
 
Documentos revelados
Em 2012, documentos internos do Vaticano vazaram para jornalistas italianos, revelando uma intrincada luta pelo poder no Vaticano. Também no início de 2012, uma carta anônima virou manchete por alertar sobre uma ameaça de morte contra o papa. O Vatileaks, como foi chamado o vazamento (em referência ao fenômeno Wikileaks), também revelava documentos sobre transações do Instituto para as Obras de Religião, o chamado Banco do Vaticano.
O banco é investigado por fraudes e lavagem de dinheiro no valor de 180 milhões de euros. O ex-presidente da instituição, Ettore Gotti, é investigado por um esquema de lavagem de aproximadamente 23 milhões de euros.
 
Pedofilia
Quando o alemão Joseph Ratzinger assumiu o Papado, em 2005, dizia que as denúncias de pedofilia envolvendo padres católicos não passavam de uma mera “campanha planejada para prejudicar a Igreja Católica”. Não imaginava que, em seu pontificado, explodiriam as mais graves denúncias sobre abusos sexuais de crianças. Tão graves que os governos da Suíça e dos Estados Unidos afirmaram que criariam um cadastro para fichar padres pedófilos. O abuso sexual de menores arrastou até mesmo importantes figuras da Igreja, como Marcial Maciel, fundador da Congregação dos Legionários de Cristo.  
Mas os casos de pedofilia já ocupavam as páginas dos jornais antes mesmo da morte de João Paulo 2º. O caso mais famoso envolvia padres da Arquidiocese de Boston, nos EUA. Mesmo com provas e, inclusive, com a confissão de culpa de alguns sacerdotes, o Vaticano adotou uma posição leve, enfurecendo as vítimas de abuso sexual.
As denúcias de pedofilia não paravam de se acumular e desgastaram profundamente a Igreja Católica. Diante dessa situação, Bento 16, que foi acusado de encobrir vários casos de padres pedófilos, foi obrigado a reconhecer que tal crime era praticado no interior da Igreja e pediu “desculpas às vítimas”. No entanto, muitos casos seguem encobertos, revoltando milhares de vítimas.

Legado de Bento 16
Bento 16 teve muito mais impacto sobre a Igreja Católica do que é noticiado nos grandes meios. Impacto esse que não tem nada a ver com sua breve passagem à frente da instituição, mas sim como braço direito de João Paulo 2º, o papa polonês que impôs o centralismo férreo para impor a ortodoxia ultraconservadora. Foi com João Paulo 2º que o cardeal Ratzinger se tornou chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, instituição sucessora da Santa Inquisição. Com punho de ferro, ambos sufocaram quaisquer discussões sobre os padres casados e o celibato, a ordenação de mulheres, a contracepção e o aborto.
Muito antes de se tornar papa, Ratzinger moveu uma verdadeira cruzada contra todas as manifestações progressistas da Igreja, como a Teologia da Libertação, cuja opção pelos pobres e por uma Igreja popular foi duramente condenada e seus porta-vozes silenciados.
O cardeal Ratzinger também não escondia suas posições a respeito da homossexualidade, vista por ele como uma “enfermidade”, ou ainda sua radical oposição contra o aborto, o uso da camisinha e o divórcio. Ao longo de seu pontificado, Bento 16 não cedeu um milímetro nestas questões. Pelo contrário, reafirmou seus vetos retrógados, cada vez mais inviáveis à luz dos grandes acontecimentos mundiais.
Em todo o mundo, especialmente na Europa e na América Latina, os movimentos têm arrancado conquistas e resgatando o caráter laico da legislação sobre o aborto ou a união civil LGBT. Como exemplos mais recentes, podemos citar Uruguai e a França.
Se hoje muitos analistas falam que disputas pelo poder no interior da Igreja levaram Bento 16 a renunciar, é importante assinalar que muitos dos atuais “inimigos” do papa – como o próprio Tarcisio Bertone – ascenderam ao poder justamente para sustentar o perfil ultraconservador do seu pontificado.  A verdade é que Bento 16 sustentou seu papado com os grupos mais reacionários e conservadores da Igreja como, por exemplo, a Opus Dei.
 
Vaticano está longe da primavera
Um novo papa será escolhido no mês de março. Mais uma vez, em meio a inúmeras especulações e informações desencontradas que circulam nos grandes meios, alimenta-se a expectativa de que a Igreja possa escolher um líder mais progressista, sintonizado com as transformações do mundo. Como em 2005, na sucessão de João Paulo 2º, especula-se até a possibilidade de um novo papa latino-americano ou da África.
Apesar da renúncia, Bento 16 poderá interferir diretamente em sua sucessão. Dos 117 cardeais que participarão do conclave que elegerá o novo papa, 67 foram escolhidos por ele.
Como comparou David Gardner, do Financial Times, “os eleitores Papais são um pouco como o FMI ou o Banco Mundial no fato de terem uma representação desproporcional de europeus, geralmente escolhidos por seu conservadorismo (cerca de um quinto é de italianos, e quase dois quintos são burocratas do Vaticano)”.
A esperança de uma “primavera” no Vaticano não passa de vã ilusão. Apesar das disputas e crises, a Igreja Católica vai seguir no curso da ortodoxia conservadora. E o abismo entre sua retrógrada ortodoxia e seus fiéis tende a aumentar cada vez mais.

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