O parlamento venezuelano aprovou o projeto de reforma constitucional do presidente Hugo Chávez, que altera 33 artigos – ou 10 % da atual constituição promulgada em 1999. O próximo passo será submetê-lo a um plebiscito previsto para 2 de dezembro. Segundo matéria publicada no site da CUT em 25 de agosto, “a proposta cria as bases institucionais para o socialismo na Venezuela, o aprofundamento de sua democracia e o desenvolvimento do país e do povo”.

A CUT não é a única entidade dos trabalhadores que pensa assim. O MST e o PSOL, por exemplo, avaliam que a Venezuela está caminhando para o socialismo do século 21. Resta perguntar se, em apenas três meses de discussão no congresso e mexendo em apenas 10% da constituição de um país capitalista, pode-se chegar ao socialismo. Nesse caso, os ensinamentos de Marx e Lênin – de que apenas com uma revolução social pode-se derrubar o capitalismo, expropriar a burguesia e marchar rumo ao socialismo – estariam totalmente errados.

O que é a reforma constitucional de Chávez afinal? O objetivo dessa análise é mostrar que esta reforma está longe de levar o país ao socialismo. Pedimos a paciência do leitor, pois toda leitura deveria ser atraente e prazerosa, mas isso nem sempre é fácil de se conseguir, principalmente na análise de textos constitucionais.

Expropriação da burguesia
O socialismo é uma sociedade sem patrões, onde a classe operária, aliada aos trabalhadores da cidade e do campo, detém o poder e governa para garantir todas as necessidades da população que antes era explorada pelo capitalismo. Para isso, fábricas, bancos e terras deixam de ser propriedade privada de meia dúzia de milionários e passam a ser propriedade coletiva de todo o povo. O socialismo exige, também, uma luta sem tréguas contra o imperialismo, mesmo após a tomada do poder pelos trabalhadores.

Porém nada disso se encontra no projeto de reforma constitucional chavista. Ao contrário, o artigo 115 afirma que “a propriedade privada é aquela que pertence a pessoas naturais ou jurídicas e que se reconhece sobre bens de uso e consumo, e meios de produção legitimamente adquiridos”.

O reconhecimento explícito da propriedade privada, contudo, está ao lado de outras formas de propriedade, como a estatal, as empresas mistas, cooperativas, etc., o que dá margem para que a esquerda afirme que a propriedade privada foi superada. Mas fórmulas jurídicas nunca estão acima da realidade econômica. Numa economia de mercado, com uma grande maioria de empresas privadas, as demais formas serão sempre complementos e, rapidamente, serão privatizadas, engolidas pela concorrência ou “legitimamente adquiridas” pelos grandes monopólios.

Porém a CUT alega que a reforma constitucional abolirá o latifúndio e os monopólios, o que seria um passo gigantesco para a autodeterminação do povo venezuelano. Com efeito, pode-se ler nos artigos 113 e 307 que “Proíbem-se os monopólios” e “Proíbe-se o latifúndio por ser contrário ao interesse social”. No entanto, o monopólio e o latifúndio já são proibidos na atual constituição e nem por isso deixaram de existir num país governado por Chávez com plenos poderes para emitir decretos sem necessidade de aprovação pelo parlamento. Portanto, que garantia o povo venezuelano pode ter de que agora se dará um fim a estas duas formas de exploração? Mais uma vez a realidade econômica ficará acima das fórmulas jurídicas.

Socialismo do século 21
O próprio Chávez, porém, já declarou que no socialismo do século 21 cabem trabalhadores e patrões, o que pressupõe a manutenção da propriedade privada. O caminho do socialismo não passaria, então, pela expropriação da burguesia, mas, talvez, pelo “aprofundamento de sua democracia e o desenvolvimento do país e do povo”.

Nesse caso, nossa busca pelo socialismo passa pelo artigo 16, que prevê que “a partir da comunidade e a comuna, o Poder Popular desenvolverá formas de agregação comunitária político-territorial, as quais serão reguladas na Lei, e que constituem formas de Autogoverno e qualquer outra expressão de Democracia Direta”, além de conselhos de trabalhadores, de estudantes e de camponeses. Num único artigo constitucional, condensa-se a história do Poder Popular da Revolução Francesa, da Comuna de Paris e dos conselhos da Revolução Russa. Mas estas formas de organização operária e popular foram conquistadas pela população em luta contra o poder e a própria constituição. Não é o caso do socialismo do século 21. Ali, estas organizações estão sujeitas “a um referendum popular convocado pelo Presidente da República”, enquanto o artigo 136 as coloca em seu devido lugar, afirmando que “o Poder Público se distribui territorialmente na seguinte forma: o Poder Popular, o Poder Municipal, o Poder Estadual e o Poder Nacional”.

Em outras palavras, o Poder Popular é a menor célula constituinte do Poder Público e fica submetido aos poderes municipal, estadual e nacional, isto é, não há poder de fato. Para ser reconhecido, precisa da aprovação do presidente do país. Nada de luta, nem de contestação do poder, apenas obediência cega. Restará ao povo venezuelano o consolo de saber que, ao menos em sua casa, ele manda…

Aprofundamento da democracia?
Se a propriedade privada será mantida, se o poder popular ficará restrito à sua comunidade e seu reconhecimento sujeito à aprovação pelo presidente, então o socialismo do século 21 seria, talvez, o “aprofundamento da democracia”. Atualmente, a Venezuela está sendo submetida a um recrudescimento do regime. Os decretos presidenciais, sem aprovação pelo congresso; o fechamento da rede de televisão RCTV e sua apropriação pelo governo, sem nenhuma forma de gestão pelos trabalhadores; as ameaças de fim da autonomia sindical com a exigência de que todas organizações políticas e sindicais entrem no PSUV – um partido burguês comandado por Chávez – são apenas algumas das medidas antidemocráticas tomadas pelo governo no último período.

A reforma constitucional não porá um fim nesses ataques à democracia, mas os institucionalizará. Todos os órgãos de gestão do Estado passarão a ser presididos diretamente pelo presidente, como o Conselho Nacional de Governo e o Conselho de Estado, que hoje são controlados pelo vice-presidente.

O Banco Central fica subordinado ao presidente da república que, além disso, será o “administrador da Fazenda Pública Nacional”. Isto é, acumulará as funções do ministro da Fazenda, como pode ser lido no artigo 318: “As reservas internacionais da República serão dirigidas pelo Banco Central da Venezuela, sob a administração e direção do Presidente ou Presidenta da República, como administrador ou administradora da Fazenda Pública Nacional”.

As reservas internacionais são o principal fator de estabilização da dívida externa de um país, pois são utilizadas para o pagamento dos juros da dívida pública ou para permitir que as dívidas privadas sejam pagas. Seu controle será exercido diretamente por Chávez, que concentrará em suas mãos a política monetária nacional. Nada se fala do controle pelos trabalhadores ou pelas comunas e Poder Popular sobre o Banco Central.

A reforma constitucional prevê um aprofundamento, não da democracia, mas do ataque às liberdades democráticas, como denuncia o dirigente sindical e coordenador da União Nacional dos Trabalhadores (UNT), Orlando Chirino, em relação ao artigo 337, que abole o livre direito de informação. Chirino afirma que “cinco anos depois, nos encontramos com a triste realidade de que o governo, além de não ter feito muito para castigar os responsáveis por esse crime contra a humanidade, contra a soberania do país, contra os trabalhadores e o povo, propõe reformar o artigo 337 da constituição, liquidando as concessões e a liberdade de informação. Com esse artigo, o golpe fascista de Pedro Carmona [em 2002] é legitimado, porque foi isso que ele fez durante angustiantes 42 horas”.

Porém a maior mudança que a constituição faz na questão do poder é no artigo 230. Ao invés do mandato atual de 6 anos e apenas uma reeleição, o projeto de Chávez determina que “o período presidencial é de sete anos. O Presidente ou Presidenta da República pode ser reeleito ou reeleita imediatamente para um novo período”. A frase “por uma só vez” da atual constituição foi retirada. Numa constituição onde o presidente militar concentra todos os poderes, com possibilidade de reeleição eterna, não resta nem sombra de “aprofundamento da democracia”, mas sim a consolidação de um regime bonapartista, embora com o apoio da maioria da população.

A questão das nacionalizações
A Venezuela tem a sexta maior reserva petrolífera mundial e é o maior exportador de petróleo para os EUA. No entanto toda essa riqueza não serve para melhorar a vida dos trabalhadores, mas apenas para enriquecer cada vez mais as multinacionais. É por isso que a nacionalização do petróleo sem indenização é uma reivindicação de massas em países como a Venezuela e a Bolívia, onde tem o apoio de 80 % da população.

Nacionalizar sem indenizar significa exercer o monopólio estatal de fato, expulsando as multinacionais petroleiras do país sem a necessidade de pagar pelas instalações, que já estão mais do que pagas depois de tantos anos de exploração.

Se Chávez quisesse, poderia nacionalizar toda a indústria de extração e produção de derivados de petróleo, apoiado numa grande mobilização popular, e iniciar uma verdadeira revolução em seu país. Mas isso não passa pela sua cabeça. Prefere garantir para o Estado o “desenvolvimento e interesse nacional, a atividade de exploração dos hidrocarbonetos líquidos, sólidos e gasosos, assim como as explorações, serviços e bens de interesse público e de caráter estratégico”, para melhor entregar tais recursos naturais às multinacionais através das “empresas mistas”, definidas no artigo 115 como sendo “conformadas pelo setor público, o setor social, o setor coletivo e o setor privado em distintas combinações”. Isto é, o que é tirado por um artigo é garantido por outro e, assim, as multinacionais poderão continuar explorando tranqüilamente as riquezas naturais do subsolo venezuelano, naturalmente sob o comando de Chávez e suas empresas mistas.

Direitos trabalhistas
A reforma constitucional reduz a jornada de trabalho, de 44 para 36 horas semanais. Aparentemente, trata-se de uma grande conquista do movimento operário, mas ela não pode vir sozinha. A redução da jornada só seria efetiva se viesse acompanhada de uma série de medidas, como a proibição de redução salarial, a estabilidade no emprego, o fim do trabalho precarizado, etc.

No projeto chavista nenhuma dessas medidas é prevista. Assim, os patrões poderão livrar-se do custo extra gerado pela redução da jornada com a redução proporcional do salário, demissões, o aumento do ritmo de trabalho e o aumento do trabalho precarizado.

A própria reforma dá essa margem ao patrão, ao institucionalizar a figura do trabalhador precário no artigo 87, convenientemente chamado de “trabalhador por conta própria”. Como na Venezuela a grande maioria dos trabalhadores recebe o salário mínimo, que equivale a menos da metade de uma cesta básica, e 50 % “trabalha por conta própria”, pode-se ter uma imagem de como será o mundo do trabalho após a reforma constitucional, a não ser que os trabalhadores, mais uma vez, enfrentem os ataques que certamente virão.

As Forças Armadas Bolivarianas
Em qualquer Estado capitalista, as Forças Armadas são a instituição mais importante para a burguesia, mesmo que os soldados fiquem anos aquartelados. Isto fica evidente nos golpes militares, mas também nas invasões das favelas cariocas, na guerra do Iraque e na ocupação do Haiti por tropas brasileiras.

No socialismo, ao contrário, quem faz a defesa do país é o povo em armas, para garantir sua liberdade contra os ataques da burguesia. Isso pressupõe o direito de organização sindical e política dos soldados, o direito de livre expressão à base do exército e a substituição da hierarquia militar pela democracia dos conselhos.

Mas Chávez escolheu o caminho do fortalecimento da hierarquia das Forças Armadas, mesmo que lhes dê o nome de Bolivariana. Por isso, sua reforma constitucional afirma que “seus pilares fundamentais são esta Constituição e as leis, assim como a disciplina, a obediência e a subordinação”. Para os soldados, não existem nem comuna, nem Poder Popular e nem conselhos. Sobraram apenas obediência e subordinação ao comandante supremo: o presidente Chávez.

Cuba e Venezuela
Cuba e Venezuela são os países que a maioria da esquerda latino-americana afirma estarem trilhando o caminho do socialismo. Cuba fez uma revolução que expropriou e expulsou a burguesia de seu país em 1959 e a Venezuela estaria, hoje, seguindo os mesmos passos.

A aliança de Fidel com Chávez tem uma dupla conveniência. Cuba passa por um processo de restauração capitalista e não pode ser mais caracterizado como um país “socialista”, mas apóia-se na novidade chavista para manter seu prestígio mundial perante a esquerda. Chávez não fez o mesmo que Fidel em 1959. Não expropriou a burguesia nem a expulsou. Ao contrário, promove empresas mistas com ela e lhe dá garantias constitucionais de existência. Por isso apóia-se em Fidel para que o passado da revolução cubana lhe empreste uma aura socialista.

Longe de uma aliança revolucionária, trata-se de seu contrário, para impedir o avanço da revolução. Se hoje a constituição cubana não prevê mais o controle estatal do comércio exterior e permite a instalação de empresas capitalistas em seu território, a reforma constitucional de Chávez mantém as características capitalistas da constituição atual.

O socialismo do século 21 é o amálgama dos restos de um ex-estado operário, onde só ficou a ditadura castrista, com um estado capitalista semicolonial, sob o bonapartismo chavista. Mas a palavra final não está dada. A revolução venezuelana segue seu curso, apesar da tentativa de domesticá-la através dessa reforma. Como sempre acontece em processos revolucionários, serão as massas venezuelanas que darão a última palavra.