Os trabalhadores perdem duas vezes. Com a diminuição dos seus salários e benefícios e com a degradação dos serviços públicos causada pela redução da arrecadaçãoEstá em curso no país mais um capitulo da novela das relações pouco ortodoxas entre parte do movimento sindical e o empresariado aqui instalado (nacional e transnacional). Dois seminários que ocorreram recentemente, um na FIESP e outro no ABC Paulista (envolvendo CUT, Força Sindical, Sindicatos dos Metalúrgicos do ABC e de São Paulo, FIESP e as empresas Fabricantes de Veículos), ilustram bem os objetivos que movem essas organizações. As informações em torno das quais vou tecer alguns comentários neste artigo encontram-se nos sítios eletrônicos do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e da FIESP.

Trata-se, como diz o título do seminário realizado na FIESP, da busca de um “acordo entre trabalhadores e empresários pelo futuro da produção e do emprego”. Na verdade, está se gestando mais um fórum ao estilo das Câmaras Setoriais, comuns na década de 90 do século passado, onde se pavimentou o caminho para grande parte da flexibilização dos direitos dos trabalhadores de que padecemos hoje. Para não ir longe, basta lembrar que o “banco de horas” ou “banco de dias”, que permite às empresas burlar a lei da jornada de trabalho em prejuízo dos trabalhadores, nasceu aí.

Qual é o mote da discussão? A alegação das empresas é a necessidade de medidas que limitem as importações. Dizem que o crescimento das importações leva à “desindustrialização” do país e à perda de postos de trabalho, e tentam pintar essa demanda com cores nacionalistas, de defesa da indústria nacional (o detalhe é que um dos setores de vanguarda na defesa dessa posição é o das multinacionais fabricantes de veículos). As fabricantes de veículos instaladas no Brasil respondem hoje pela produção de 82% dos veículos comercializados, e apresentam estudos dizendo que em 14 anos responderão por 66% da produção a permanecer a situação atual. Perderão espaço para os importados. Com diferenças aqui e ali, dada a especificidade de cada setor, essa é a reclamação generalizada entre os empresários do setor industrial.

O que o empresariado quer com isso? Pressionar o governo pela redução de impostos e por barreiras alfandegárias contra os importados; e os trabalhadores, pela redução dos salários e benefícios. Dessa forma, dizem, reduzidos os custos, os produtos aqui fabricados ficam mais competitivos. Notem: não dizem mais baratos, dizem mais competitivos, e isso não é um detalhe. As fabricantes de veículos, por exemplo, reclamam da entrada dos importados, mas não falam nada do preço que praticam aqui, um dos mais altos do mundo.

O jornalista Joel Leite, em uma série de artigos intitulados “Lucro Brasil”, nos informa que a Volkswagen fabrica o Gol I-Motion aqui em nosso país e vende esse carro aos brasileiros por 46 mil reais. Vende o mesmo carro aos chilenos por valor correspondente a 29 mil reais! A Toyota vende o seu Corola no Brasil por US$ 37,600, vende o mesmo carro na Argentina por US$ 21,600 e nos EUA por US$ 15,400!!! A diferença não é a carga de impostos, menos ainda pelo custo da mão de obra (os trabalhadores brasileiros não ganham mais que os dos EUA). Trata-se do lucro absurdo que é praticado por essas empresas aqui no Brasil. Não é coincidência elas serem as unidades mais lucrativas de toda a rede que essas transnacionais têm no mundo.

E essa é também a realidade de todos os setores mais importantes da indústria aqui instalados. É obsceno o crescimento do lucro dessas empresas. Apenas nos últimos anos, durante os mandatos de Lula, o lucro das maiores empresas do país cresceu cerca de 290%, conforme as consultorias especializadas no assunto E ainda choram dizendo que é preciso reduzir custo da mão de obra… Por acaso os salários dos trabalhadores cresceram também 290% durante os últimos 8 anos? A carga tributária em nosso país é alta sim, mas penaliza principalmente os trabalhadores, os assalariados e não os grandes empresários. São os trabalhadores que pagam mais impostos no país, proporcionalmente à sua renda, seja pelo imposto de renda retido na fonte, seja pelos impostos indiretos embutidos nos preços das mercadorias que compramos no nosso dia-a-dia.

É evidente a hipocrisia da reclamação das empresas. Porque elas – as montadoras de veículos, por exemplo – simplesmente não diminuem um pouco sua margem de lucro, reduzem o preço dos veículos, o que levaria necessariamente ao aumento das vendas? Possibilitaria mais investimentos na indústria e mais empregos para os trabalhadores. Na verdade, o que elas querem não é aumentar a produção, gerar mais empregos, nem nada no estilo. Querem mais lucro (aliás, é atrás destes lucros fabulosos que estão também os importados). E é mais lucrativo nesse caso vender menos veículos com um lucro alto por unidade do que mais veículos com um lucro menor por unidade (no capitalismo, o aumento dos investimentos em capital fixo diminui a taxa de rentabilidade).

Retirada a máscara que tentam construir com os títulos pomposos e expressões como “romper a barreira do subdesenvolvimento”, usada por um sindicalista referindo-se ao seminário com a FIESP, o que temos é a mais tradicional das práticas do grande empresariado. Pressionar o governo para diminuir impostos, por incentivos e isenções fiscais por um lado e, por outro, pressionar os trabalhadores para redução de salários e benefícios. Para quê? Aumentar os lucros. No seminário da FIESP, o economista Bresser Pereira chegou a defender abertamente a redução do salário real em 30% em três anos, para aumentar investimentos e empregos, dizendo na maior cara de pau que a troca seria vantajosa para os trabalhadores, pois o “custo é pequeno”. Bem como dito, essa é a atuação normal dos capitalistas. A pergunta que se coloca então é: o que estes dirigentes sindicais estão fazendo aí?

Argumentam, os dirigentes da CUT e da Força Sindical, que é preciso criatividade e “ousadia” para defender o emprego dos trabalhadores. Ora, será que não passou pela cabeça desses dirigentes questionar os altos lucros das empresas e defender uma redução deles, para diminuir preços e aumentar vendas, gerando assim mais empregos? A única criatividade e ousadia de que são capazes é somar-se ao empresariado para defender redução de impostos e mais sacrifico dos trabalhadores? Pior, os argumentos que levantam agora já foram refutados de forma categórica pela experiência recente que esses mesmos dirigentes viveram, com as Câmaras Setoriais.

Veja: em 1993, época dos primeiros acordos das Câmaras Setoriais, a produção total de veículos no Brasil estava concentrada em algumas montadoras (VW, GM, Ford e Fiat). Nesse ano, tínhamos 106 mil trabalhadores na indústria automobilística no Brasil que produziram 1.017.550 automóveis de passeio. Uma média de 12,4 autos por trabalhador no ano. E o faturamento líquido do setor chegou a pouco mais de 31 bilhões de reais. Em 1998, a indústria precisou somente de 83 mil trabalhadores, mas a produção de carros por trabalhador cresceu para 18,1 carros anos. E o faturamento das empresas chegou a quase 43 bilhões de reais. Se ampliarmos a comparação, vamos ver que, de 1980 a 2008, mesmo com a introdução de novas empresas, o emprego total no setor baixou em 18%. Mas o número total de veículos produzidos subiu em 186%. A produção carro por trabalhador cresceu 251% (de 7,8 para 27,4 carros ano por trabalhador).

O governo federal e governos estaduais seguem ajudando fortemente essas e outras empresas. A quase totalidade dos investimentos feitos pelas montadoras de veículos no Brasil neste período forma bancadas com recursos do BNDES (recurso do FAT, Fundo de Amparo ao Trabalhador!), emprestados a juros de “pai para filho” a essas multinacionais. Redução de impostos e subsídios ao crédito para venda de carros foram uma constante por parte do governo federal. O governo de São Paulo, além de incentivos e isenções fiscais para favorecer essas empresas, destinou a elas 4 bilhões de reais (recursos públicos) só no momento mais agudo da crise econômica, em 2008. Aos trabalhadores, coube o sacrifício: intensificação do ritmo de trabalho, demissões e redução dos ganhos e benefícios. Estudo do Dieese mostra uma redução de quase 50% no salário médio dos trabalhadores da iniciativa privada no estado de São Paulo, de meados da década de 80 até 2009.

O resultado do pacto chamado de “Câmara Setorial” foi o seguinte: o lucro das empresas transnacionais cresceu muito; o Estado arrecadou menos imposto; o salário médio e o emprego diminuíram na indústria automobilística. Os dirigentes da CUT e da Força Sindical sabem disso. Hoje estas empresas produzem mais de 3 milhões de veículos por ano e deveríamos, então, ter mais de 300 mil trabalhadores empregados no setor se o raciocínio destes dirigentes fosse correto. E não cerca de 130 mil como é a realidade.

O que está em jogo neste momento é a volta desse pacto, para ajudar as empresas. Os trabalhadores perdem duas vezes. Com a diminuição dos seus salários e benefícios, por um lado, e com a degradação dos serviços públicos causada pela ausência de recursos para seu financiamento, que é potencializada pela redução de arrecadação e transferência de recursos públicos para ajudar as grandes empresas. É a história que, agora, querem repetir. Como tragédia.

Um primeiro embate prático em torno desses temas acontecerá nas campanhas salariais no segundo semestre. Já estamos ouvindo das autoridades governamentais que aumentos de salários não são bem vindos, pois causam inflação, argumento que soa como música nos ouvidos dos empresários. Vários deles argumentam com os riscos da “desindustrialização” para pressionar por reajustes menores, no que, por incrível que pareça, são acompanhados por alguns dirigentes sindicais.

Mas deve assumir uma dimensão mais abrangente, na medida em que essa discussão deixe o ambiente dos seminários e ganhe a cena política nacional. Os setores envolvidos no seminário da FIESP prometem levar, em breve, suas propostas ao governo e à sociedade. Mais um embate que vai se abrir. Vai ser uma discussão bem interessante. E uma luta!

  • Artigo publicado originalmente no site Congresso em Foco