Redação

A discussão na Cúpula das Américas sobre Cuba reaviva a polêmica sobre o que se passa na ilha. Existe uma enorme nuvem de fumaça sobre a realidade desse país cobrindo grande parte da esquerda.

Como a revolução cubana foi a principal vitória da história latino-americana e Fidel Castro sua direção, a esquerda do continente resiste em ver as enormes mudanças que ocorreram na ilha. Para muitos se trata ainda de um Estado operário, o “último bastião do socialismo”. E isso pode ter conseqüências extremamente graves.

Não existe nenhum “bastião do socialismo”
A vitória da revolução cubana e a expropriação do capitalismo permitiram ao povo da ilha conquistas nunca alcançada na América. O nível educacional e de saúde em Cuba são superiores em muitos aspectos aos dos EUA. O índice de mortalidade infantil em Cuba (5,1 mortes por 1.000 nascimentos) até os dias de hoje é melhor do que o norte-americano (6,3 por 1.000 nascimentos).

Na década de 90, porém, o capitalismo foi restaurado em Cuba, acompanhando o processo de restauração na URSS e China. Acabaram as três características básicas de um estado operário.

A planificação da economia desapareceu com dissolução da Junta Central de Planificação, responsável por essa tarefa. Terminou também o monopólio do comércio exterior e a pressão do mercado mundial passou a se exercer diretamente sobre as empresas e o país. Por fim, desapareceu também a propriedade estatal dos principais meios de produção que passaram às mãos do capital estrangeiro, em particular do europeu.

Com a Lei de Investimentos Estrangeiros de 1995, praticamente todos os setores mais importantes da economia foram colocados á disposição do capital europeu que se “associou” ao Estado para explorar o país. Segundo os dados do próprio Ministério de Inversão Estrangeira e Colaboração de Cuba, as empresas mistas controlam 100% da exploração do petróleo, da mineração metálica, produção de lubrificantes, serviços telefônicos, sabão e perfumes e a exportação do rum; 70% das agroindústrias, e de cítricos e 50% da produção de níquel cimento e turismo (E depois de Fidel? Martin Hernandes, Marxismo Vivo, nº14).

A empresa estatal telefônica cubana (Etecsa) foi privatizada antes mesmo que a Telebrás no Brasil, na forma de “empresa mista”. Foi repassada para o grupo mexicano Domus e depois para uma subsidiária da italiana Telecom. O grupo europeu Altatis comercializa os charutos cubanos e a empresa francesa Pernord Ricard controla o Havana Club (excelente rum cubano).

Com a restauração, as conquistas foram se perdendo. O pleno emprego, por exemplo, não existe mais. A educação e a saúde pública se deterioram com clareza.
Estive em Cuba na década de 90, por fora do “circuito oficial” da esquerda. Conversei com trabalhadores nas ruas, entrei nas escolas e hospitais. A decadência impressiona. Nos hospitais, os funcionários falavam como os parentes dos pacientes têm que levar lençóis para cobrir as macas e de como faltam remédios – algo bem parecido ao Brasil. Ao redor dos hotéis de turismo havia inúmeras prostitutas, exatamente como antes da revolução.

A restauração se deu pela “via chinesa”, com o Partido Comunista mantendo sua ditadura e conduzindo o processo, e não como no Leste Europeu aonde foram derrubadas as ditaduras stalinistas.

As Forças Armadas, dirigidas por Raul Castro são parte fundamental da restauração e da transformação da burocracia dirigente em nova burguesia. Os altos oficiais controlam empresas de porte no país, associados aos estrangeiros.

O bloqueio dos EUA
Existe uma diferença na relação do imperialismo norte-americano com Cuba e com a China, que ajuda a confundir boa parte da esquerda: o bloqueio.
O imperialismo europeu tem uma política oposta. A Espanha é o principal investidor externo, ocupando, por exemplo, boa parte do turismo.

O que explica o bloqueio até os dias de hoje é que a burguesia cubana, residente na Flórida, é muito poderosa, sendo parte importante da burguesia imperialista dos EUA. E esse setor, que foi expropriado durante a revolução, não quer apenas a restauração do capitalismo na ilha, mas a recuperação de suas propriedades. Por isso não aceita nenhum acordo com o governo cubano.

A negociação Obama e Raul
Obama quer uma via de negociação mais ampla com o governo cubano. Para isso já suspendeu as restrições às viagens e o envio de remessas de dinheiro. Quer recuperar para os EUA o terreno perdido para o imperialismo europeu. Aposta na via da negociação, semelhante ao que se faz com a China. Mas, até agora, não deu mostras de que vai romper com a burguesia cubana da Flórida e levantar o bloqueio sobre a ilha – o que limita a amplitude de sua negociação.

Apesar dessa abertura entre EUA e Cuba, continua existindo diferenças importantes sobrem quem controla a ilha.

O governo de Raul é uma continuidade de Fidel, e não uma ruptura. A restauração começou e foi concluída por Fidel na década de 90. Naturalmente, existem diferenças e enfrentamentos, como existiam entre os setores da nova burguesia russa ou chinesa.

Um deles resultou recentemente nas destituições do vice-presidente Carlos Lage e o Ministro de Relações Estrangeiras, Felipe Péres Roque. Trata-se de uma depuração feita por Raul para controlar de forma direta o aparelho de Estado.
Os trabalhadores e a juventude cubana estão cada vez mais distantes do regime. Quando estive na ilha já existia uma divisão clara, inclusive geracional. Os mais velhos que tinham vivido antes da revolução continuavam apoiando o governo. A juventude, porém, se distanciava cada vez mais. A situação vai ficar cada vez mais desgastante para Raul Castro com a crise econômica.

E a tragédia é que os trabalhadores e jovens de Cuba encaram a esquerda latino-americana como aliada de Fidel e Raul. A “alternativa” que aparece é a do imperialismo, agora com a popularidade de Obama. Uma explosão popular de descontentamento com o regime pode acabar se colocando contra a “esquerda”, como se deu no Leste Europeu.

A construção de uma alternativa de esquerda ao castrismo é, mais que nunca, uma necessidade. E isso só pode avançar se o debate ajudar a clarificar que em Cuba não é mais um “bastião do socialismo”, mas um novo Estado capitalista.

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