Redação

“O direito à revolução é o único `direito histórico` real, o único sobre o qual repousam todos os Estados modernos, sem exceção” 1
Friedrich Engels

Em sua campanha a candidata à Presidência Heloísa Helena tem declarado, quando perguntada pela imprensa se sua candidatura é anticapitalista, que o socialismo seria a maior declaração de amor à humanidade de nossa época; mas pondera que seu governo não será socialista. Heloísa anunciou que o socialismo será, talvez, uma alternativa para os seus netos. Afirmou também que o programa de seu partido, e dos partidos da Frente, o PSTU e o PCB, é socialista, mas o seu programa de governo não. Este respeitaria a Constituição em vigor no país.

Em momentos mais arrebatados, a candidata tem defendido uma revolução democrática. Mas, quando sob pressão, tem admitido que seu projeto seria de democratização da democracia e esclareceu que somente os corruptos e especuladores teriam razões para temer a sua candidatura. Heloísa tem finalizado esses depoimentos concluindo que, em sua opinião, não haveria ambigüidade alguma nessas posições.

Ninguém ignora que o socialismo é um projeto de libertação dos trabalhadores. Ser de esquerda é o abraço de um compromisso de classe. O socialismo é uma declaração de guerra ao capital. Reservamos nosso amor à humanidade para aqueles que são vítimas da exploração capitalista. Nossa entrega à causa mais elevada do tempo em que nos tocou viver, o socialismo, é do mesmo tamanho que nosso ódio ao capital, e do desprezo pelos que vivem da exploração do trabalho. O socialismo é uma declaração de luta ao mundo que nos cerca e que condena milhões à privação, à brutalização e ao desespero.

O capitalismo é o sistema que fomenta a guerra de recolonização do mundo. A fórmula do “amor à humanidade” é deseducativa, porque semeia ilusões. Ilusões que interessam à preservação da ordem. A humanidade está dividida. Há Estados imperialistas que dominam o mundo. Há classes que exploram a maioria, aqueles que vivem do trabalho. O socialismo não pode unir os homens e mulheres de “boa vontade”. Essa ilusão existe entre os trabalhadores e as camadas médias, e uma das tarefas de uma candidatura socialista é fazer a disputa ideológica para combatê-la. O projeto socialista não é a colaboração de classes, mas a luta de classes.

O socialismo para os nossos netos é outra fórmula infeliz. O projeto socialista ficou confundido com as ditaduras burocráticas que durante décadas usurparam seu nome, para preservar seus privilégios, e encabeçaram a restauração capitalista na ex-União Soviética e no Leste Europeu. Mas a propriedade privada e o mercado só trouxeram miséria e obscurantismo. A restauração capitalista significou na Rússia uma destruição equivalente ao desmoronamento de uma guerra, e fez da China o inferno dos trabalhadores. Mais do que nunca seria necessária uma enérgica defesa da superioridade histórica do socialismo. Defendê-lo para um futuro remoto corresponde à promessa religiosa de que uma vida melhor só seria possível depois da morte. Acreditamos que o socialismo é uma alternativa concreta aqui e agora. A preservação tardia do capitalismo é uma ameaça à civilização.

Não somente os ladrões e os banqueiros deveriam temer a candidatura da Frente de Esquerda. É verdade que não precisamos de inimigos imaginários, porque já estamos bem servidos. Nunca existiu, no entanto, capitalismo sem corrupção. A desigualdade social é inseparável da opressão política. O projeto da revolução brasileira é a ruptura com o imperialismo, o direito e o dever do trabalho para todos, o aumento dos salários e a anulação das privatizações, o acesso universal à educação, saúde e previdência pública de qualidade, a conquista da reforma agrária, etc. Nossos inimigos de classe não são nem tolos, nem distraídos.

Não temos porque esconder nossa identidade. Não deveríamos ser cúmplices da infantilização do debate eleitoral. A esmagadora maioria do povo só poderia ser beneficiada pelo projeto socialista. Nenhum militante desconhece, também, que os socialistas não são tolerantes com a duplicidade. Não disfarçamos nossas intenções. Nosso programa pode se desdobrar em diferentes plataformas táticas, dependendo das conjunturas, mas tem uma coerência indivisível. Nas eleições e depois delas, defendemos nosso programa como uma alternativa de poder.

As discussões políticas nunca são, teoricamente, irrelevantes. As discussões teóricas entre marxistas, por sua vez, nunca são politicamente inocentes. A polêmica sobre a democracia foi possivelmente uma das mais ásperas de todas e tem uma longa história. A estratégia de “radicalização da democracia” é um programa que surgiu na tradição marxista, há 100 anos, na Alemanha de Bernstein e Kautsky. Desde então, foi um dos divisores de águas na esquerda.

Democracia liberal e reformismo socialista
A questão de fundo das declarações de Heloísa Helena é a atitude diante do regime democrático. Nos declaramos em oposição ao regime da democracia corrupta dos ricos e o denunciamos implacavelmente, ou somos a ala esquerda que pretende reformá-lo? O marxismo interpreta os debates de estratégia caracterizando cada posição em função da intensidade das pressões de classe. A esquerda socialista conhece no Brasil – pela tragédia vivida pelo PCB, em 1964, e pela comédia recente do PT – e no mundo, em incontáveis experiências, as conseqüências devastadoras da força de cooptação dos regimes democrático-liberais.

A luta do movimento operário e das organizações socialistas foi decisiva para garantir a expansão do direito do voto e, de resto, de todas as liberdades cívicas e democráticas. Mas, se a influência da esquerda foi vital para a conquista da liberdade de imprensa, de organização, de manifestação ou do direito de greve, é incontornável considerar também que a democracia liberal exerceu uma pressão terrível sobre os partidos socialistas.

Não esquecemos que houve uma longa resistência da burguesia ao sufrágio universal. Tão importante, no entanto, seria lembrar que na Europa o capital só aceitou a dominação através de regimes democrático-liberais, ao final do século 19, quando obteve garantias de que os líderes social-democratas tinham renunciado ao projeto revolucionário. A burguesia preferiu a democracia, quando teve a certeza que os partidos socialistas tinham renegado o socialismo. Precisou antes se assegurar que a social-democracia não utilizaria as liberdades democráticas para subverter a ordem, organizando os trabalhadores para a luta pelo poder.

A social-democracia e a via inglesa indolor
Na etapa histórica anterior à Primeira Guerra Mundial, a sugestão de uma “via inglesa” – a perspectiva reformista de uma transição socialista por dentro do regime democrático, portanto, sem ruptura revolucionária – esteve no centro da disputa dentro da II Internacional, e ficou conhecida como o debate Bernstein. A querela do primeiro revisionismo marxista teve como pano de fundo a expansão imperialista do final do século 19 – até a Primeira Guerra Mundial – e a consolidação de regimes democrático-eleitorais, na Europa Ocidental, que absorviam as ambições de integração dos aparelhos sindicais e parlamentares reformistas – uma casta burocrática sustentada em setores privilegiados da classe trabalhadora e das novas classes médias.

O reformismo não era, contudo, antes de 1914, somente uma ideologia reacionária. Não estava desconectado do processo econômico-social. O regime democrático, depois do susto da Comuna de Paris em 1871, se apoiava em reformas que favoreciam setores organizados entre os trabalhadores: o salário médio subia lentamente, mas subia, surgiam em muitas cidades as vilas operárias, o acesso à educação pública se ampliava, os direitos políticos foram ampliados, etc. Mas o reformismo “à la Bernstein” naufragou também com a precipitação da Primeira Guerra Mundial. Não foi indolor: dez milhões de vidas foram sacrificadas nas trincheiras.

O reformismo dos programas keynesianos do pós-guerra
O gradualismo democrático permaneceu sendo a política dos aparelhos social-democratas na etapa histórica posterior à Segunda Grande Guerra (associados aos partidos comunistas alinhados com Moscou), mas despojado de horizontes socialistas. A reconstrução capitalista da Europa fomentava o crescimento econômico, potencializado pela divisão de áreas de influência no mundo entre os EUA e a URSS, que garantia estabilidade política aos regimes democrático-liberais nos países imperialistas.

Esse programa de colaboração de classes renunciou até ao vocabulário anticapitalista, em função de um projeto keynesiano de políticas anti-cíclicas de regulação do capitalismo que buscava o pleno emprego e a universalização gradual de serviços públicos como saúde e educação. O medo histórico das seqüelas previsíveis de uma possível crise como a de 1929, e de novas revoluções como o outubro russo, aterrorizava o capitalismo. A burguesia estava disposta a ceder reformas para evitar revoluções. Social-democracia e estalinismo renderam-se ao capitalismo e abraçaram a democracia e, durante décadas, relembraram o socialismo nos dias de festa. Claro que esse processo só foi possível porque a existência da URSS sob Stálin garantia a coexistência pacífica no sistema mundial de Estados, portanto, o controle colonial da América Latina, da Ásia e da África.

O reformismo das contra-reformas reacionárias
Nos anos 80, no contexto de uma crise de estagnação econômica de longa duração, o programa reformista desceu mais um degrau em sua adaptação ao regime democrático e aos limites do capitalismo. Assimilando a pressão dos ajustes exigidos pelo programa do neoliberalismo, Felipe González na Espanha e depois Mitterand na França, em seu segundo mandato, iniciaram as privatizações e o processo de precarização do trabalho. Blair e Gerhard Schroder, os líderes da chamada Terceira Via nos anos 90, passaram a denunciar a perda de competitividade da economia européia diante dos EUA e da Ásia, os gastos insustentáveis dos serviços sociais, os excessos fiscais do estatismo intervencionista, etc.

Diante da ofensiva neoliberal, conduzida em vários países com a cumplicidade de suas organizações sindicais, aconteceu uma evolução desfavorável para os trabalhadores das relações de forças sociais e políticas: com as derrotas, ocorreu uma desmoralização de amplos setores da classe. Em resumo, desde 1980, os regimes democráticos deixaram de oferecer para a classe trabalhadora, mesmo nos países centrais, a segurança de que a geração futura poderia aguardar um futuro melhor. Surgiu um reformismo de contra-reformas. A democracia-liberal entrou em crise, e com ela a sua ala esquerda, os partidos reformistas. Passaram a ser os gerentes da destruição dos sistemas de seguridade social construídos 50 anos atrás.

O reformismo das políticas compensatórias
A crise da economia capitalista desde meados dos anos 70 não foi superada pela restauração no Leste Europeu e pela recolonização da América Latina. O mapa da esquerda mundial começou a passar, então, por mudanças. Não só a democracia nos países imperialistas já não garantia emprego, salário, aposentadoria, saúde e educação, mas exigia uma política de guerra permanente. À esquerda da social-democracia e do curso majoritário dos ex-partidos comunistas, entre as ideologias nostálgicas do reformismo das etapas históricas anteriores, nenhuma foi mais representativa do que o programa da “cidadania participativa” que reuniu em Porto Alegre, desde 2001, algumas dezenas de milhares de ativistas de todos os continentes contra a globalização.

Organizados ou atraídos pelas ONG’s, uma parcela dessa militância jovem se desinteressou de projetos de luta pelo poder. Se já não era possível a defesa do programa gradualista dos serviços sociais universais, a alternativa passou a ser o programa das políticas sociais focadas ou compensatórias. Lula era ainda, entre 2001 e 2003, ano da posse, a principal referência deste reagrupamento. Política e socialmente heterogênea, com posições que oscilavam da defesa das experiências do “orçamento participativo” do governo do PT do Rio Grande do Sul, à proposta da taxa Tobin sobre as transações financeiras internacionais dos colaboradores da ATTAC, passando pelos que se iludem com o projeto de democratização dos organismos internacionais, como a ONU, o elemento comum que unifica boa parte dessa “nova esquerda” mundial é a ilusão na democracia.

Democratizar a democracia?
Mesmo as correntes que se colocaram à esquerda desta esquerda eram forças engajadas na construção de partidos sem delimitação estratégica, como o PSOL. Admitiam a idéia de unir, em um mesmo partido, tendências que defendiam a reforma do capitalismo e o gradualismo democrático, e tendências comprometidas com a revolução. Mas, em um partido de tendências permanentes com estratégias incompatíveis, a construção de um denominador comum só pode ser alcançado a partir da posição mais moderada. O denominador comum dessa estratégia é a democratização da democracia.

As posições de Heloísa Helena na campanha eleitoral têm sido, contudo, uma surpresa. Ela tem argumentado que não restaria aos socialistas alternativa melhor senão a proposta de regular o capitalismo pela redução de juros.

A candidata renunciou à defesa da suspensão do pagamento da dívida. Isso não corresponderia à atual relação social e política de forças, já que não se abriu ainda no Brasil, ao contrário da Bolívia e de outros países da América do Sul, uma situação revolucionária. Seriam necessárias, nessas circunstâncias, palavras de ordem plausíveis, ou seja, democráticas. Não há, de fato, uma situação revolucionária no Brasil. Isso não impede os socialistas de serem coerentes com seu programa e construírem uma campanha de educação política de massas sob as suas bandeiras.

Infelizmente, é o receio de perder votos que explica o discurso de Heloísa.
Os socialistas não escondem seu programa em campanhas eleitorais. As eleições são o melhor momento para a apresentação de uma saída socialista para a crise. A tradição marxista-revolucionária sempre defendeu a atualidade das reivindicações democráticas – em especial nos países periféricos, onde a revolução por fazer será a simultaneidade de várias revoluções – mas nunca confundiu reivindicações democráticas com a defesa da reforma do regime democrático. O marxismo reconhece que no Brasil há uma revolução democrática por fazer, porque há tarefas democráticas pendentes. Mas nosso programa é a revolução socialista.

Dizem-nos que o internacionalismo revolucionário, tal como inspirou a fundação da Primeira, Segunda, Terceira e Quarta Internacional, no limiar do novo século, seria uma utopia. No entanto, se algo pode ser dito do século 20 é que ele demonstrou ser possível o movimento dos trabalhadores triunfar revolucionariamente sobre o capital: afinal, revoluções socialistas conquistaram o poder em inúmeros países, até na pequena Cuba, a poucas milhas da costa dos EUA. O que é utópico, no início do século 21, é a regulação social do capitalismo, ou a democratização
da democracia.

1 ENGELS, Friedrich. “Introdução a Luta de Classes na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume 1, sem data, p.105.
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