Carta do documentário

“Uma noite em 67” retoma a história dos grandes festivaisNa recente esteira de documentários sobre a música brasileira, entrou em cartaz em algumas capitais o filme “Uma noite em 67”. Jogando luz sobre o que ficou conhecido como a “Era dos Festivais”, o documentário de Renato Terra e Ricardo Calil mostra a história do festival que lançou músicas e intérpretes que escreveriam a história da MPB nos anos seguintes, com canções que se incorporaram ao imaginário popular.

Para quem não viveu aqueles anos, os festivais eram os grandes eventos da época. Uma disputa televisionada armada como um grande programa de auditório, atraindo centenas de jovens capazes de aplaudirem de forma tão efusiva quanto. em outros momentos vaiavam, numa avaliação em que não só a música era levada em consideração. O público, aliás, é um dos principais protagonista do documentário.

O festival sintetizava a tensão dos meses que precediam o AI-5, assim como a ebulição cultural que marcava a música no Brasil, com o tropicalismo sendo gestado em cabeças como a de Gilberto Gil e Caetano Veloso.

“Por entre fotos e nomes”
A ideia do documentário é relativamente simples. Alternando cenas do festival de 1967, realizado pela TV Record, e entrevistas com alguns dos protagonistas daquelas cenas, “Uma noite em 67” é eficiente em traçar um retrato daquela época. Desta forma, vemos um Sérgio Ricardo sendo vaiado por uma plateia impiedosa, perdendo as estribeiras e, décadas antes de Kurt Cobain, quebrando o violão em pleno palco antes de arremessá-lo contra o público.

Vemos também, por outro lado, um jovem e altivo Caetano Veloso, mostrando sua eletrificada versão de “Alegria, alegria” ao público, tendo a ajuda dos Mutantes. As vaias do início vão se calando no decorrer da música, até se transformarem em uma estridente aclamação quando o cantor chega nos versos de “por que não?”. Podemos também ouvir a história de um incrivelmente tímido Gilberto Gil hesitando antes de apresentar seu “Domingo no parque”.

Na lista dos que ficariam famosos e que disputavam o primeiro lugar daquele festival encontramos ainda um jovem Roberto Carlos cantando samba, os Mutantes recém-saídos da adolescência, e ele, Chico Buarque. Como testemunha um dos produtores do festival, a edição do programa seguia uma lógica de luta livre. Havia de ter o vilão e o mocinho, e esse último papel ficava a cargo de, principalmente, Chico Buarque. Jovem, de sorriso fácil e metido num comportado smoking, o cantor fazia o típico “genro perfeito”.

Retrato que, diga-se de passagem, não combinava muito com o petardo “Roda Viva”, que apresentou na competição junto com o MPB4, que impactou o público. Há ainda Edu Lobo, que venceria a edição do festival com “Ponteio”.

Além do início do racha entre os “tradicionais” da MPB, como Edu e Chico Buarque, com os violões e a postura comportada, e de outro lado os tropicalistas e sua atitude contestadora, temos ali também o rechaço de um setor dos artistas à guitarra elétrica, vista por muitos como o símbolo da invasão cultural imperialista. A ponto de nomes como Elis Regina e Edu Lobo organizarem um protesto de rua contra os instrumentos eletrificados.

Uma atitude que hoje soa ingênua e despropositada, mas que também, por outro lado, traz discussões que hoje não existem, como o sentido da arte ou o caráter político da música. De todo modo, é impossível separar esse aspecto político e artístico das canções que tocaram naquela noite.

“Uma noite em 67” traz, assim, um capítulo fundamental da história da música brasileira e gera, inevitavelmente, uma reflexão quanto ao deserto que grassa na música hoje. A sessão de cinema em que este que escreve viu o filme terminou sob calorosos aplausos, como se estivéssemos mesmo na plateia do festival. Por que a música atualmente, assim como a arte em geral, não é capaz de mover paixões como outrora?