O PT abandonou qualquer referencial socialista passando a disputar e depois administrar o capitalismo. Mas afinal, por que o socialismo continua uma necessidade para o conjunto da humanidade?

Na cartilha “O decênio que mudou o Brasil”, lançada pelo PT como material de balanço dos 10 anos de governo do partido, por mais que se leia com atenção, não se encontrará em nenhum lugar a palavra “socialismo”. Isso não é exatamente surpreendente, uma vez que há muito tempo o PT abandonou de fato qualquer referencial socialista, passando a disputar (e depois administrar) o capitalismo, com uma visão de mundo que agora recebe o nome de “desenvolvimentismo”. Ainda assim, é interessante observar que milhares de ativistas construíram esse partido tendo justamente como objetivo a supressão real de toda desigualdade social e opressão, ou seja, a construção do socialismo. Exatamente por isso, em seus materiais, o PT sempre se referia ao ideal socialista, ainda que fosse vago. Isso era necessário porque o socialismo foi o sonho que alimentou toda uma geração de homens e mulheres que construíram aquele partido, militaram em suas fileiras, pisaram a lama dos bairros pobres nos primeiros anos de construção do PT e prometeram aos explorados e oprimidos que, uma vez no poder, o PT tiraria dos ricos para dar aos pobres.
Após 10 anos de governo, o PT se sente à vontade para abandonar qualquer menção ao socialismo. E por mais que esse abandono cause certo desconforto em parte da militância, isso já não importa: quem manda no partido são os parlamentares, ministros, assessores, secretários, prefeitos, senadores, deputados e governadores, todos eles plenamente satisfeitos com a manutenção da ordem social vigente, ou seja, com o capitalismo.
Aos militantes históricos, resta “calar-se com a boca de feijão”, como diz a canção de Chico Buarque. O PT deu feijão e arroz para o povo e, agora, exige que todos se calem. E muitos o fazem: mesmo as correntes de esquerda do PT, ainda que tenham feito algum alvoroço nos primeiros anos de governo, há muito depuseram armas e se integraram alegremente à ciranda eleitoral, que é grande o suficiente para dar a todos os bem-comportados um ou outro carguinho no Congresso, Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores. E se der sorte… até no Executivo!
De nossa parte, seguimos afirmando que as pequenas concessões feitas ao povo pobre nestes últimos 10 anos são como castelos de areia: desmoronarão na primeira onda. Somente a ruptura com o capitalismo e uma viragem socialista na sociedade podem resolver definitivamente os terríveis problemas sociais que seguem abalando os alicerces da vida em nosso país.

Uma economia socialista
Para mudar realmente o país, é preciso transformar a base mais profunda da economia nacional, ou seja, acabar com a grande propriedade privada capitalista. É preciso nacionalizar o sistema financeiro e as grandes empresas (nacionais e multinacionais) que controlam o país e sugam toda a sua riqueza, colocando assim nas mãos do Estado as alavancas mais importantes do desenvolvimento econômico. Junto com isso, é preciso acabar com o latifúndio, entregando a terra para quem nela trabalha, além de estatizar aquele setor do campo que já se transformou em grande indústria. Os transportes, a saúde e a educação devem ser considerados direitos elementares e garantidos pelo Estado sem qualquer participação da iniciativa privada.
A expropriação dos principais ramos econômicos permitiria a superação da economia de mercado e a instauração de uma economia planificada. Planificar a economia significa produzir não em função das “necessidades do mercado” (que nada mais são do que as necessidades do lucro), mas em função das necessidades reais da sociedade. Produzir milhões de toneladas de soja para alimentar as vacas holandesas ou arroz, feijão e carne para eliminar a fome no Brasil? Ter um transporte baseado exclusivamente em rodovias e carros particulares ou investir em ferrovias e ampliar o sistema coletivo de transporte? Eis algumas perguntas que um plano econômico socialista deve responder. A planificação econômica permitiria aos trabalhadores, organizados em Estado socialista, dirigir de maneira consciente os rumos da economia, hoje dominada por leis cegas e irracionais, que a cada 5 ou 7 anos conduzem o país a uma nova crise.
Por sua vez, a planificação econômica deve ser combinada com o monopólio estatal do comércio exterior. O comércio exterior é o principal mecanismo de exploração de um país por outro, porque as trocas neste mercado são sempre desiguais. Além disso, o comércio exterior privado conduz à dependência tecnológica e econômica da nação menos desenvolvida, onde deixa-se de criar, pesquisar, inventar e produzir para simplesmente importar caro e exportar barato. Os socialistas não são contra o comércio exterior. Ao contrário, esse é um assunto tão importante que não pode ficar nas mãos de picaretas e atravessadores privados.

Uma democracia muito mais ampla e profunda
O socialismo só é possível e só merece esse nome se os trabalhadores exercerem de fato o poder. Por isso, junto com mudanças no sistema econômico, o socialismo exige mudanças políticas. A democracia dos ricos deve ser substituída por uma verdadeira democracia: um governo da imensa maioria para a imensa maioria, apoiado na auto-organização dos trabalhadores. Não podemos prever através de quais organismos exatamente esse poder operário será exercido. Por hoje, só é possível afirmar que os embriões desse novo poder devem surgir ainda no seio da sociedade capitalista atual, como instrumentos de luta e organização de nossa classe e que, no momento de uma crise revolucionária, devem ser capazes de organizar o conjunto dos trabalhadores na luta pelo poder de Estado. Esses instrumentos de luta se tornarão, então, instrumentos de poder, as verdadeiras instituições do novo regime. O Congresso Nacional e todas as outras instituições burguesas devem ser abolidos. Ao invés de deputados e governantes intocáveis, são necessários representantes com mandatos revogáveis e salários iguais ao de um trabalhador qualificado. Por sua vez, esse novo regime, ao mesmo tempo em que fornece amplas liberdades democráticas para as massas trabalhadoras, deve ser um regime de luta contra as velhas forças burguesas, imperialistas e oligárquicas que, uma vez expropriadas, farão de tudo para reaver seus antigos privilégios.
Como consequência, o socialismo deve garantir um nível de liberdades individuais e coletivas muito superior ao existente na atual democracia: direito de reunião e organização com recursos fornecidos pelo Estado, liberdade de expressão e de imprensa a partir do fim do monopólio privado das comunicações, direito ao próprio corpo, à própria sexualidade, liberdade religiosa com a separação entre Estado e Igreja, liberdade artística, científica etc.
A ampliação dos direitos democráticos sob o socialismo será apenas o início de um novo florescimento da personalidade humana, que deixará de ser esmagada pelo peso de leis repressivas e preconceituosas, para ser exercida livre e conscientemente, em harmonia com a comunidade e com cada um de seus membros.

É possível vencer
Ao longo do século 20, muitos países romperam com o capitalismo e iniciaram uma experiência socialista. A caricatura patética de socialismo existente hoje na Coreia do Norte, a ditadura opressora em Cuba e o fim da URSS em 1991 não devem nos enganar. Enquanto durou, a experiência da União Soviética possibilitou um salto jamais visto no desenvolvimento econômico, social, cultural e científico. Em 30 anos, a URSS deixou de ser um país agrário, com uma população analfabeta, para se tornar a segunda potência mundial. Além disso, nos primeiros anos após a Revolução de Outubro, vigorou na Rússia uma democracia muito mais ampla do que em qualquer lugar do mundo: a mulher conquistou o direito ao voto, ao divórcio e ao aborto; os operários participavam da política por meio dos Conselhos de Operários (os Soviets), onde qualquer um podia participar, votar e decidir. O primeiro satélite artificial e o primeiro homem a ser lançado no espaço foram soviéticos. Cuba, uma pequena ilha isolada no meio do Caribe, acabou com o analfabetismo e criou um dos sistemas de saúde mais eficientes e avançados do mundo.
A onda de apoio e solidariedade que seria provocada por uma revolução vitoriosa possibilitaria também uma resistência ativa mundial contra qualquer tentativa de intervenção do imperialismo. É verdade que o imperialismo buscou intervir militarmente onde os trabalhadores tiveram a ousadia de assumir em suas mãos as rédeas de seu próprio destino. É verdade que houve embargos, retaliações e, em alguns casos, invasões ou tentativas de invasão. Mas também é verdade que em todos esses casos o imperialismo foi derrotado: na Guerra Civil russa, na invasão à Baia dos Porcos em Cuba, na Guerra do Vietnã. Hoje, quando o imperialismo não consegue estabilizar a situação em nenhum país no qual intervém (nem Iraque, nem Afeganistão, em nenhum outro), teríamos mais possibilidades de resistir a tal intervenção, caso ela viesse a acontecer.
 
A força histórica do socialismo
A derrota das experiências socialistas nestes países pelas mãos da própria burocracia governante demonstra apenas a necessidade de que os trabalhadores confiem unicamente em suas próprias forças, não se contentem em derrubar a burguesia, mas exerçam efetivamente o poder através de suas organizações, não entreguem suas conquistas aos cuidados de canalhas e aproveitadores.
Em 1936, o revolucionário russo Leon Trotsky, escrevendo sobre a importância da Revolução Russa e ao mesmo tempo sobre os perigos que a ameaçavam, afirmou: “O socialismo demonstrou seu direito à vitória não nas páginas de ‘O Capital’, mas na arena econômica que corresponde a um sexto da superfície terrestre; não na linguagem da dialética, mas na linguagem do ferro, do cimento e da eletricidade. Caso a URSS viesse a fracassar, fruto de dificuldades internas, golpes externos e erros da direção (coisa que, esperamos nós, não aconteça), restaria como garantia do futuro, o fato inabalável de que somente graças à revolução proletária, um país atrasado deu, em menos de duas décadas, passos sem precedentes na história”.
Essas palavras seguem válidas quase 80 anos depois de terem sido escritas. Quem demonstrou sua falência completa, sua incapacidade de resolver os problemas mais elementares da economia e da política foi o capitalismo, não o socialismo. Foi o capitalismo que conduziu a humanidade a duas guerras mundiais, à destruição de regiões inteiras do globo terrestre, à ditaduras sangrentas e opressoras, à volta da escravidão, à degradação da natureza, à alienação e ao vazio que domina a vida humana em nossos dias.
Para fazer triunfar o socialismo, os trabalhadores precisam organizar um terceiro campo, oposto ao “desenvolvimentismo” do PT, que na verdade é o velho neoliberalismo descarado do PSDB e DEM. Precisam confiar em suas próprias forças, em sua própria organização. Eles não confiam hoje. Confiarão amanhã. Hoje, milhões de trabalhadores derrubam ditadores tiranos no Norte da África e Oriente Médio.  Desorganizados, os trabalhadores parecem ser nada. Organizados, eles são tudo. A força dos trabalhadores está na sua organização. O socialismo, cuja morte foi anunciada no início dos anos 1990, voltou a ser discutido e apontado como alternativa a ordem do Capital. O socialismo alimenta os sonhos e as ações daqueles que lutam por um mundo melhor. E lá, apesar de todas as traições, aguarda um novo renascimento.
 

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