Redação

O aniversário de 90 anos da Revolução Russa é uma oportunidade não apenas para comemorações, mas também para repensar a nossa luta diária contra a exploração e a opressão, nossa busca pela felicidade e pela emancipação da mulher.

O tabu da inferioridade feminina e a idéia de que a opressão da mulher pode acabar no capitalismo foram desmentidos pela revolução. O problema histórico da opressão da mulher, que a burguesia não só não resolveu como aprofundou, encontrou as bases para sua solução com a expropriação dos meios de produção e o fim da propriedade privada na Rússia.

A mulher russa antes da Revolução
Em menos de dez anos, a mulher russa conseguiu dar mais passos em direção a sua emancipação total do que todas as mulheres juntas em mais de 200 anos de luta. E isso só foi possível porque a revolução transformou as bases materiais, econômicas e estruturais que mantêm a opressão da mulher como parte indissolúvel do processo de exploração a que está sujeita a classe trabalhadora no mundo inteiro, dentro do modo de produção capitalista. Ao expropriar a burguesia e acabar com a propriedade privada da terra e de todos os meios de produção, a classe trabalhadora russa pôde liquidar de uma só vez os pilares fundamentais da opressão e da desigualdade da mulher e de todos os trabalhadores. Com isso, as mulheres tiveram possibilidades concretas de conquistar o fim da opressão e a igualdade com os homens, não apenas de direito, mas também de fato.

Em todos os sentidos, a opressão da mulher na Rússia era muito mais profunda do que é hoje nos países coloniais e semicoloniais. A Rússia era uma economia atrasada – em muitas regiões daquele imenso território subsistiam fortes resquícios de feudalismo e do modo de produção asiá­tico- , com uma estrutura social primitiva e um baixo nível cultural. Para a maioria das mulheres, isso significava a submissão total dentro da família camponesa, a completa falta de perspectiva futura fora da cozinha, e uma vida de sacrifícios indescritíveis. Para se ter uma idéia, às vésperas da revolução ainda subsistiam formas de poligamia e compra e venda de mulheres em várias regiões do país. Isso significava que o esforço para a emancipação das mulheres que a revolução socialista teve de despender partia de patamares muito mais baixos e o jovem estado operário teria de dar saltos enormes a fim de reparar injustiças e costumes milenares, arraigados até o âmago na sociedade russa.

Tudo isso parecia impossível. Mas uma revolução que não se propunha a fazer milagres e tampouco colocar a mulher e o homem em pé de igualdade da noite para o dia, teve de contar com o processo histórico. E a história mostra que um país atrasado assimila as conquistas materiais e ideológicas dos países adiantados, de um modo contraditório, e seu desenvolvimento conduz necessariamente a uma combinação original das diversas fases do processo histórico, em diferentes ritmos. Essa é a lei do desenvolvimento desigual e combinado, sem a qual não se compreende a história da Rússia.

“Se a evolução econômica da Rússia, em conjunto, passou por cima de períodos do artesanato corporativo e da manufatura, muitos de seus ramos industriais pularam parcialmente alguma etapa da técnica, que exigiram, no Ocidente, dezenas de anos. Como conseqüência, a indústria russa desenvolveu-se em certos períodos com extrema rapidez”, escreveu Trotsky. Assim, enquanto a agricultura camponesa, nas vésperas da Revolução, permanecia em sua maior parte nos níveis do século 17, a indústria russa, quanto à técnica e a estrutura capitalista, estava no mesmo nível dos países adiantados. O que dominava eram as empresas gigantes, com mais de mil operários cada uma, e a maioria da indústria pesada era controlada pelo capital estrangeiro.
Esse processo foi decisivo para as mulheres russas, porque ocorreu com elas o mesmo que ocorreu com as mulheres no restante da Europa, durante a revolução industrial: foram confiscadas pelo capital para trabalhar nas fábricas, para aumentar a produção das máquinas e a taxa de mais-valia do capitalista.

As mulheres russas eram superexploradas nas fábricas, como mão-de-obra barata. Não tinham direitos trabalhistas, cumpriam horas excessivas de trabalho nas máquinas, sem ter onde deixar os filhos, e depois que regressavam à casa ainda tinham uma outra jornada, nas tarefas domésticas. Além disso, suportavam a violência sexual e uma enorme carga de preconceito, advindo sobretudo do fato de que grande parte da classe operária russa era originária do campo. Os trabalhadores traziam consigo uma consciência machista e concepções religiosas sobre o papel subalterno da mulher. Essa ideologia machista era aproveitada pela burguesia russa para submeter as mulher es a uma exploração brutal, pagar-lhes salários bem inferiores aos dos homens e destinar a elas os trabalhos mais estafantes e embrutecedores.

No entanto, mesmo com essa situação de extrema desigualdade, a incorporação de uma parte importante das mulheres no mercado de trabalho, sobretudo, na indústria, foi decisiva para aumentar o nível de consciência de milhões de mulheres, que passavam a integrar a classe operária russa e fortalecer a sua luta contra a superexploração capitalista. A entrada da mulher na indústria foi decisiva também para gerar uma vanguarda de mulheres que tomou parte ativa nos sovietes em 1905 e no movimento revolucionário em 1917, apontando o caminho para a construção de um programa para as mulheres a ser levado pelo Partido Bolchevique e que serviu de referência para os primeiros decretos do governo operário.

Primeiras conquistas legais
Os primeiros decretos do governo operário tinham dois objetivos centrais: abolir as velhas leis que colocavam a mulher em situação de desigualdade em relação ao homem, e liberar a mulher das tarefas domésticas, o que exigia uma economia coletiva na qual ela participasse em igualdade de condições com o homem.

Já nos primeiros meses, o Estado operário aboliu todas as leis que colocavam a mulher em uma situação de desigualdade em relação ao homem. Foram abolidos também todos os privilégios ligados à propriedade que se mantinham em proveito do homem no direito familiar. Foram introduzidos decretos estabelecendo a proteção legal para as mulheres e as crianças que trabalhavam, o seguro social, a igualdade de direitos em relação ao matrimônio. Em 1917 foi decretado o direito ao divórcio. Em 1918 entrou em vigor um novo Código Civil, suprimindo todos os direitos dos homens sobre as mulheres; o marido não podia mais impor à mulher o seu nome, nem seu domicílio, nem sua nacionalidade e ficava assegurada a mais absoluta paridade de direitos entre marido e mulher. Por meio da ação política do Zhenotdel, o departamento feminino do Partido Bolchevique, em 1920 as mulheres conquistaram o direito ao aborto legal e gratuito nos hospitais do Estado. Não se incentivava a prática do aborto e quem cobrava para praticá-lo era punido. A prostituição e seu uso eram descritos como “um crime contra os vínculos de camaradagem e solidariedade”, mas o Zhenotdel propôs que não houvesse penas legais para esse crime. Tentou atacar as causas da prostituição, melhorando as condições de vida e trabalho das mulheres, e deu início a uma ampla campanha contra os “resquícios da moral burguesa”.
A primeira Constituição da República Soviética, de julho de 1918, deu à mulher o direito de votar e ser eleita para cargos públicos.

Outra grande conquista da mulher russa foi o amplo acesso à educação, a facilidade para estudar o que desejasse e seguir todas as carreiras que quisesse. A reforma da educação pública beneficiou todo o povo russo, mas as mulheres, que vinham de uma desvantagem secular nesse terreno, puderam tirar o atraso em poucos anos. Todas as mulheres que quisessem estudar podiam ter horários liberados do trabalho, seguindo quantas carreiras decidissem.

Outra grande conquista para as mulheres foi que o governo soviético, já nos primeiros meses de existência, procurou rapidamente sanar o déficit de escolas, criando um grande número de jardins de infância e uma rede de escolas experimentais e colônias infantis por todo o país, liberando as mulheres para o trabalho e o aperfeiçoamento pessoal.

Livrar a mulher do trabalho doméstico
No entanto, para a plena emancipação da mulher, para sua igualdade efetiva em relação ao homem, era necessária uma economia que a livrasse do trabalho doméstico e na qual ela participasse de forma igualitária ao homem. A essência do programa bolchevique para a emancipação da mulher era sua liberação final do trabalho doméstico por meio da socialização dessas tarefas. Lênin insistia em que o papel da mulher dentro da família era a chave de sua opressão: “Independentemente de todas as leis que emancipam a mulher, esta continua sendo uma escrava, porque o trabalho doméstico oprime, estrangula, degrada e a reduz à cozinha e ao cuidado dos filhos, e ela desperdiça sua força em trabalhos improdutivos, que esgotam seus nervos e a idiotizam. Por isso, a emancipação da mulher, o comunismo verdadeiro, começará somente quando e onde se inicie uma luta sem quartel, dirigida pelo proletariado, dono do poder do estado, contra essa natureza do trabalho doméstico, ou melhor, quando se inicie sua transformação total, em uma economia a grande escala”. Nas condições da Rússia, essa era a parte mais difícil da construção do socialismo e a que requeria mais tempo para ser concretizada. A Rússia estava em guerra civil, e as mulheres tiveram de assumir, com os homens, as tarefas da guerra e de defesa do Estado operário.

Mesmo assim, o governo soviético lançou imediatamente um amplo programa de obras públicas, que incluía a construção de moradias para toda a população, hospitais, escolas, restaurantes coletivos, lavanderias públicas em todos os bairros, além de creches e jardins de infância. O governo soviético fez um amplo chamado a que todas as mulheres também se engajassem nesses planos de obras públicas, que trariam benefícios ao conjunto da população, mas sobretudo às próprias mulheres. As moradias dignificavam a mulher, as escolas davam educação às crianças, e os refeitórios e lavanderias públicos livravam a mulher das tarefas domésticas.

A situação da mulher na produção social também foi radicalmente transformada a partir da conquista do poder pelos trabalhadores. Por lei, o salário feminino passou a ser igual ao masculino pelo mesmo trabalho, e foi proibida toda e qualquer discriminação contra as mulheres no mercado de trabalho. Quando a guerra terminou, o governo operário proibiu a demissão das mulheres que se haviam empregado nas fábricas em substituição aos homens, como ocorreu nos países capitalistas. Além disso, foram implantados imediatamente programas para atribuir maior qualificação à mão-de-obra feminina e as mulheres tiveram acesso a todos os setores da produção, sem discriminação entre trabalho masculino e trabalho feminino.

Exemplo histórico
Se a Revolução Russa não conseguiu conquistar a plena emancipação da mulher e retrocedeu nessa tarefa, isso não se deveu a um problema da revolução ou do socialismo, que, a rigor, não chegou a ser posto à prova. Deveu-se ao processo de burocratização do Estado soviético, que teve início a partir de 1924, depois da morte de Lênin e a subida de Stalin ao poder. A perseguição e assassinato de toda a direção revolucionária, o aniquilamento da democracia operária e a instauração de um regime de terror, combinados com a política do socialismo num só país, que levou ao isolamento da revolução dentro das fronteiras da URSS, foram os grandes responsáveis pelo abortamento do processo de construção do socialismo e sua posterior destruição, com a restauração do capitalismo nos anos 80 e tudo o que isso significa para a opressão da mulher.

A situação da mulher na Rússia hoje é fruto da degeneração do Estado operário, e não da revolução socialista. O que a revolução trouxe para a mulher foram enormes conquistas que a fizeram saltar de uma situação de degradação e opressão as mais brutais, para o primeiro lugar em matéria de igualdade, superior a todas as mulheres, até mesmo as dos países capitalistas mais ricos. Como disse Trotsky, na Revolução Traída, as conquistas da revolução foram tão grandes que mesmo que “a URSS viesse a fracassar, restaria como garantia do futuro, o fato inabalável de que, somente graças à revolução proletária, um país atrasado deu, em menos de duas décadas, passos sem precedentes na História”. Nada deixa mais claro isso do que a situação da mulher, antes e depois da revolução socialista.
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