No sábado, 10 de abril, foi enterrado Eugene Terre´Blanche, o líder do grupo racista sul-africano “Movimento da Resistência Africânder” (AWB, na sigla original), morto a pauladas por dois jovens negros, no dia 4 passadoA notícia ganhou o mundo, principalmente sob a ótica do impacto que o episódio pode ter sob o país que receberá a Copa do Mundo daqui alguns meses. Contudo, há umas tantas outras perspectivas sob a quais podemos ver a por nós festejada morte do racista.

Terre’Blanche liderou o AWB desde sua fundação. Africânder é o termo pelo qual são conhecidos o povo e a língua dos descendentes de holandeses que construíram o monstruoso sistema do Apartheid (que quer dizer “separado”) e, através dele, manteve o poder durante a segunda metade do século 20. Terre’Blanche era um africânder bôer, ou seja, um fazendeiro, o núcleo duro e mais conservador do sistema racista.

Aliás, antes de falarmos sobre o impacto e as possíveis consequências do assassinato na atual situação sociopolítica da África do Sul, cabe fazer um parêntese sobre Terre’Blanche, figura nefasta, cujo papel na História parece ter sido esculpido em seu próprio nome. Nascido em 1941, o sujeito recebeu um nome realmente curioso. Eugene de alguma forma nos remete a “eugenia”, a pseudociência que, em meados do século 19, serviu como uma das principais bases para o racismo e o imperialismo.

Nomeada atrás de termos gregos – “eu” (bem) e “genno” (fazer nascer) – a teoria defendia que as pessoas bem nascidas, ou seja, com os melhores genes e dotados de características superiores, seriam os brancos, de olhos claros, de fisionomia europeia e, evidentemente, membros da elite socioeconômica do período.

Uma suposta predestinação que lhes dava o direito sagrado de dominar o resto: todos aqueles marcados pela herança macabra da pele escura, cabelo ruim ou o infortúnio insuperável de ter nascido abaixo da linha do Equador ou em algum ponto da Ásia ou do Oriente.

Este era apenas o primeiro nome do sujeito que criou o AWB, em 1973, pregando o separatismo e a supremacia racial, como forma de criar uma pátria de brancos. Uma ideia expressa no seu sobrenome, Terre’Blanche, “terra branca” em francês.

Barulhento e sanguinariamente violento, apesar de reduzido em membros, o AWB foi fundando nos fundos de uma garagem e ficou conhecido pelos seus efetivos paramilitares, eficientemente treinados e bem armados, que atuaram como “rambos dos Apartheid” em alguns dos piores e mais repressivos períodos do regime racista.

Coerente com seu sobrenome, Terre’Blanche e seu grupo foram contrários às negociações (favoráveis aos brancos, é bom lembrar) que puseram fim à legislação racista do Apartheid e abriram caminho para a chegada ao poder, em 1990, do Congresso Nacional Africano (CNA), liderado por Nelson Mandela, mantendo, até hoje, suas ações racistas e ataques assassinos.

Uma morte tardia
Dizer que um sujeito como este já foi tarde é pouco. Num mundo minimamente justo, sua asquerosa figura já teria sido varrida para o lixo da História há décadas. Se a História também não fosse marcada por retrocessos e traições, ele não teria sobrevivido à justiça revolucionária. Uma possibilidade impedida pela solução negociada da Frente Popular.

Uma história que nós brasileiros conhecemos através do governo Lula. Mas que, no caso da África do Sul foi uma punhalada mais profunda no que se refere ao papel dos movimentos sociais. Enquanto no Brasil, Lula aliou-se à elite dominante para barrar e prevenir qualquer possibilidade de crise com possibilidades revolucionárias, na África do Sul a solução frente-populista foi empregada para brecar uma crise que já estava em pleno curso e a todo vapor.

Mas, enfim, como a História é o que temos diante de nós, o líder do AWB acabou sua malfadada passagem pela vida no dia 4 de abril, morto a pauladas por dois de seus jovens empregados, um de 16 e outro de 21 anos.
Também fiéis ao seu papel na atual situação, a imprensa mundial tem dado mais destaque, em primeiro lugar, às possíveis consequências que o episódio terá na África do Sul que, a trancos e barrancos, está se aproximando do gigantesco desafio de hospedar a Copa Mundial de Futebol.

É verdade que há motivos para preocupação. Afinal, é um fato que há uma enorme expectativa em torno do evento. Inclusive, e principalmente, inclusive, por parte da maioria do sofrido povo sul-africano, os negros, que assim como grande parte dos brasileiros, é apaixonada pelo esporte. Mas também não se pode esquecer que qualquer tensão racial pode reabrir feridas muito mal remendadas e que se expressam inclusive no esporte, já que, na época do Apartheid, o futebol (a aversão dos brancos aos esporte) era um dos símbolos e expressões da segregação racial.

Além disso, jornais e sites ao redor do mundo têm destacado a brutalidade do assassinato a pauladas e, principalmente (fazendo eco às insistentes declarações do presidente Zuma e demais membros do CNA e aliados), têm ressaltado que a ação desesperada dos jovens trabalhadores foi motivada puramente por uma questão trabalhista: os garotos estavam revoltados pelo fato de Terra’Blanche lhes ter recusado o pagamento do salário mensal, que é importante lembrar, era, na moeda local, de 300 rands, o equivalente a míseros R$ 72.

São poucos os que procuram escavar as relações entre o episódio e as tensões e contradições criadas pela própria Frente Popular e pelos sucessivos (e cada vez mais neoliberais) governos do CNA. E muitos menos são os que trazem para o centro de suas análises a lembrança de que a “vítima” tinha suas mãos mergulhadas no sangue de sabe-se quantos negros; homens e mulheres; jovens, idosos e crianças, tendo estado pessoalmente à frente de torturas, assassinatos e uns tantos atos criminosos, motivados pelo seu racismo.

Feridas abertas do Apartheid
Mas queira ou não os porta-vozes do sistema, as marcas deixadas no corpo de Terra’Blanche inegavelmente são bem menores e muito menos numerosas do que as feridas que ele e sua gentalha imprimiram ao povo negro sul-africano no decorrer de décadas. Como também jamais poderiam se aproximar da profundidade das feridas deixadas abertas pela solução negociada capitaneada por Mandela e seus seguidores.

Foram exatamente as dores provocadas por estas feridas que motivaram os jovens que puseram um fim a Terra’Blanche. Suas marcas estão em todos os cantos. A sobrevida do falecido líder do AWB é apenas um exemplo da manutenção de práticas e situações que existiam no Apartheid.

Ao negociar o fim da legislação racista do Apartheid sem mexer na estrutura capitalista do Estado, o CNA permitiu a continuidade da exploração que motivava as leis que mantinham os negros em condições subumanas de vida. Ao mergulhar no neoliberalismo, os sucessivos governos sul-africanos aprofundaram esta situação, atacando, assim como no Brasil, os direitos trabalhistas, alimentando o desemprego e sucateando os serviços públicos.

O pior, e talvez ainda mais desesperador para jovens como os dois que confrontaram Terra’Blanche, é o fato de que, ao lado desta situação, da contínua atuação de grupos como o AWB e da visível tranquilidade com a qual a elite branca manteve e ampliou seus negócios e lucros, os negros e lutadores brancos sul-africanos têm visto a ascensão de uma elite negra vinculada ao próprio CNA, os parceiros-beneficiários do capitalismo local.

Uma situação, inclusive, saudada por jornalistas mundo afora. Este é o caso de John Carlin, em um artigo publicado em O Estado de S. Paulo, em 11 de abril. Antes, contudo, cabe ter em mente que Carlin é autor do livro Conquistando inimigos, no qual foi inspirado o roteiro de Invictus, o filme em que Morgan Freeman vive o papel de um Mandela que leva para o campo do rúgbi o processo de negociação nos primeiros anos de seu governo.

Defensor da tese de que a morte de Terra’Blanche terá pouco impacto sobre a situação sul-africana, Carlin defende que isto se deve ao fato de que o país é uma das democracias mais fortes do mundo, uma fortaleza conquistada porque o país “tem feito as coisas tão bem quanto se esperava dela”, existindo, hoje, inclusive, “até uma elite negra formada por pessoas que foram proeminentes na luta contra o apartheid e hoje levam uma vida luxuosa”, por exemplo, “como acionistas ou proprietários de grandes empresas de software”.

Apesar do entusiasmo com o qual Carlin comenta tudo isto, ele mesmo não pode esconder que todo este luxo é acessível a poucos, pouquíssimos, já que “a maioria dos negros está na mesma situação de antes, só que agora eles possuem uma commodity (mercadoria) à qual é difícil atribuir um valor: a dignidade”.

Para o azar e desespero dos sul-africanos, contudo, somente gente com perspectiva ideológica de Carlin pode ver alguma dignidade no fato de viver (depois de décadas de luta, dores e sacrifícios que envolveram milhões) com salários de R$ 72, em miseráveis casebres, sem acesso ao mínimo que um destes novos membros da elite, ombro-a-ombro com os velhos opressores, gasta em um de seus luxuosos jantares.

Os próximos lances
A proximidade da Copa pode, certamente, forçar uma minimização da tensão criada pela morte do velho canalha e para sempre fascista. O governo está apostando todas as suas fichas nisso, como também a imprensa mundial e todo o gigantesco negócio que gira em torno do campeonato. Cabe lembrar que o governo sul-africano já investiu algo em torno de US$ 6 bilhões. E grana é prioridade para todos eles.

Contudo, no momento, a tensão está fortemente no ar, principalmente no vilarejo de Vendersdorp, na região da capital Johanesburgo, onde os jovens estão presos. E, dentro do próprio CNA, pelo menos uma voz dissonante tem preocupado os planos do governo, a de Julius Malema, que com 29 anos dirige a Liga da Juventude do CNA.

Tudo indica que a dissonância é apenas no tom, já que Malema não parece discordar da política geral de seu partido, contudo ele virou alvo de críticas vindas de todos os lados ao incentivar que seus apoiadores e manifestantes que pedem a libertação dos jovens entoem um hino da época do Apartheid, singelamente intitulado “Kill the bôer” (matem os fazendeiros).

Se Julius vai se manter à frente das manifestações de solidariedade aos jovens e aprofundar uma diferença com o CNA é algo que só a História pode contar. O fato é que, no momento, ele tem atrás de si uma massa significada que entoa a música com o mesmo entusiasmo que grita “heróis, heróis”, país afora, toda vez que os jovens de Vendersdorp são citados.

A canção tem enfurecido muita gente, a começar pelos líderes do AWB que oferecerem nada menos do que US$ 280 mil pela cabeça de Julius. Quando não provocado comentários estapafúrdios (mas completamente sintonizados com o espírito frente-populista) como o do já mencionado John Carlin, que no seu artigo sugere que as massas continuem gritando, mas não mais “kill the bôer”, mas sim “Kiss the bôer” (beije o fazendeiro). Bobagem ofensiva que dispensa comentários.

No entanto, numa demonstração de que é apenas uma das alas mais raivosas daqueles que, apesar de não se verem representados na Frente Popular, não querem prejudicar o andamento dos negócios, o AWB também já declarou que não irá provocar qualquer distúrbio que possa impedir a realização da Copa.

Com trégua ou não, passada a Copa, a dolorosa realidade continuará batendo à porta de milhões de negros e negras todos os dias. E novamente estará colocado nas mãos deles uma tarefa muito mais difícil do que aquela empreendida pelos jovens que abateram Terra’Blanche: reconstruir uma alternativa de organização e luta dos milhões que ainda sofrem com a opressão racial e a exploração capitalista na África do Sul.

Uma alternativa que não só terá que superar o CNA e seus aliados, mas também apontar para uma perspectiva socialista, a única forma possível para que algum dia se curem completamente as feridas do racismo, deixadas pela apartheid.