Guilherme Boulos (PSOL), Fernando Haddad (PT) e Flávio Dino (PCdoB)
Bernardo Cerdeira, de São Paulo (SP)

Bernardo Cerdeira, de São Paulo (SP)

Nas últimas semanas, aconteceram atos e manifestações no Largo São Francisco, em São Paulo, contra os ataques às liberdades democráticas e em defesa do site The Intercept Brasil. Na Bienal do Livro do Rio de Janeiro, também houve manifestação contra a censura à história em quadrinhos Os Vingadores – A Cruzada das Crianças, na qual dois personagens homens se beijam. Essas manifestações em geral foram positivas e mostram a reação política às medidas mais autoritárias de Bolsonaro.

Não há dúvida que Bolsonaro tem um projeto autoritário: defende a ditadura militar, a tortura, a censura, a discriminação a mulheres, negros, indígenas e LGBTs e a impunidade para os policiais que praticam execuções. Enfrentar e derrotar esse projeto defendendo as liberdades democráticas é uma tarefa urgente das organizações de trabalhadores, estudantes e de todos os setores populares e democráticos. No entanto, há profundas diferenças em como fazê-lo, com que táticas e com que programa.

Unidade é para a ação
Comecemos pelo problema da unidade. Para derrotar o projeto autoritário, sem dúvida é necessária uma ampla unidade de todos os setores. O problema é: unidade como e para quê?

Em primeiro lugar, é preciso uma unidade para a ação, para a luta, para a mobilização popular com o objetivo de defender as liberdades democráticas. Para deter o ataque do governo é preciso ir às ruas. Todo manifesto ou ato deve ser concluído com um chamado à organização e à preparação de mobilizações populares.

Em segundo lugar, é preciso definir se é uma unidade para a ação, como propomos, ou se é uma unidade eleitoral para 2020 e, sobretudo, 2022, como já defendem várias forças políticas.

Alguns setores respondem a isso dizendo que não se deve opor uma coisa à outra, que não seriam incompatíveis. Na verdade, são sim. A unidade para lutar pode e deve ser feita entre todos os que defendem as liberdades democráticas, em cima de pontos concretos e específicos. Já as frentes eleitorais, mesmo que sejam táticas, têm uma relação direta com os programas e as estratégias, pois refletem projetos para a sociedade, definições e alianças.

Colaboração de classe
A proposta de uma frente eleitoral entre partidos de esquerda e partidos burgueses, por exemplo, como as alianças que o PT fez nos seus 13 anos de governo, é um projeto de colaboração de classes para governar para os capitalistas e realizar algumas reformas no sistema.

A prática dos governos petistas mostrou que o resultado desse projeto foi prolongar a agonia do capitalismo e os sofrimentos da classe trabalhadora, que acabam pagando por suas crises como está acontecendo agora.

Política errada
Não concordamos em repetir o projeto eleitoral do PT e do PCdoB, que também é o do PSOL, ainda que com algumas diferenças. Nas eleições, vamos defender um programa e um projeto socialista e de independência de classe. Assim como nós, outros setores defenderão outros projetos. Mas isso não impede que estejamos juntos na luta em defesa das liberdades democráticas.

Portanto, a proposta de colocar um sinal de igual entre uma frente de luta em defesa das liberdades democráticas e uma frente eleitoral é uma política sectária, estreita, porque afasta os setores que não estão de acordo com a proposta eleitoral. No fundo, atua contra a unidade para lutar. Faz, nesse sentido, algo oposto do que fez a campanha pelas Diretas Já contra a ditadura.

NÃO É A MESMA COISA
Liberdades democráticas e Estado de Direito

Há outra diferença com o programa que devemos levantar contra o governo. O PT, o PCdoB e alguns setores ditos democráticos colocam um sinal de igual entre dois conceitos diferentes: liberdades democráticas e Estado de direito. O centro da política desses partidos é a defesa do Estado de direito. Não concordamos.

O que são liberdades democráticas
As liberdades democráticas são principalmente a liberdade de expressão, de manifestação e de organização, ou seja, a liberdade de imprensa e de manifestações artísticas e culturais sem censura; a liberdade de organização de sindicatos, associações e partidos políticos; a liberdade de realizar manifestações públicas livremente.

Essas liberdades são conquistas das revoluções, cuja máxima expressão foi a Revolução Francesa, em 1789, que não por acaso levantava o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”.

No Brasil, essas mesmas liberdades foram conquistadas depois de vinte anos de luta e resistência à ditadura militar e são a base que permite a organização e a luta contra esse governo repressivo e explorador. Portanto, defendemos as liberdades democráticas contra todas as tentativas de destruí-las ou cerceá-las.

Estado de direito
O chamado Estado de direito é o Estado de uma classe social, a burguesia, que consolidou o seu poder e moldou o Estado capitalista para exercer a sua dominação. É o que chamamos democracia burguesa.

Desde o princípio, a democracia burguesa abriga uma enorme contradição: suas constituições e leis pretendem expressar valores democráticos, mas a organização da sociedade capitalista está baseada na necessidade de manter ou aumentar os lucros do capital. Isso só é possível aumentando a exploração dos trabalhadores e dos setores oprimidos, o que provoca brutais crises econômicas e uma desigualdade crescente.

A única maneira que a burguesia tem para impor essa exploração crescente é reprimindo os trabalhadores e os oprimidos, atacando seus direitos e as liberdades democráticas para impedir que eles resistam. Isso é ainda mais agudo quando se trata de um país pobre, tremendamente desigual e em uma situação de crise econômica e social, como é o caso do Brasil. Por isso, quando não consegue mais governar enganando com a democracia dos ricos, a burguesia apela a ditaduras puras e simples para preservar o sistema capitalista.

Nada democrático
O Estado de direito, uma das formas de garantir a ditadura da burguesia e do capital, reveste-se, portanto, de uma democracia de caráter formal: as leis são democráticas no papel, mas na prática o Estado é discriminador e repressivo. Nossa Constituição afirma, por exemplo, que todos são iguais perante a lei, mas isso é um escárnio com os setores pobres. Os ricos quase nunca vão para a cadeia. Quando isso acontece, recebem os benefícios de delações premiadas e a possibilidade de cumprir a pena em prisão domiciliar gozando da fortuna roubada. Com os pobres ocorre o contrário.

Pela lei, todos têm direito a um julgamento justo e, se condenados, têm direito a preservar sua vida e sua dignidade na prisão. No entanto, segundo o Conselho Nacional de Justiça, 41,5% dos presos no país sequer foram julgados. Sobre “preservar a vida e a dignidade” em nossas prisões, é só lembrar dos shows de horrores nos massacres dos presídios para ver que isso é falso.

Violência contra o povo
A lei diz que a pena de morte não existe no Brasil, mas é óbvio que não é verdade. A polícia executa criminosos e inocentes a seu bel-prazer e tem uma licença informal para fazê-lo. Só a PM do Rio de Janeiro matou mais de 800 pessoas este ano, entre elas um pedreiro que estava trabalhando e várias crianças indo para a escola. O genocídio contra a população negra nas favelas é uma política de Estado para manter o povo pobre aterrorizado e sem forças para lutar por seus direitos.

Indígenas e quilombolas têm o direito à sua terra garantido na Constituição, mas sofrem invasão de madeireiros, garimpeiros e fazendeiros e o Estado não garante seu direito. Nas fábricas, nenhum trabalhador pode manifestar-se sem risco de perder o emprego. Existe uma ditadura dentro das empresas. O direito de organização e manifestação é formal.

Uma farsa
Tudo isso mostra que o Estado de direito é uma farsa. O Estado burguês é um Estado repressor de trabalhadores e pobres, cuja função principal é defender a propriedade privada dos ricos e poderosos.

Um programa dos trabalhadores vai muito além da democracia burguesa tanto em relação ao Estado quanto ao regime político. Nosso objetivo é um Estado operário com uma democracia operária baseada em conselhos populares que acabe com essa contradição entre a democracia formal e o poder econômico.

ILUSÕES
Defender liberdades democráticas e não o Estado capitalista

Ao defender o Estado de direito burguês, partidos como o PT e o PCdoB não só alimentam as ilusões na democracia burguesa como, pior ainda, fortalecem suas instituições reacionárias como o Judiciário, o Congresso corrupto e as cúpulas das Forças Armadas. Nós, ao contrário, defendemos as liberdades democráticas conquistadas pelos trabalhadores e pelo povo, mas não defendemos esse Estado (capitalista) de direito.

Há apenas uma exceção: quando estamos diante de um golpe militar defendemos, de armas nas mãos se for preciso, a democracia burguesa, já que as ditaduras eliminam até as mínimas liberdades democráticas. Ambos são regimes políticos burgueses, mas a democracia burguesa é mais favorável aos trabalhadores porque permite liberdades formais. Porém hoje, apesar dos ataques do governo, não estamos na iminência de um golpe militar.

A defesa do Estado de direito não é a máxima expressão da luta contra as ameaças autoritárias de Bolsonaro. Ao contrário, introduz uma visão programática burguesa que só divide e enfraquece a luta pelas liberdades democráticas. Impede e amarra a mobilização dos trabalhadores e do povo, o caminho mais seguro para derrotar Bolsonaro e seu projeto de ditadura. Impede que os trabalhadores desenvolvam um projeto estratégico de luta por uma nova sociedade. As Frentes estratégicas com a burguesia são o abandono da luta para construir outro tipo de sociedade e obrigam os trabalhadores a aceitar sem luta os planos de entrega do país de que os capitalistas precisam.

Publicado no Opinião Socialista nº 578