Uma insurreição de massas percorre o Norte da África e o Oriente Médio. O eco desta insurreição regional se fez ouvir na Bolívia, com uma greve geral que paralisou o país contra o aumento dos preços dos alimentos e dos transportes, no dia 18 de fevereiro.

A faísca que acendeu o incêndio foi a inflação, em particular a dos alimentos, que está empurrando milhares de trabalhadores para a miséria. Mas qual é a situação da inflação no mundo, quais são suas origens, quem a gera e quais são as consequências?
Partimos da seguinte definição: a inflação internacional, concentrada no setor de alimentos e matérias-primas, é o resultado direto da política do imperialismo norte-americano de exportar sua crise para o resto do mundo. O resultado é o aumento da exploração dos trabalhadores no mundo todo e uma transferência de lucro de outros setores burgueses para o capital financeiro dos EUA.

Inflação internacional
Quando os capitalistas criam um processo inflacionário em um país (uma alta generalizada nos preços das mercadorias), ele tem dois efeitos centrais. Primeiro, rebaixa os salários dos trabalhadores, aumentando sua exploração, pois com a mesma quantidade de horas trabalhadas compramos menos, ao mesmo tempo em que expressa a luta entre os capitalistas pela acumulação de capital. Pois quem não consegue repassar os custos de produção tende a quebrar.

Mas uma inflação internacional não é a soma de várias inflações nacionais. Ela se origina no sistema produtivo mundial, em um ramo da economia, como uma alta dos preços de forma acumulativa. Ocorre que nem toda burguesia nacional tem o poder de gerar uma inflação internacional, nem uma economia dominada pode gerar um processo inflacionário internacional. Somente a economia de ponta do sistema (os Estados Unidos) tem esse poder. Mas como e por que a inflação internacional toma conta do panorama econômico e político?

A teoria econômica burguesa e a inflação
Todos os dias somos bombardeados pela imprensa burguesa com a informação de que a alta no preço dos alimentos e dos metais industriais se deve à demanda da economia chinesa. Com uma fome insaciável por alimentos e metais, os chineses puxam os preços para cima.

Outra versão explica a inflação pela quantidade de dinheiro no mercado. A receita manda aumentar os juros, retirando dinheiro de circulação. Assim, o dinheiro vai para aplicações financeiras, o consumo é reduzido e pimba! Está resolvido o problema.

Nessas duas explicações a inflação é tratada como um ser, um ente sobrenatural que não é governado pela ação humana. Sabemos, porém, que no capitalismo o comportamento das classes sociais define, em última instância, o que vai ser feito durante a crise. Os preços sobem porque alguém tomou esta decisão. Por isso, antes de qualquer coisa, temos que discutir as razões desta opção.

A inflação como consequência do “excesso” de moeda é puro engodo. Desde a explosão da crise e da quebra dos bancos norte-americanos o mundo assistiu a um fenômeno oposto, uma paralisia nos empréstimos e uma diminuição das operações de créditos entre os bancos e, portanto, uma diminuição da oferta de dinheiro.

O que explica a quantidade da circulação de moeda é a produção de mercadorias e sua circulação. É a necessidade da circulação e sua velocidade que regulam a quantidade de moeda. A diminuição da produção diminui a quantidade de mercadorias e, portanto, a quantidade de dinheiro para realizar as trocas.

Mas nos dias de hoje não é a moeda impressa a forma principal do dinheiro. São os créditos bancários, as dívidas e o cartão de crédito os principais multiplicadores da “quantidade de dinheiro” nas economias de ponta do mercado mundial.

Com a crise econômica houve praticamente uma paralisia do crédito bancário. Este fator, aliado à superprodução dos principais ramos industriais, fez os preços despencarem, aprofundando a crise. Até agora o principal problema nas economias imperialistas, em particular na dos EUA, não era a inflação, mas a deflação, ou seja, a queda dos preços.

Uma crise de superprodução
Isto é assim porque a crise atual é de superprodução nos principais ramos da economia, o que arrastou junto o sistema financeiro. Vejamos: a produção de veículos em 2009 caiu em 15 milhões de unidades, a maior queda desde a Segunda Guerra Mundial (em 2008, o mundo havia produzido 70 milhões de veículos).

A capacidade produtiva mundial de automóveis é de 89 milhões de veículos, enquanto o consumo está em cerca de 55 milhões. Ou seja, há uma ociosidade de 35% em nível mundial! Isso significa que a indústria automobilística mundial está trabalhando com apenas 65% da sua capacidade. Nos EUA e na Europa, a utilização da capacidade chegou entre 40% e 30%.1

Portanto, não há mercadorias em excesso frente às necessidades de consumo mundial. O problema é que as mercadorias não podem mais serem vendidas com os preços de antes, causando uma queda nos lucros, demissões, menos consumo e diminuição do crédito, aprofundando a crise dos bancos.

A este fator determinante da crise soma-se outro igualmente importante: as dívidas da economia norte-americana, que foram o motor do crescimento econômico. A dívida total dos EUA equivale a 296% do seu Produto Interno Bruto; a dívida total das residências, que mantêm o consumo da classe trabalhadora e, em particular, as hipotecas equivalem a 140% da renda das famílias. A deflação acaba aumentando o valor das dívidas, pois enquanto os preços das mercadorias caem, o valor da dívida das casas e dos cartões de crédito permanece o mesmo. Assim, ela vai se tornando um peso cada vez maior para a retomada da acumulação de capital.

A demanda da China causa a explosão dos preços?
A superprodução mundial nos principais ramos da indústria explica até agora a queda nos preços dos produtos industriais, mas o fenômeno da inflação internacional se concentra em um setor: a produção de alimentos e de matérias-primas para a indústria, que está concentrada nas economias dominadas. Aparentemente seriam estes países os responsáveis pela inflação internacional. Mas a realidade é outra.

Para compreender esse processo são necessárias duas definições prévias. A primeira é a de que o comércio internacional não é realizado entre países, mas entre empresas. A segunda é a de que o mercado mundial é dominando pelo capital financeiro, e no topo está o capital financeiro norte-americano, com seus fundos de investimentos controlando as principais empresas.

Em 2006, os preços dos alimentos começaram a subir. Um ano depois, o preço do trigo subiu 80%, o do milho 90% e o do arroz, 320%. Os levantes populares contra a fome eclodiram em mais de trinta países, e 200 milhões de pessoas enfrentam desnutrição e fome. Jean Ziegler, relator especial da ONU sobre o direito à alimentação, chamou isso de “um silencioso assassinato em massa”.

A explicação de que os preços subiram pelo aumento da demanda na China e na Índia é uma mentira: a demanda nesses países caiu 3% no período, e o Conselho Internacional de Grãos afirmou que a produção mundial de trigo aumentou durante o pico de preços.
A explicação para esta subida artificial dos preços, antes da eclosão da crise, se deve ao fato de os capitais dos fundos de investimento norte-americano começarem a migrar da indústria para a produção de alimentos. Assim, 64% dos contratos de produção de trigo estavam nas mãos do capital financeiro, o que explica a explosão no preço do pão, um produto básico na alimentação dos países árabes e do Norte da África.

Com a liquidação do Lehman Brothers, foi possível verificar que o investimento em commodities deste banco saltou de 13 bilhões de dólares para 260 bilhões de dólares entre 2003 e 2008. Assim, como os títulos de hipotecas que giravam nas mãos dos investidores, a produção mundial de trigo em um ano pôde ser trocada 45 vezes exatamente como um título de hipoteca.

De repente, como mágica, os preços dos alimentos caíram para os níveis anteriores de 2008. Mas isso não foi magia. Ocorre que, com a crise das hipotecas, a “bicicleta” parou de pedalar. O capital financeiro diminuiu a compra da produção de alimentos e de ações das empresas que produzem matérias-primas. E, apesar da demanda da Ásia, os preços se estabilizaram.

Inflação internacional e desenvolvimento desigual
O atual aumento generalizado nos preços dos alimentos e das matérias-primas é o resultado do mesmo mecanismo que os fizeram subir em 2007-2008, ou seja, uma migração dos capitais para este ramo da economia mundial. Mas agora com um elemento a mais: trata-se de uma decisão política do governo Barack Obama de exportar a crise para o resto do mundo.

Apesar da transferência (através do banco central dos EUA, o FED) de trilhões de dólares para os bancos, não houve nenhum efeito concreto sobre a crise de superprodução. Os bancos apenas cobriram o rombo em seus balanços. Eles necessitam que os lucros das grandes empresas voltem a subir e que o capital volte a se acumular. É sobre esta base que a especulação converte dez em um milhão, através dos títulos das empresas, bônus, hipotecas etc.

Mas, com os preços em queda, a especulação não pode chegar aos patamares de antes. O acumulo de dívidas e o desemprego paralisaram a venda de imóveis, além de diminuir a quantidade de empréstimos. No final de 2010, o FED voltou a injetar 600 bilhões de dólares nos bancos, mas agora com outro objetivo.

Aproveitando-se da desigualdade da economia mundial e da acumulação de capital que segue no leste da Ásia, que demanda matérias-primas e alimentos, o capital financeiro se desloca para esse setor gerando uma nova alta artificial dos preços.

Mas quem fatura com isso não são os países produtores de alimentos e matérias-primas, mas as empresas controladas pelo capital financeiro. A maior fatia dos lucros da Vale e da Petrobras é cotizada na bolsa de Nova York. O comércio mundial de alimentos é controlado por multinacionais como Nestlé, Monsanto e Cargill. Os preços destes bens são definidos nas bolsas de Chicago a partir das ordens de compra dos bancos.

Os preços destes produtos aumentam como uma forma de transferir mais-valia do mundo inteiro para o capital financeiro norte-americano. Desta forma, a conta da crise é repassada para os trabalhadores, que pagam mais caro para se alimentar.

A segunda consequência é uma transferência de parte dos lucros do setor industrial para o setor financeiro norte-americano. Na medida em que parte da produção do leste de Ásia está voltada para a exportação, dificilmente as empresas podem aumentar os preços (como ocorre com o aumento das matérias-primas), pois a concorrência internacional e a superprodução impedem o aumento dos preços industriais na escala necessária.

Para compensar este aumento dos custos e a diminuição dos lucros, os preços no interior da China tendem a subir. A burguesia industrial vai transferir uma parte de seus lucros para o capital financeiro, e dentro dos países para as empresas produtoras de matérias-primas. Mas antes vai descarregar os custos deste ajuste no proletariado.

O FMI “recomenda” o aumento dos juros para a Ásia, o que significa uma “recomendação” para eles absorverem o dinheiro dos bancos norte-americanos, pois a taxa de juros nos EUA segue próxima de zero. “Façam o que o governo Dilma fará no Brasil”, dizem.

O aumento das exportações dos EUA para o resto do mundo é o outro efeito desta política. As relações no mercado mundial têm uma hierarquia, e esta hierarquia na época imperialista é determinada pelo controle do capital financeiro e pelo tipo de indústria que é destinada a cada um dos países. A inflação internacional será a expressão da luta pelo controle dos mercados. É uma forma de concorrência entre as burguesias, os setores que não puderem repassar os custos tendem a ficar para trás. Mas, ao repassar os custos para os trabalhadores, a burguesia pode enfrentar um acirramento da luta de classes.

Agora, a chave para os próximos capítulos da crise está na luta entre as classes. A burguesia versus o proletariado, e também a batalha entre as distintas burguesias nacionais, que buscarão preservar os seus lugares na hierarquia do sistema.

1. Nazareno Godeiro, Estudo do ILAESE sobre a industria automobilística.
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