• Introdução
  • O contexto histórico do nascimento do internacionalismo proletário
  • O surgimento da Primeira
  • As conquistas da I Internacional e A Comuna de Paris
  • As lutas internas da Primeira e o “novo internacionalismo“
  • “Um Outro Mundo é Possível“. Qual?
  • Marx, Lênin e Trotsky e o internacionalismo revolucionário do século XXI
  • “Uma Terra sem Amos: A Internacional!“
  • Bibliografia
  • Notas

    “O internacionalismo não é um dogma, nem um sonho, nem uma idéia sentimental, impossível de realizar. Para os materialistas, o internacionalismo é o reconhecimento da realidade e das necessidades da civilização contemporânea. Essas bases materiais, sociais, da economia mundial constituem os verdadeiros fundamentos do internacionalismo marxista“
    George Novack


    Introdução
    Há pouco mais de 140 anos surgia a Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) – posteriormente conhecida como I Internacional. A fundação da I Internacional tratava-se então da culminação político-organizativa de um período inicial marcado por intensas formas de solidariedade ativa e resistência proletária desenvolvidas pelas parcelas mais avançadas do nascente movimento operário socialista, baseadas na construção de uma perspectiva própria, de classe e identitária – para além das fronteiras nacionais – bem como de um projeto comum de auto-emancipação.

    Em 28 de setembro de 1864 celebrou-se em Saint Martin`s Hall – na região de Long Acre, em Londres – uma grande assembléia internacional de operários, na qual se fundou a AIT e foi eleito seu respectivo Comitê Provisório. Karl Marx formou parte do mesmo e, em seguida, da comissão designada na primeira reunião do Comitê, celebrada em 5 de outubro, para redigir os documentos programáticos da Associação. Em 20 de outubro, a comissão delegou a Marx a reelaboração de um documento no espírito das idéias de socialistas utópicos, tais como o italiano Mazzini e o britânico Owen. Em lugar deste documento, Marx escreveu dois textos completamente novos – o “Manifesto Inaugural da AIT“ (1864) e os “Estatutos Provisórios da AIT“ (1871) – que foram aprovados em 27 de outubro. Em 1º de novembro do mesmo ano, o “Manifesto“ e os “Estatutos“ foram aprovados por unanimidade no Comitê Provisório, já constituído, então, como órgão dirigente da Associação.

    A furiosa denúncia do capitalismo – que em pleno momento determinante de expansão da sociedade produtora de mercadorias só fazia alastrar miséria, inanição e embrutecimento entre os trabalhadores do mais avançado país do século XIX – e a convocatória à unidade dos proletários de todos os países marcaram o discurso de Marx na fundação da I Internacional. Não obstante, há uma sensível diferença entre a forma de enunciação dos princípios programáticos inaugurais da AIT, em 1856, e aqueles registrados no `Manifesto do Partido Comunista`, de 1848 (ambos os documentos redigidos de próprio punho por Marx). Em correspondência a Engels, Marx comenta que: “ainda passará algum tempo antes que o velho movimento revivido nos permita utilizar a velha linguagem audaz. A necessidade do momento é: ousadia no conteúdo, mas moderação na forma“. O documento expressava a um só tempo a heterogeneidade de níveis e orientações de desenvolvimento político-ideológico no seio da I Internacional assim como as idéias fundamentais do comunismo. A aposta de Marx era no sentido de que a unidade de ação, mediante a práxis revolucionária, faria avançar a consciência de classe no interior da AIT e então a concepção materialista da História – exposta cristalinamente no Manifesto de 1848 – conquistaria desta forma a hegemonia dentro da I Internacional.


    O contexto histórico do nascimento do internacionalismo proletário
    O surgimento da I Internacional não pode ser concebido de forma espontânea e natural, como o faz o livro do Gênesis, para o qual “no início era o verbo“ e bastou o sopro divino proclamar “faça-se a luz“ para que o universo surgisse de golpe do que até então eram somente trevas. Longe de considerar sua gênese como algo pronto e acabado, trata-se de perquirir as determinações materiais e mediações fundamentais que possibilitaram historicamente seu nascimento. A I Internacional apoiou-se no acúmulo de experiência de pelo menos três organizações que lhe deram origem: A Sociedade dos Democratas Fraternais, fundada em 1845 pelo líder cartista George Julian Harney em Londres, que reunia refugiados políticos de toda a Europa; A Liga dos Comunistas, criada em 1848 sob influência de Marx e Engels, que através do Manifesto Comunista brindava ao movimento operário um modo historicamente inédito e autêntico de alcançar seus próprios interesses e, por fim, o Comitê Internacional, organizado por Ernest Jones em Londres, que manteve acesa a chama revolucionária durante a reação política dos difíceis anos da década de 1850.

    A vaga revolucionária de 1848 – que sacudiu o Velho Continente em países como Alemanha, Áustria e Itália – representa um período de transição que iria atravessar a existência da I Internacional pelo menos até 1871. A burguesia encontrava-se numa espécie de beco-sem-saída histórico, já que não podia levar às últimas conseqüências sua própria revolução – enfrentando-se à nobreza e aos resquícios do antigo regime – porque temia que o proletariado, escapando ao seu controle, continuasse, expandisse e aprofundasse a revolução em torno aos seus próprios interesses de classe. Ainda, tanto do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas e das relações de classe (condições objetivas) quanto da solidez da teoria revolucionária e sua apropriação pelas massas (condições subjetivas), não estava posta a possibilidade histórica da duradoura conquista do poder político pelo proletariado. Detrás da presença em cena da burguesia, contudo, encontrava-se a classe operária, “cuja sombra já se projetava sobre o proscênio“ (Brossat, 1977). Tratava-se da simultaneidade histórica entre o “já não mais“ das revoluções burguesas e do “ainda não“ das revoluções proletárias. Aí residia a ambigüidade do cenário histórico que antecedeu a criação da I Internacional e iria condicionar-lhe política, ideológica e organizativamente.

    Em relação às derrotadas revoluções européias de 1848, no momento em que as conquistas sociais eram vilipendiadas pela aliança entre a moderna burguesia e a velha aristocracia – quando “os sonhos efêmeros de emancipação se desvaneceram diante de uma época de febre industrial, marasmo moral e reação política“ (Marx, 1864) -, Marx afirmou que a principal conquista da revolução era a própria revolução. Do mesmo modo, pode-se dizer que a consciência, a experiência e a organização que a I Internacional ajudou a sedimentar entre os trabalhadores da época foram, em-si e por-si mesmas, uma grande conquista. “O que o proletariado conquistava era o terreno para lutar por sua emancipação revolucionária e não, muito pelo contrário, a emancipação propriamente dita“ (Marx, As lutas de classes França).


    O surgimento da Primeira
    O quadrante histórico no qual se inscreve o surgimento da I Internacional foi marcado por uma série complexa de causalidades concretas que mudaram o contexto da arena internacional, com conseqüências econômicas e políticas de vulto para este período: a crise econômica de 1857 – a mais importante do século XIX -, a guerra de independência da Itália em 1859 e a explosão da guerra civil nos Estados Unidos, em 1860. Neste cenário, a ditadura da França de Napoleão III é debilitada e, subseqüentemente, obrigada a realizar concessões sociais como a universalização do direito de voto aos trabalhadores e a revogação das leis que proíbem a existência de organizações sindicais. Na Inglaterra – onde já existia desde 1825 o direito à sindicalização – ainda lutava-se pelo sufrágio universal, na esteira do movimento cartista (1838-1848) lançado pelo operariado britânico.

    O desenvolvimento capitalista na Europa Ocidental ocorreu em meio a tentativas burguesas de dividir o operariado europeu. Quando o proletariado inglês lutava por melhores condições de trabalho – já fosse pela redução da jornada de trabalho ou por salários dignos -, os capitalistas ingleses ameaçavam importar força de trabalho de onde sua oferta dava-se em piores (ou melhores, desde a lógica do Capital) condições: França, Bélgica, Alemanha etc. Por outro lado, o início da guerra civil norte-americana e o embargo das exportações de algodão produziu uma grande débâcle da indústria têxtil inglesa. A condição dos trabalhadores ingleses era tão desumana que, ao serem expulsos das fábricas de tecidos, melhoraram momentaneamente sua situação de saúde – mesmo famintos e miseráveis – e diminuiu-se a taxa de mortalidade infantil, porque enfim as mães operárias tinham tempo de amamentar seus filhos.

    Em 1862 realiza-se em Londres a feira industrial conhecida como Exposição Mundial. Dá-se então novo contato entre delegados franceses e operários ingleses e, posteriormente, a troca de correspondência. O intercâmbio é aprofundado no ano seguinte, quando os governos da Inglaterra, França e Rússia conspiram juntos contra a insurreição polonesa pela independência nacional. Desta forma, e a partir destes acontecimentos, organiza-se uma assembléia pública – ato unificado de delegações sindicais francesas e britânicas – na Londres de 1864. Decide-se então pela criação de um Comitê Internacional de Trabalhadores encarregado de redigir estatutos e programa para a fundação de uma organização internacional operária independente. Marx foi de fato seu dirigente, organizador e principal autoridade, assim como autor de numerosas convocatórias, declarações, resoluções e outros documentos. Nos estatutos redigidos por Marx no mesmo ano constava – como primeira consideração – que “a emancipação da classe operária deve ser obra dos próprios operários“.


    As conquistas da I Internacional e A Comuna de Paris
    Para além das conquistas relacionadas à universalização de direitos políticos, melhoria das relações de trabalho, incremento da organização sindical e da própria solidariedade internacional dos trabalhadores – contra o escravismo nos EUA ou em favor da independência polonesa -, a atitude da AIT que provocou maior ódio entre a burguesia foram duas mensagens de Marx aos operários franceses, sublevados após a guerra franco-prussiana, em 1871. Nestas, Marx instava-os a tomar o poder político em suas mãos e criar, desta forma, a Comuna de Paris. Os operários-communards assim o fizeram, dando lugar ao primeiro Estado operário – ainda que efêmero – da História da humanidade. “Uma vez Trotsky caracterizou o período de atividades internacionais da classe operária realizadas durante a Primeira Internacional essencialmente como uma antecipação“ – ratificou Novack – “o Manifesto Comunista foi a antecipação teórica do movimento operário moderno. A Primeira Internacional foi a antecipação prática das associações operárias mundiais. A Comuna de Paris foi a antecipação revolucionária da ditadura do proletariado“.

    Após a brutal derrota francesa na guerra franco-prussiana de 1870 e em face à absoluta capitulação de sua burguesia, os operários parisienses, organizados na Guarda Republicana, decidiram assumir para si a defesa da cidade e tomaram em sua mãos a direção política de Paris. Marx e Engels consideraram a Comuna de Paris como a primeira experiência histórica de revolução e Estado operários ainda que, contraditoriamente, os communards fossem majoritariamente pertencentes a correntes adversárias ao materialismo histórico, tais como o proudhonismo e o blanquismo. As medidas tomadas estenderam a liberdade operária a níveis até então inauditos em qualquer democracia burguesa, produto da natureza de classe da revolução em curso. Esta experiência – que do ponto de vista da classe operária, significou “tomar o céu por assalto“ e apoiava-se na mobilização revolucionária do proletariado armado – inspiraria a teoria revolucionária de Lênin em `O Estado e a Revolução`. Os erros da Comuna serviram, por sua vez, para desenvolver e precisar a teoria marxista da revolução. A não-expropriação do Banco da França – abarrotado de ouro – em plena penúria econômica dos esforços para sustentar a luta e a renúncia ao terror revolucionário contra os burgueses, posição sustentada por aqueles setores contrários à abolição da propriedade privada, marcaram sua derrota histórica.

    A maior conquista da I Internacional foi contudo, parafraseando a Marx, a própria I Internacional. Constituir-se-ia enquanto precursora histórica da unidade internacional dos trabalhadores, expressando suas viabilidade e potência, possibilitando que novas gerações de internacionalistas reivindicassem o exemplo e o vigor do legado de sua tradição revolucionária.


    As lutas internas da Primeira e o “novo internacionalismo“

    Em carta a Bolte, em 23 de novembro de 1871, Marx escreveu que a história da I Internacional foi “uma luta contínua contra as seitas e os experimentos de fanáticos que tentavam manter-se dentro da Internacional contra o movimento real da classe operária“. As principais lutas internas da Primeira deram-se contra os seguidores de Proudhon, Lassale e Bakunin. Em primeiro lugar, Proudhon defendia a conservação da propriedade privada e a reforma do capitalismo a partir de sociedades cooperativas. Opunha-se, ainda, às principais formas e métodos de combate proletários: sindicatos, greves e a própria perspectiva da luta política operária independente. Lassale, por sua vez, sustentava tática oportunista de aliança à política pró-latifundiária de Bismarck contra a burguesia, abdicando de uma política independente face ao movimento operário alemão. Ao mesmo tempo, seus seguidores eram extremamente sectários em relação à participação em sindicatos os quais não estavam sob influência de seu programa e direção.

    `SignatáriosBakunin, finalmente, foi o opositor mais ferrenho de Marx no bojo da I Internacional. Foram os “bakuninistas“ que forjaram a expressão “marxida“/“marxista“, de forma altamente pejorativa, para designar os comunistas que defendiam as idéias de Marx. Enquanto os “marxistas“ defendiam a luta contra o Estado burguês e a imposição do poder operário – através da ditadura do proletariado – como transição historicamente necessária a uma sociedade sem classes, sem Estado e livre de toda coerção, os “bakuninistas“ estavam contra qualquer forma de autoridade e de Estado, independentemente de sua natureza de classe e limites históricos. Se por um lado os “marxistas“ – expressão que causava ojeriza e cólera a Marx – impulsionavam a luta política dos trabalhadores e a permanente mobilização de massas, por outro, os companheiros de Bakunin opunham-se à intervenção política dos trabalhadores e defendiam o método de “putch“ (“golpe“) para tomar o poder. Bakunin organizou uma fração secreta no interior da Primeira com o objetivo de conquistar sua direção através de táticas conspirativas. As lutas internas entre as duas tendências irreconciliáveis dividiram, neutralizaram e debilitaram significativamente a nascente Internacional.

    O internacionalismo proletário da Associação Internacional dos Trabalhadores, a AIT ou I Internacional, é invocado nos dias de hoje para designar a natureza mundial da “primavera social“ de Seattle e suas múltiplas expressões. Compara-se os posicionamentos político-ideológicos presentes entre os “de baixo“ de antanho – marxistas, bakuninistas etc. – e os de hoje (ecologistas, libertários, socialistas, feministas etc.), por um lado. De outro, o anticapitalismo que se opunha ao espírito do livre-cambismo econômico do séc. XIX é contrastado ao sentimento “antiglobalização“ de uma geração que viu renascer das cinzas a ideologia do laissez-faire neoclássico sob o epíteto de “neoliberalismo“. Muitos são aqueles que insistem em chamar tal fenômeno como “novo internacionalismo“ e associá-lo ao Fórum de Porto Alegre.

    “Indo mais além destas semelhanças, no entanto, o arco social que se fez presente em Porto Alegre é sem dúvida muito mais amplo do que aquele convocado em Londres, em 1864, ao calor dos sindicatos ingleses e franceses. Esta amplitude é o resultado de dois fatos que convém precisar por separado. Por um lado da atual dimensão, tanto espacial como social, da mundialização capitalista em curso. Estendida a quase todo o globo, suas conseqüências, em termos de concentração da riqueza e depredação da vida e do meio-ambiente, fazem-se sentir sobre uma ampla gama de setores e grupos sociais. Neste sentido a difusão, a escala planetária, do Capital como relação social que permeia e reconfigura, num sentido socialmente regressivo as estruturas sociais e os conseqüentes processos de concentração da riqueza e do poder em igual escala fizeram da palavra-de-ordem `o mundo não é uma mercadoria` e da importância de uma estratégia internacional duas referências insoslaiáveis do movimento“
    (Seane e Taddei, 2001).


    Um Outro Mundo é Possível“. Qual?
    Se autores como Chomsky, Ramonet e, por vezes, Löwy conjuram em seu auxílio os espíritos do remoto 1864, tomando-lhe emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens para apresentar à juventude antiglobalização um referencial alternativo digno deste nome, não consideramos que o fazem por acaso. Um espectro anti-socialdemocrático e anti-estalinista ronda estes movimentos – o que justifica o descarte da II Internacional reformista e da III Internacional burocratizada – mas o que estará por trás do rechaço à perspectiva marxista e revolucionária da IV Internacional? Certamente, múltiplas determinações, avessas a qualquer reducionismo. Não obstante, cabe sublinhar que à desconfiança instintiva das novas gerações à política operária socialista – amplamente justificada – vem somar-se um horizonte intelectual que não se propõe a considerar a superação histórica da Ordem do Capital como fundamento imprescindível de “Um Outro Mundo Possível“ – consigna que denotaria vibrante disposição em criar algo que jamais existiu -, e relutam em encarar a discussão sobre a formação dos sujeitos da transformação social em termos históricos, estruturais e classistas.

    Junto à afirmação “alterglobalista“ de que “Outro Mundo É Possível“, primeiro deixemos algo bem claro: é preciso humanizar homens e mulheres – e não o Capital -, e, segundo, que o construamos para além e sob os escombros deste. Como gritam as jovens plataformas antiglobalização da Europa Ocidental: “O Capitalismo Mata. Morte ao Capitalismo!“. O resgate do passado visa, desta forma, elidir a crise do capital e, em última instância, “fugir de sua solução na realidade“ (Marx, 1997). A perspectiva organizativa da I Internacional é reivindicada na atualidade – note-se – somente por organizações como a CNT-AIT e a nova CGT, centrais sindicais espanholas caudatárias da bandeira rubro-negra do anarco-sindicalismo, além de poucas organizações francesas e italianas. Aí estão, contudo, os primeiros passos histórico-independentes do movimento operário-socialista. Trata-se da tenra infância político-organizacional da perspectiva que Marx (e muitos, antes e depois dele) denominou comunista.

    A cultura libertária – em especial o anarquismo coletivista da Europa mediterrânea que veio a formar a primeira expressão geracional do movimento operário no Brasil; com sua imprensa, associações, greves e gritos-de-guerra – talvez tenha algo a nos ensinar sobre isso. Duas consignas libertárias, em especial, ajustam-se como luvas à ocasião. Uma é a de “render-se nunca, retroceder jamais“ – instinto de classe saudavelmente instransigente – e a outra, síntese exasperada de momentos decisivos da luta social: “passos atrás, nem para tomar impulso“. Aí está uma bela homenagem à memória histórica de nossos predecessores. O revival anarquizante dos dias atuais – autonomista e multiperspectival -, ora sintetizado na palavra-de-ordem “mudar o mundo sem tomar o poder“ de Holloway (2002) ou na disjuntiva “multidão versus império“ de Hardt e Negri (2002) estão, na verdade, muito longe de se equiparar ao que já foi a outrora pujante corrente pequeno-burguesa do anarquismo clássico. Nas presentes coordenadas históricas nas quais ainda impera a crise de direção revolucionária “o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno se verificam os fenômenos mórbidos mais variados“
    (Gramsci, 1975).


    Marx, Lênin e Trotsky e o internacionalismo revolucionário do século XXI

    Os estatutos da Primeira Internacional, aprovados em 1864, correspondiam a uma organização internacional que se considerava como uma Associação, sobretudo, “estabelecida para criar um centro de comunicação e de cooperação entre as sociedades operárias dos diferentes países“ (Marx, 1864). Desta forma sua direção, o Conselho Geral, “funcionará como agência de enlace internacional entre os diferentes grupos nacionais e locais da Associação“ (Marx, idem). Em coerência com o status de Associação, a I Internacional admitia como membros tantos grupos e indivíduos por país como o fossem solicitados. Por essa razão, em seu artigo 6º, clama a que nos respectivos países as associações agrupem-se para ver se é possível ir gerando “órgãos centrais de caráter nacional“. No entanto estabelece em forma categórica que “toda sociedade local independente terá o direito de se corresponder diretamente com o Conselho Geral“. O nível de consciência alcançado pelo proletariado, assim como o próprio desenvolvimento das forças produtivas da época, endossavam esta forma organizativa. A I Internacional nunca chegou a ser um partido mundial, na verdade foi uma ampla frente de diferentes organizações e dirigentes revolucionários que compartilhavam identidade e projeto comuns.

    A III Internacional, sob a liderança de Lênin, estrutura seus estatutos partindo da diferença qualitativa com respeito a suas predecessores, o de aspirar a ser um partido mundial – uma organização proletária democraticamente centralizada. Os estatutos da III Internacional (aprovados no II Congresso, em 1920) iniciam em seu prólogo reivindicando a tradição da Primeira Internacional mas – no lastro da capitulação da Segunda Internacional, a guerra imperialista e a revolução proletária na Rússia – acresce que esta nova Associação Internacional de Trabalhadores que “combate pela abolição o capitalismo e a instauração do comunismo“ deve ter “uma organização fortemente centralizada“. Este critério de organização fortemente centralizada recorre todo seus estatutos. Em setembro de 1938 a IV Internacional – a maior obra de Trotsky -, aprova em seu Congresso Fundacional estatutos em boa parte improvisados, já que o autor dos mesmos – o secretário de organização da IV, Rudolph Klément -, fora torturado, assassinado e jogado ao rio pela GPU (a polícia política sob comando de Stálin, precursora da ex-KGB) nas vésperas do Congresso, desaparecendo com ele toda a documentação que levava, entre ela o projeto de estatutos. Os estatutos finalmente aprovados assentaram-se no mesmo critério da III Internacional, qual seja, o de ser um “partido mundial da revolução socialista“.

    O internacionalismo de Lênin e Trotsky incorpora a necessidade da solidariedade fundada na identidade e nos projetos comuns, mas vai além, alicerçando-se numa compreensão do imperialismo enquanto época histórica da atualidade da revolução proletária. Longe de ser – nas palavras de Novack – um dogma, um sonho ou uma idéia sentimental impossível de realizar, o internacionalismo é, para Novack e para Trotsky, o reconhecimento da realidade e das necessidades da civilização moderna. As bases histórico-materiais da economia mundial constituem os verdadeiros fundamentos do internacionalismo marxista no novo estágio da Ordem do Capital. Em sua análise do imperialismo, Trotsky – seguindo os passos de Lênin – destaca a contradição entre a existência de Estados-Nação e a crescente mundialização capitalista e sua manifestação nas contradições que se dão entre a lei do valor-trabalho no mercado mundial e a regulação estatal, por um lado, e o centro e a periferia do sistema capitalista, por outro.

    “A ênfase agora é colocada na necessidade de contrapor ao imperialismo a ação internacional organizada do proletariado. O internacionalismo dos séculos XX e XXI é revolucionário. Ele inclui um esforço sistemático para coordenar os movimentos de emancipação do proletariado e alterar a correlação de forças na arena nacional, mas também na arena mundial. Tal esforço de coordenação só pode ser eficaz se estiver materializado em uma organização internacional dos trabalhadores. Depois da falência da social-democracia e do stalinismo essa organização passou a ser a Quarta Internacional, para a qual Trotsky dedicou suas energias ao longo de seus últimos anos de vida“
    (Bianchi, 2002).


    “Uma Terra sem Amos: A Internacional!“
    Gostaríamos de encerrar este texto com o estribilho d`A Internacional. Esta canção foi composta por Pierre Chrétien Degeyter e Eugène Pottier em 1871, durante a Comuna de Paris, e desde então foi adotada pelo marxismo revolucionário como o hino-de-guerra internacional por excelência da revolução proletária. A palavra-de-ordem internacionalista, como podemos observar em sua versão original em francês, ao evocar a luta revolucionária das maiorias produtoras, dos “párias da Terra“ que “padecem de fome“, traz claramente a percepção de que o rompimento dos grilhões do Capital pelo proletariado mundial – em transição socialista a um futuro de liberdade comunista, enfim, de sociedades sem classes, sem Estado e sem a exploração do homem sobre o homem – constitui-se, via emancipação particular dos explorados e socialmente oprimidos, em afirmação universal ampliada do “gênero humano“, ou seja, da genericidade do ser social. O argumento que orienta o texto acima apresentado nunca encontrou melhor síntese, ético-política ou estética, tão multitudinária e internacional quanto o sujeito coletivo que a inspira. “Uni-vos!“, foi a convocatória de Marx e Engels aos proletários de todos os países. Degeyter, também membro da I Internacional, verteu-a em verso e melodia. A evocação dos gritos-de-guerra do passado tem “a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez“ (Marx, 1997).

    C`est la lutte finale / É a luta final
    Groupons-nous et demain / Unamo-nos e amanhã
    L`Internationale sera / A Internacional será
    Le genre humain! / O gênero humano
    [1]


    Bibliografia
    BIANCHI, Álvaro (1998) “O espectro do Manifesto: a propósito dos 150 anos de
    uma teoria da ação revolucionária“. Outubro, São Paulo, Nº 1.
    ______ . (2002) “Trotsky para o século XXI“. Opinião Socialista, São Paulo, Nº 138.
    BENOIT, Hector (1998) “Teoria (dialética) do partido ou a negação da negação leninista“. Outubro, Nº 2.
    BROSSAT, Alain (1977) El pensamiento político del joven Trotsky: en los orígenes de la revolución permanente. México: Siglo XXI.
    DANGEVILLE, Roger (1975) O partido de classe: Karl Marx e Friedrich Engels. Porto: Publicações Escorpião.
    ENGELS, Friedrich (s/d) “Contribuição à História da Liga dos Comunistas“, em Marx, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa-Ômega, vol. 3, s/d.
    ESTATUTOS DE LA INTERNACIONAL COMUNISTA (s/d) Los Cuatro Primeros Congresos de la Internacional Comunista. Buenos Aires: Editorial Pluma.
    GRAMSCI, Antonio (1975) Quaderni del Carcere [edizione critica dell`Istituto
    Gramsci. A cura di Valentino Gerratana]. Turim: Einaudi.
    HARDT, Michael e NEGRI, Antonio (2002) Imperio. Buenos Aires: Paidós.
    HOLLOWAY, John (2002) Cambiar el mundo sin tomar el poder: el significado de la revolución hoy. México/Buenos Aires: Universidad Autónoma de Puebla/Herramienta
    LÖWY, Michel (2002) A teoria da revolução no jovem Marx. Petrópolis: Ed. Vozes.
    MARX, Karl (1864) “Manifiesto Inaugural de la Asociación Internacional de los Trabajadores“. [Escrito entre 21 e 26 de outubro de 1864. Publicado em inglês no panfleto: “Addres and Provisional Rules of the Working Men`s International Association, established September 28, 1864, at a Public Meeting held at St. Martin`s Hall, Long Acre, London“, editado em Londres em novembro de 1864. Ao
    mesmo tempo publicou-se a tradução ao alemão feita pelo autor no jornal “Social-Demokrat“, núm. 2, 21 de dezembro de 1864]. Disponível em espanhol no Marxists Internet Archive: http://www.marxists.org, 2001.
    ______ . (1982) As Lutas de Classe em França de 1848 a 1850. Lisboa/Moscou: Avante!/Progresso.
    ______ . (1871) “Estatutos Generales de la Asociación Internacional de los Trabajadores“.
    [Escrito entre 21 e 26 de outubro de 1864. O texto definitivo foi publicado em Londres em forma de panfleto em 1871.]. Disponível em espanhol no Marxists Internet Archive: http://www.marxists.org,
    2000.
    ______ . (1997) O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
    SAGRA, Alicia (2005) A História das Internacionais Socialistas. São Paulo: Ed. Fund. José Luis e Rosa Sundermann.
    SEOANE, José e TADDEI, Emílio (2001) “De Seattle a Porto Alegre: pasado, presente y futuro del movimiento anti-mundialización neoliberal“, em SEOANE, José e TADDEI, Emilio (orgs.). Resistencias Mundiales: de Seattle a Porto Alegre. Buenos Aires: CLACSO, 2001.
    STATUS DE LA IV INTERNATIONALE. Aprovados na Conferência Fundacional de 1938.


    Notas
    [1] A versão cantada no Brasil, com letra de Nino Vasco, tem como refrão: “Bem Unidos Façamos / Nesta Luta Final / Uma Terra Sem Amos / A Internacional“ (*). (*) “A Internacional foi escrita em Paris, em junho de 1871 por Eugène Pottier, parisiense nascido em 1816 e falecido em 1887. Foi membro da I International, fundada por Karl Marx, e integrou o Comitê Central da Comuna de Paris. Após a queda da Comuna, foi preso e condenado à morte em maio de 1873, mas a sentença não foi executada até sua fuga para a América. A canção foi publicada em `Chants Révolutionnaires` em 1887, e dedicada a Gustave Lefrançais, um communard (membro da Commune). A canção `La Internationale` foi escrita para comemorar a Comuna de Paris. Entre março e maio de 1871, pela primeira vez os trabalhadores tomaram o poder do Estado em suas próprias mãos. Foi estabelecido na `Commune` a forma de governo mais democrática até então ocorrida. O ensaio de Karl Marx `A Guerra Civil na França` analisa os acontecimentos, sob a ótica dos trabalhadores. Aponta uma nova forma de Estado, embrionária, a ditadura do proletariado. A música elaborada pelo compositor francês Pierre Degeyter é uma marcha de exaltação, de rara felicidade. A melodia tomou as organizações de esquerda em todo o mundo, tornou-se o hino dos trabalhadores em luta. Poetas, escritores ou simples trabalhadores anônimos escreveram e verteram os versos d`A Internacional a todos os idiomas da Terra. E espalharam o exemplo da Comuna aos seus povos. Era possível ouvir assobios de sua melodia nas madrugadas da Rússia revolucionária em 1917, nos campos da Espanha em 1937, nas florestas cambojanas nos anos 60. Em Cuba 59, Chile 70, Angola 74, Vietnã 75, a melodia d`A Internacional será sempre um símbolo da transformação social“ (Nelson Azevedo, “História da Canção“, Revista Práxis, Projeto Joaquim de Oliveira. “Homenagem a Pierre Chrétien Degeyter“. Disponível em: http://www.rvpraxis.hpg.ig.com.br.