Nessa segunda-feira a internet brasileira conheceu a bandeira antifascista. A catarse visual e a inundação das redes sociais com toda sorte de variações do símbolo acontecem um dia depois de setores antifascistas das maiores torcidas organizadas de futebol do país saírem às ruas para se enfrentar – fisicamente – com apoiadores do governo Bolsonaro e saudosistas da ditadura militar. Os atos aconteceram nas principais capitais e, no caso de São Paulo, houve também confronto direto com a Polícia Militar, transformando a Avenida Paulista mais uma vez em um palco de guerra.

LEIA TAMBÉM: O que é fascismo e como combatê-lo

No dia seguinte foi o que vimos. Uma infinidade de setores organizados se declarando e reivindicando o antifascismo, mais como uma declaração de oposição ao “governo fascista de Jair Bolsonaro” do que por um entendimento mais sério do que é o fascismo historicamente e o movimento antifascista. Ou seja, mais porque um amplo setor da sociedade ansiava uma resposta ao bolsonarismo do que por acordo político com a proposta. E como tudo que vai parar na internet, a enxurrada de bandeiras virou meme e o remix visual tomou conta. Dos “Metroviários antifascistas” ao “3 latões por 10 antifascista”, por seriedade ou por deboche, todo mundo reivindicou uma pontinha.

Até a cantora Pabllo Vittar compartilhou em seu Twitter algumas variações da bandeira: LGBTQ+, nordestinos, queers e trabalhadores antifascistas. Não demorou para que surgissem setores mais, digamos, conservadores para reivindicar o purismo do símbolo. Tantas variações, argumentam eles, seria uma desvirtuação do símbolo e da história do movimento antifa. A representação “correta” deveria ser a bandeira preta do anarquismo à frente e a vermelha do comunismo por trás, obrigatoriamente tremulando para a esquerda, mostrando um claro alinhamento ideológico e a unidade de ação desses setores.

Essa conversa de “desvirtuação” do símbolo é uma besteira por si só. Primeiro porque símbolos são reapropriados e ressignificados quase que inevitavelmente. Símbolos também são históricos, no sentido de que mudam e se adaptam conforme o passar do tempo. Segundo, porque a suposta aliança entre anarquistas e comunistas/socialistas na simbologia antifa é um processo recente, do final do século XX.

Reunião da Ação Antifascista organizada pelo Partido Comunista Alemão. Ao centro, um estandarte com o símbolo antifa com duas bandeiras.

Quase 90 anos da história Antifa

A história completa do movimento antifascista nos remete, obviamente, aos anos de 1930 quando o nazi-fascismo teve sua maior expressão política no mundo, especialmente no caso da Alemanha de Hitler. A resistência aos nazistas já existia de forma dispersa durante a década de 1920 no país. Mas é só em 1932 que o stalinista Partido Comunista Alemão, o KPD, cria a Ação Antifascista. O chamado para a criação da Antifaschistische Aktion (em alemão, que acabou virando apenas “Antifa”) foi feito no jornal A Bandeira Vermelha (Die Rote Fahne).

O logo do movimento, na época, era composto por duas bandeiras vermelhas tremulando para a direita. O símbolo foi desenvolvido por Max Keilson e Max Gebhard, da Associação de Artistas Visuais Revolucionários. A Associação, aliás, foi se tornando cada vez mais dogmática e acabou por defender a arte proletária e o realismo socialista. Mas isso é conversa para outro texto. O símbolo da Antifa se popularizou e foi amplamente usado pelo KPD em seus materiais, de selos a cartazes eleitorais do partido.

Chamado feito nas páginas do Rote Fahne para a formação da Ação Antifascista. A data é de 10 de julho de 1932.
Chamado feito nas páginas do Rote Fahne para a formação da Ação Antifascista. A data é de 10 de julho de 1932.

A iniciativa do KPD e sua “colateral” antifascista foram uma tentativa tardia e um esboço de unidade ação conta os nazistas alemães. O próprio símbolo com duas bandeiras vermelhas passou a ser visto como a unidade entre Socialistas e Comunistas, o que não ocorreu. A iniciativa do KPD se deu muito tardiamente já que aconteceu apenas há alguns meses de Hitler ser nomeado chanceler em janeiro de 1933 por Paul von Hindenbrug, que aceitou a indicação de Franz von Papen, o cristão conservador que antecedeu Hitler na chancelaria e que o indicou para o presidente Hindenburg.

Broche antifascista da Ação Antifa.

A briga entre os socialistas e comunistas alemães

Além de ter sido chamada tardiamente, os comunistas do KDP e os socialistas do Partido Social-democrata da Alemanha (SPD) vinham de anos de desentendimento e disputa.

Por um lado, os socialistas do SPD já tinham seu movimento antifascista desde 1931. A chamada Frente de Ferro era formada pelo SPD, a central sindical ADGB que abarcava inúmeros sindicatos dirigidos pelo próprio SPD e pela Reichsbanner Schwarz-Rot-Gold (tradução livre: “Bandeira preta, vermelha e dourada do Reich”), uma organização parlamentar formada pelo SPD, pelos liberais de centro e democratas. O problema da Frente de Ferro, como diz Trotsky, é que a aliança com esses setores burgueses e liberais impedia os social-democratas de travar a luta necessária contra o fascismo. “Se os cadáveres não são bons para a luta, são bastante bons para impedir os vivos de lutarem”, dizia Trotsky sobre a Frente de Ferro (em A luta contra o fascismo, Ed. Sundermann).

A aliança com esses setores burgueses e liberais imprimia a essa frente um explícito caráter anti-comunista. O símbolo da Frente, aliás, acabou virando mais um símbolo antifascista. As três setas apontadas para a diagonal inferior esquerda, conhecidas como “Círculo Antifascista”, foi criada em 1931 por Serguei Tchakhotine. As setas representariam os três componentes da Frente de Ferro: o SPD, a ADGB e a Reichsbanner. Mas é conhecido também o uso das setas em um cartaz eleitoral de 1932 indicando os três inimigos a serem combatidos: Von Papen (católico conservador), Hitler (Partido Nazista) e – é isso mesmo – Thalmann, candidato do Partido Comunista. As três setas não podem ser, portanto, reivindicadas como símbolo da unidade antifa.

Uma curiosidade: Tchakhotine, criador do símbolo, é o mesmo precursor da “psicologia de massas”, autor de A mistificação das massas pela propaganda política, um livro repleto de desprezo e preconceito pelas organizações de massa. Mas isso também é assunto para outro texto.

As três setas do Círuclo Antifascista, símbolo usado pela Frente de Ferro, é o mesmo usado pelos antifas de hoje.
Estudantes antifas em um campus em Massachussets, EUA.

De volta à polêmica entre socialistas e comunistas, é importante lembrar a trajetória do KPD, de orientação stalinista, sob as chamadas teses do Terceiro Período. Essa foram teses adotadas pelo Comintern em seu 6º Congresso Mundial em 1928. Em resumo, as teses determinavam uma guinada ultraesquerdista e totalmente sectária em relação aos setores reformistas. Essas organizações passaram a ser tratadas como obstáculos para a revolução mundial e deveriam ser combatidas e destruídas. Fascismo e reformismo seriam apenas dois lados da mesma moeda capitalista. É dai que vem a ideia do “social-fascismo”, que colocava a Social-democracia e os nazistas no mesmo patamar.

Sob essa linha política, os chamados à unidade e à frente única não passavam de bravatas sectárias e ultimatismos burocráticos. O oportunismo do SPD e o ultraesquerdismo sectário do KPD criaram uma situação muito cômoda para os nazistas.

O fim dessa briga nós já conhecemos. A ascensão de Hitler e a consolidação do projeto nazista transforma em pó essas divergências. Não à toa, em 1934, o Comintern abandona a política ultraesquerdista do Terceiro Período e passa a defender a tese oportunista da Frente Popular. Basicamente, trata-se da defesa da aliança como setores “burgueses progressistas” contra os reacionários. Essa tese dura mais ou menos até os dias de hoje e é o que explica, no Brasil, por exemplo, o PCdoB ter apoiado os governos do PT e também o que temos visto com o governo Flávio Dino no Maranhão

Cartaz eleitoral do KPD: “Contra a fome e o facismo”. No topo da bandeira, o símbolo antifascista.

O antifascismo no pós-guerra e o anarquismo

O antifascismo sobreviveu à Alemanha nazista mas não sobreviveu à Guerra Fria. Do lado oriental passou a valer o regime de partido único do stalinismo. Do lado ocidental, instalou-se a paranoia anticomunista. Os sociais-democratas, totalmente adaptados ao regime democrático burguês ocuparam-se por reconstruir suas bases eleitorais e seus aparatos democráticos. Com caráter mais independente e sob a pressão da Guerra Fria, o movimento antifascista passou a assumir uma política cada vez mais reativa, restringindo sua ação a perseguir e denunciar antigos oficiais nazistas que continuavam a ser aproveitados nos aparatos estatais sob consentimento das potências aliadas.

Sem programa estratégico e totalmente sufocado pelo contexto geopolítico mundial, o movimento antifascista foi minguando em todo o mundo. Marginalizado e sem programa estratégico, incapaz de disputar qualquer influência sob a classe operária, o movimento Antifa acabou por se tornar uma espécie de cena da contracultura. Marcado por uma indefinição e um projeto político difuso, acabou servindo mais para reunir jovens radicalizados e descentralizados do que para a construção de um projeto político propriamente dito.

LEIA TAMBÉM: A encarnação verde do fascismo

Essa indefinição e sua localização na contracultura, junto com o ressurgimento do neoliberalismo a partir dos anos 1980, é o que explica, hoje, a proximidade dos antifas com o que podemos chamar de neoanarquismo. E usamos aqui o prefixo “neo” porque os antigos anarquistas e os anarquistas sérios que ainda restam hoje, com todas as polêmicas, tem um projeto político e estratégico. Ao contrário, os antifas de hoje parecem mais ligados a um estilo de vida do que a um projeto de sociedade.

É nessa esteira que os antigos símbolos antifascistas são resgatados hoje. A partir de uma definição genérica e difusa do que seja “fascismo” e uma postura radicalmente contra isso. É isso que explica, por exemplo, os antifas de hoje usarem, sem menor culpa ou sensação de contradição, símbolos tão opostos como as três setas do Círculo Antifascista da Frente de Ferro e as bandeiras duplas da Ação Antifascista alemã. A roupagem preta de toda essa simbologia é um processo mais recente do que parece. Por isso não é muito preciso reivindicar algum purismo desses símbolos, como dificilmente é para qualquer símbolo que só existem na história, nunca fora dela.