A guerra global tornou-se um negócio muito mais amplo do que se poderia imaginar nos anos 60, a partir das denúncias do “complexo industrial-militar” na época da Guerra do Vietnã. A guerra do terceiro milênio é parte dos planos de manutenção e ampliação do poder e da dominação dos Estados Unidos, cuja expressão mais marcante é o “Projeto para um Novo Século Americano”, formulado em 1997 por ideólogos como William Kristol, e cuja expressão militar foi a “Doutrina Rumsfeld”.

Guerra global high-tech, “visão de Deus” com uso de satélites, “armas inteligentes” como mísseis com nomes apropriados como “hellfire”, profissionalização das forças armadas e capacidade de intervenção simultânea em mais de dois teatros de guerra são apenas os aspectos mais espetaculares. Saudada como uma “revolução militar”, seu significado mais profundo é o da terceirização e privatização militar.

O livro mais atualizado sobre o tema é “Blackwater”, de Jeremy Scahill, que denuncia que, desde o final da década de 90, surgiram estruturas privadas paralelas ao aparato de segurança dos Estados Unidos.

Na atual guerra do Iraque, o número de servidores particulares do Departamento de Defesa, cerca de 180 mil (de 630 empresas), é maior que o de soldados, 160 mil. Desses “contratados” particulares, dezenas de milhares são forças armadas privadas, ou seja, mercenários.

A regra do início da época moderna, quando os Estados absolutistas usavam extensivamente forças recrutadas por capitães-mercenários, os condottieri, foi substituída com as grandes revoluções democráticas pelo exército popular, dos cidadãos em armas e, depois, pelo exército nacional profissional. Hoje, ocorre uma reviravolta sem precedentes na história militar contemporânea com o uso em massa de mercenários, que já alcançam cerca de 30% do exército da coalizão liderada pelos EUA no Iraque (na primeira guerra do Iraque, em 1991, eram apenas 10%).

Lucros de guerra
Os exércitos ocultos estão faturando em torno de US$ 100 bilhões por ano. Esta corrida do ouro foi inaugurada em 1991, na época da Guerra do Golfo, quando o atual vice-presidente Dick Cheney ocupava a Secretaria da Defesa. Em 1993, ele encomendou um estudo sobre a privatização da burocracia militar para a empresa Brown and Root, que cobrou US$ 3,9 milhões por um relatório. O estudo favorecia a própria empresa, que tornou-se uma subsidiária da Halliburton, desde então, a maior prestadora privada de serviços ao Departamento de Defesa. O próprio Cheney integra a sua diretoria executiva desde 1995.

As vultuosas verbas de reconstrução do Iraque necessitam de ao menos 25% a mais em qualquer contrato, para gastos com segurança privada. A Flúor, a maior empresa do ramo da construção nos EUA, chega a contratar 700 seguranças para proteger 350 trabalhadores.

Um dos negócios mais rentáveis no Iraque não é o petróleo, mas a segurança privada. O seu estatuto jurídico é de total impunidade, o que permite aos mercenários comportarem-se como verdadeiros “Rambos”. Estão acostumados a atrocidades, pois são ex-policiais e torturadores de algumas das piores ditaduras, como a da África do Sul do apartheid ou a do Chile de Pinochet, além de soldados que atuaram no Vietnã, na América Central ou na Irlanda do Norte.

Os maiores grupos militares, como a Lockheed Martin, a Northrop Grumman e a Raytheon, passaram a ter a seu lado protagonistas que prestam serviços de logística como alojamento, transporte e alimentação, assim como de escolta, combate e inteligência. Dessas novas empresas, a de trajetória mais meteórica é a Blackwater.

Fundada em 1996 como um pavilhão de treinamento de tiro próximo a um pântano na Carolina do Norte (daí vem o nome, “água escura”), passou de US$ 700 mil em contratos federais em 2001 para US$ 750 milhões em 2007. Essa expansão começou em 2002, no Afeganistão, quando forneceu vinte guardas para a segurança da CIA por US$ 5,4 milhões.

Atualmente, treina dezenas de milhares de soldados e policiais de diversos países, garante a segurança de instalações nucleares no Japão, constrói e protege bases dos EUA no Azerbaijão, treina forças especiais na Jordânia e oferece serviços de intervenção no velho estilo golpista e escolta a empresários.

Seu proprietário, Erik Prince, ex-militar das forças especiais e de uma tradicional família da extrema-direita, se converteu ao catolicismo e aproximou-se dos setores mais reacionários da Igreja Católica, ligados, entre outras estruturas, à Ordem de Malta, ou seja, nostálgicos dos ideais de cruzada e reconquista das terras santas. Erik oferece o maior exército privado do planeta (veja quadro).

As guerras contra o “terror” juntaram o útil ao agradável para a Blackwater e outros grupos, que passaram a desenvolver não só as atividades de segurança como a financiar o proselitismo missionário. Denominados de “teocons”, reúnem gente como o reverendo Tim La Haye (autor do Left Behind, best-seller sobre a salvação dos escolhidos), Charles Colson (assessor de Nixon preso no Watergate, construiu na prisão um império com dezenas de milhares de prisioneiros em grupos de oração) e outros que, desde 1994, passaram a estabelecer uma agenda neo-conservadora, destinada não só a assegurar aos Estados Unidos a dominação global como a desencadear uma ofensiva ideológica.

A ambição da Blackwater é estender ainda mais a privatização da “segurança internacional”, oferecendo-se como alternativa para as “tropas de paz” da ONU e mesmo para substituir forças públicas na segurança interna dos EUA, especialmente em catástrofes. Na crise com a passagem do furacão Katrina, em 2005, patrulharam as ruas e lucraram US$ 70 milhões.

A última ambição do neoliberalismo fundamentalista é a privatização da maior indústria em expansão, a da guerra. Não apenas nos fornecedores, mas, pela primeira vez, na sua execução direta. Militares do capital, não mais sob uniformes e bandeiras nacionais, mas de empresas contratadas por governos para o trabalho sujo.
O livro de Jeremy Scahill é leitura obrigatória para os que desejam compreender a natureza da ordem internacional contemporânea e o papel crescente desses “profissionais da estabilização global”, que emergem como o setor mais hábil em lucrar com a guerra e a catástrofe. Uma verdadeira capitalização da destruição, ou capitalismo da catástrofe, que ameaça ser a face mais cínica da perspectiva de crescentes distúrbios planetários.
Post author Henrique S. Carneiro, professor do Departamento de História/FFLCH/USP
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