Fonte: www.litci.org/pt

Ante o fiasco da última reunião do G-20 para evitar uma “guerra comercial” ou “guerra de divisas” entre as principais potências imperialistas, na qual também estará envolvida a China, os analistas começaram a definir a atual crise econômica internacional como uma “crise mutante”.

Conquanto se trate mais de uma frase de efeito jornalístico que de uma definição profunda, este conceito é relativamente verdadeiro: desde o seu início, em agosto de 2007, a crise foi “mutando” a sua forma de manifestar-se, seja pela sua própria evolução como pelas ações dos governos para enfrentá-la e as consequências destas ações.

A primeira fase da crise
A primeira manifestação visível da crise foi o estouro da grande bolha especulativa baseada no mercado imobiliário dos EUA e de outros países imperialistas. Em um ano, a queda do Lehman Brothers mostrou a fragilidade do sistema bancário-financeiro internacional, que esteve à beira da bancarrota global.

Nesse momento, a crise expressou-se com muita força no conjunto da economia e teve dois trimestres (o último de 2008 e o primeiro de 2009) com as piores quedas em décadas do PIB de todos os países imperialistas (um acumulado de mais de 112%), equivalentes ao primeiro impacto da crise de 1929. A queda na produção foi ainda maior e oscilou, segundo os países, entre 15 e 20%.

A segunda fase
Ali começaram a atuar os megapacotes de ajuda dos governos imperialistas e outros, como Brasil, China e Rússia, aos bancos e mercados financeiros, num total de 24 trilhões de dólares (40% do PIB anual mundial). Assim, evitou-se a quebra do sistema financeiro mundial e também se cortou a dinâmica de “plano inclinado” em que a crise arrastava o conjunto da economia.

Abriu-se, então, um período de frágil recuperação cujo pico se deu no primeiro trimestre de 2009, especialmente nos EUA, China, Alemanha e Japão. Podemos defini-lo como de “frágil recuperação”, porque se baseou precisamente nestes pacotes e não em um aumento sustentado do investimento burguês.

A terceira fase
No final de 2009, começa o que denominamos uma terceira fase da crise, que se manifestou por meio de dois processos. De um lado, estourou a crise fiscal (de rendimentos e pagamentos do Estado) de vários países europeus e da Eurozona, como Grécia e Irlanda, ante a impossibilidade de pagar suas dívidas. Houve também uma crise do euro no seu conjunto e a sua própria subsistência como “moeda européia” ficou comprometida.

Nesse momento, a crise adquiriu uma clara dimensão política com a resistência aos planos de ajuste dos seus governos por parte dos trabalhadores e jovens da Grécia, França, Espanha, Reino Unido, Itália e Portugal. A definição de uma feição central da dinâmica da crise econômica passou a jogar no terreno das lutas de classes.

Por outro lado, a frágil recuperação nos EUA mostrou as suas dificuldades de se sustentar e começou a se transformar, segundo palavras do economista Nouriel Roubini, em um “crescimento anêmico”, incapaz sequer de evitar o crescimento do desemprego no país.

Inicia-se a guerra comercial
Foi precisamente a insatisfação com a situação, especialmente o aumento do desemprego, que já se aproxima de 10%, que provocou a derrota de Obama nas eleições legislativas de “médio termo”, nas quais o seu governo perdeu a maioria parlamentar.

Debilitado e obrigado a cogovernar com um parlamento opositor a partir do próximo ano, o governo de Obama apelou ao Federal Reserve (FED, banco central dos EUA) para aplicar uma política de emissão de 600 bilhões de dólares nos próximos 8 meses, para comprar Bônus do Tesouro do seu próprio país em uma tentativa de sair do atoleiro.

Ao lançar uma nova catarata de dólares no mercado internacional, esta medida tem o efeito de desvalorizar a cotação internacional do dólar frente às outras moedas. Assinalemos que bastou o anúncio da medida para que o dólar se desvalorizasse em 10% nos mercados internacionais. E a sua cotação seguirá caindo à medida que o FED for emitindo esses dólares.

Profundo impacto mundial
Quando um país desvaloriza a sua moeda, isso tem um efeito imediato sobre o seu comércio internacional. Por um lado, “rebaixa” os seus custos internos e barateia o preço dos seus produtos exportáveis; por outro, encarece o preço nacional dos produtos importados. Em outras palavras, tende a aumentar as suas exportações e a diminuir as suas importações. Por isso, ao explicar a medida, Obama declarou que o seu objetivo é “duplicar as exportações nos próximos anos”.

Tratando-se de Estados Unidos, a principal economia do planeta, uma mudança na dinâmica do seu comércio exterior terá um impacto muito profundo em toda a economia internacional. Nos últimos 20 anos, os EUA transformaram-se no principal importador do mundo, especialmente de produtos industriais de consumo. Por exemplo, em 2008, importou um valor total de mais de 2 trilhões de dólares (uma cifra maior que o PIB do Brasil e Argentina juntos) e acumulou um déficit na sua balança comercial (saldo negativo entre exportações e importações) de mais de 600 bilhões de dólares. Outras grandes economias do mundo, como Alemanha, Japão, China e Índia, dependem diretamente dessas importações.

Em outras palavras, ao procurar aumentar as suas exportações e diminuir as suas importações, o imperialismo estadunidense lançou uma ofensiva para resolver a sua crise na costa dos outros imperialismos (como os europeus e japonês), dos países semicoloniais e também dos seus próprios trabalhadores.

Ataques à classe trabalhadora estadunidense
A “ofensiva comercial” lançada por Obama vem acompanhada pela continuação de fortes ataques à classe operária estadunidense e ao seu nível de vida para melhorar a competitividade nacional.

Este ataque vem, em realidade, pelo menos desde a década de 80, com o governo de Reagan. Mas, com a crise, deu um salto. Expressa-se em um desemprego de 10%, na redução das plantas das empresas e na queda de salários e benefícios. Muitas empresas, como a GM, exigiram de seus trabalhadores que aceitem uma redução salarial à metade. Todo isso se manifestou em um aumento da pobreza que afeta 14% dos habitantes dos EUA, cifras inéditas há décadas. Ao mesmo tempo, a desvalorização do dólar pode também gerar um processo inflacionário interno que deteriorará ainda mais esse nível de vida.

Também se acirra a política já em curso de cortes orçamentários em serviços como saúde e educação públicas, e se deterioram outros, como segurança, bombeiros e até a coleta de lixo. Segundo uma informação recente, a redução orçamentária sugerida pela comissão bipartidária formada por Obama é tão grande que poderia conduzir a “uma explosão social similar às que se viram recentemente em Paris e Londres” (Clarín, 11/11/2010)

Maior fragilidade do sistema monetário mundial
A política monetária implementada por Obama agrega ainda mais fragilidade ao atual sistema monetário mundial, de moedas de cotação “flutuante”. Vejamos alguns elementos históricos para entendê-lo.

Uma vez decidido o curso da Segunda Guerra Mundial, em 1943, os Estados Unidos aproveitaram a hegemonia econômico-político-militar conseguida para impor, em uma reunião celebrada em Bretton Woods, a proposta do economista britânico John Maynard Keynes de criar uma “autoridade” (o Fundo Monetário Internacional) e um sistema monetário mundial, baseado em uma determinada paridade de conversão entre o ouro e o dólar, que passou a ser a “moeda padrão” do sistema, respaldada pelo ouro armazenado pelo FED em Fort Knox.

Os EUA não só possuíam a “moeda mundial”, como eram também os donos da “máquina de imprimir dólares”. Como não se tinha estabelecido nenhum mecanismo de auditoria para verificar se a quantidade de dólares circulantes no mundo coincidia com o ouro armazenado em Fort Knox, o seu governo e a sua burguesia dispunham de capital a seu bel-prazer pelo simples mecanismo de imprimir bilhetes.

Esta “sobreimpressão” de dólares foi uma das razões que levaram à queda do sistema monetário de Bretton Woods, por decisão do governo de Richard Nixon, em 1971. Este definiu unilateralmente que o dólar já não seria conversível em ouro. Isto é, os possuidores de dólares no mundo não podiam reclamar aos EUA que respaldasse com ouro esses bilhetes.

Conquanto depois da ruptura dos acordos de Bretton Woods o dólar seguiu sendo, de fato, a moeda padrão do mercado mundial, agora o fazia sem a “ordem monetária formal”, nem a suposta segurança que garantiam estes acordos.

Uma das consequências desta ruptura foi que o sistema monetário internacional se tornou bem mais instável, sujeito às flutuações permanentes das cotações das moedas, especialmente do dólar e das moedas “duras” dos países imperialistas. E também ficou bem mais exposto às intervenções especulativas no mercado de moedas.

É neste enquadramento que Obama inicia a “guerra de divisas” que agrega maior fragilidade a um sistema já frágil porque situado no meio de uma crise econômica internacional e, ademais, afeta e prejudica as outras moedas de importância no mundo, como o euro, o iene ou o yuan.

A impossibilidade de outro Bretton Woods
Diante da perspectiva de guerra cambial e as suas graves consequências, vários setores burgueses começaram a falar da necessidade de um “novo Bretton Woods”. Em um artigo publicado pelo Financial Times, Robert Zoellick, presidente do Banco Mundial, propôs criar um novo sistema monetário mundial baseado em uma cesta de moedas (o dólar, o euro, o iene, a libra e o yuan chinês) que tome como referência o padrão ouro para as paridades entre essas moedas.

No entanto, esta proposta, aparentemente “racional” frente à atual “anarquia” monetária internacional, é hoje absolutamente inaplicável. O acordo de Bretton Woods só foi possível porque foi impulsionado pela burguesia imperialista estadunidense, que aproveitou a sua incontestável hegemonia no mundo para pôr esse sistema a serviço dos seus interesses.

Hoje, essa mesma burguesia está na contramão de reconstruir um acordo desse tipo porque assim pode aproveitar as brechas de um sistema monetário mais “livre”. E, sem o seu acordo e impulso, outro Bretton Woods é impossível. E nenhum país ou grupo de países está em condições de deslocar o dólar como moeda padrão. Em última instância, é uma expressão de que, no enquadramento de uma decadência geral do sistema capitalista imperialista, a hegemonia estadunidense segue vigente.

Inclusive resulta extremamente difícil criar “moedas regionais”, como o mostra a crise do euro ou a impossibilidade da China de levar adiante a sua bravata de criar uma “moeda asiática”.

As dificuldades da EU
A “guerra comercial” encontra mau parada às burguesias imperialistas européias, especialmente a dos países integrantes da “eurozona”. Estas burguesias já tinham graves problemas: um crescimento econômico mais anêmico que o dos EUA; a impossibilidade de ter uma política monetária flexível pela contradição de usar uma moeda comum (o euro) sem unificação dos países; uma crise fiscal em vários países e a necessidade de efetuar duríssimos ataques aos trabalhadores para sair dessa crise fiscal, com uma forte resposta de parte destes. Uma situação que, de conjunto, põe em risco a própria existência do euro, um mecanismo de “defesa de espaços” frente ao imperialismo estadunidense, resultado de uma construção de mais de 50 anos.

A anterior desvalorização do euro frente ao dólar abria uma possibilidade de exportar mais e começar a sair do pântano. Foi o caso da Alemanha, a economia mais forte do continente: no início deste ano, teve uma melhora nas suas exportações industriais, especialmente para os EUA, que permitiu um verdadeiro crescimento da economia do país. Agora, com a desvalorização do dólar e o aumento da cotação do euro, essa porta começou a se fechar e as suas consequências já se sentem: em setembro passado, a produção industrial alemã caiu 0,8%.

A desvalorização do dólar significa também que as burguesias europeias deverão redobrar os seus ataques contra os seus trabalhadores, pela necessidade muito maior de rebaixar os salários e endurecer ainda mais as condições laborais para reduzir custos e manter a “competitividade” internacional frente aos Estados Unidos.

Mas estes ataques dar-se-ão em um momento em que os trabalhadores europeus já estão lutando, em vários países, contra os planos de ajuste dos seus governos e abrem a possibilidade de que essa luta se incremente ainda mais.

As medidas do FED também afetarão o Japão, cuja economia, depois de anos de estancamento e queda, teve uma débil recuperação no final de 2009 e início de 2010, baseada nas exportações aos EUA. Cabe assinalar que o governo japonês foi o primeiro, antes dos Estados Unidos, a lançar medidas protecionistas por meio da desvalorização do iene.

A pressão sobre a China
Uma feição importante da política dos Estados Unidos é a pressão sobre a China para que rompa o sistema de paridade fixa entre o dólar e o yuan, ferreamente controlado pelo governo chinês, e passe a um sistema de cotação flutuante do yuan, sujeito aos vaivens do mercado. Assinalemos que o principal comprador dos produtos industriais chineses são os EUA (30% das suas exportações).

Atualmente, o sistema é de “paridade fixa”: se o dólar se desvaloriza, o governo chinês desvaloriza o yuan na mesma proporção, pelo que o efeito monetário no comércio entre ambos os países é nulo. Pelo contrário, se o yuan passasse a ter uma cotação livre, o grande agregado de divisas internacionais realizado pela China, pelo saldo favorável da sua balança comercial, levaria a uma subida do preço do yuan frente ao dólar.

Isto encareceria o preço internacional dos seus produtos industriais, algo que, ademais, somar-se-ia à alta de custos internos como resultado dos aumentos salariais que os trabalhadores de importantes fábricas do país estão conseguindo com suas greves. De conjunto, o processo prejudicaria suas exportações, que já vêm sofrendo uma dinâmica negativa como efeito da crise econômica internacional. Digamos que, atualmente, a maioria dos ramos centrais da economia chinesa está com capacidade ociosa, isto é, em uma situação de superprodução. Por isso, até agora, o governo chinês se nega a romper a paridade cambial fixa.

Entrar no mercado financeiro chinês
Alguns analistas econômicos internacionais assinalaram que, apesar de todo o peso que terá uma “guerra comercial”, o verdadeiro objetivo de Obama ao pressionar a desvalorização do yuan é conseguir a abertura e o livre acesso ao mercado financeiro chinês. Trata-se de um mercado financeiro muito importante, até agora ferreamente controlado pelo governo chinês, por meio de vários bancos estatais, que, anualmente, se vê aumentado pelos grandes saldos que obtém o país no comércio internacional.

Esta análise seria coerente com o atual caráter do sistema capitalista imperialista mundial e da burguesia imperialista, cada vez mais voltada ao setor financeiro e à especulação. Ingressar no mercado financeiro chinês, do qual até agora está fora, pelo menos diretamente, permitiria à burguesia imperialista estadunidense aceder a um rico “banquete” de capitais que reforcem o seu próprio circuito.

Até agora, o governo chinês vem resistindo a estas pressões, aproveitando as importantes reservas de divisas internacionais que acumulou nestes anos e que lhe permitiram manter um crescimento da sua economia graças aos pacotes governamentais e ao crédito estatal.

No entanto, é quase impossível que esta situação se mantenha ad infinitum. Dois fatores a jogam na contramão. Por um lado, a crise econômica internacional já diminuiu as suas exportações e a própria política monetária do governo de Obama pode acentuar esta tendência, de maneira que as suas reservas tenderão a diminuir. Por outro lado, a própria dinâmica interna do mercado financeiro chinês, com numerosas “bolhas especulativas” passíveis de estourar e um nível a cada vez mais alto de inadimplência e morosidade.

Em outras palavras, o mais provável é que, cedo ou tarde, o governo chinês termine cedendo às pressões do imperialismo e só trate, em realidade, de discutir os tempos e ritmos dessa mudança.

Possíveis perspectivas
Nas suas diferentes manifestações, a crise econômica internacional aberta em 2007 continua. Sem resolver, ou resolvendo muito parcialmente, os problemas das fases anteriores, cada fase agrega novos problemas para o sistema capitalista imperialista.