Em 22 de janeiro, Evo Morales, um ex-líder cocaleiro, assumiu a presidência na Bolívia. Após uma badalação na mídia internacional sobre o primeiro presidente indígena do país, lideranças de esquerda e de direita dirigem sua atenção para um dos mais pobres países da América Latina.

O pano de fundo dessas eleições é uma mudança na situação do país que culminou com a derrubada dos dois últimos presidentes (2003 e 2005). Tanto é assim que a bandeira política que o fez ganhar maioria simples nas urnas foi a mesma que fez milhares de trabalhadores marcharem sobre a capital, La Paz, depondo o governo de Carlos Mesa: a nacionalização dos hidrocarbonetos (gás e petróleo), a principal riqueza do país, exportada para toda a região do continente, incluindo o Brasil.

Contudo, é preciso que levantemos alguns questionamentos para não fazer o que boa parte da esquerda brasileira e latino-americana fez com Lula ou Chávez, ou seja, assinar o cheque em branco para presidentes com passados ou retóricas esquerdistas.

Evo Morales é a expressão de uma vitória das massas sobre a burguesia nacional e imperial. Porém, essa vitória carrega algumas contradições, uma vez que se dá por dentro dos marcos do Estado capitalista e do regime democrático da classe dominante. Visto desse modo, é preciso perguntar qual é o seu alcance e quais os limites que ela inevitavelmente encontrará se se mantiver nos marcos do atual regime político.

Mais especificamente, o primeiro e principal problema que o atual presidente terá que responder é o que fazer com as multinacionais do petróleo que estão hoje no país, incluindo a Petrobras. O eixo de sua vitória agora pode se tornar seu calvário.

De um lado, massas de trabalhadores, camponeses e indígenas, que já derrubaram dois presidentes em função dos hidrocarbonetos, aguardam impacientes e organizadas a estatização sem indenização. De outro, Morales esteve no Brasil e Europa para acalmar os mercados.

Contudo, na história da América Latina, encontramos muitos casos de presidentes que realizaram de fato a nacionalização de setores importantes da economia. Diante de todos os problemas e possibilidades postos ao proletariado boliviano frente à promessa de nacionalização dos hidrocarbonetos feita por Morales, que lições podemos extrair das experiências históricas vividas em nosso continente?

Os “modelos” de nacionalização na América Latina
Na história da América Latina, houve dois tipos principais de governos realizaram nacionalizações. No primeiro deles, estão os chamados governos nacionalistas burgueses. Entre eles Cárdenas (México), Perón (Argentina) e Getúlio Vargas (Brasil), com características semelhantes.

O momento em que eles exerceram o poder foi o período das décadas de 30, 40 e 50, atravessado pela Segunda Guerra Mundial. Esse contexto é importante para compreendermos qual foi espaço de ação desses governos. Uma vez que os principais países imperialistas estavam em guerra e suas economias voltadas para a produção bélica, abriu-se uma margem econômica que permitiu avanços na indústria de base destas nações. Daí denominarmos seus modelos econômicos de desenvolvimentistas. Esse contexto tornou possível a nacionalização das linhas ferroviárias na Argentina e México, do petróleo no México e no Brasil [1] , e da estatização de setores estratégicos da economia desses países.

Contudo, o traço mais marcante desses governos foi a relação que eles estabeleceram com os trabalhadores. Seguindo a lógica de manter os amigos perto e os inimigos mais perto ainda, incorporam os sindicatos e as centrais sindicais ao aparelho do Estado. Em geral, a cada concessão era feito um ataque às liberdades dos trabalhadores.

Como um forte proletariado industrial começou a surgir, era preciso conter a ameaça que estes trabalhadores poderiam representar. Os governos se utilizaram de medidas assistencialistas por um lado, e repressivas por outro. A essência do populismo era retirar com a mão direita o que era dado com a esquerda em nome de fraseologias até hoje bastante comuns, como o “bem maior da nação”, o “bem comum do todos”, enfim, a retórica nacionalista.

O fato é que o espaço político e econômico de atuação de tais governos foi encontrado nas brechas abertas pela Segunda Guerra Mundial, que de certa forma enfraqueceu as nações imperialistas. Assim, foi possível dar um impulso na industrialização desses países.

O outro exemplo de governos que realizaram nacionalizações foram as Frentes Populares. No nosso continente, o mais expressivo de todos foi o de Salvador Allende no Chile.

O governo de Allende ganhou repercussão mundial por ter como objetivo construir o socialismo pela via democrática. Conseguindo a unidade de amplos setores dos trabalhadores e da classe média, o governo da Unidade Popular chegou ao poder com as massas mobilizadas em torno das transformações sociais. As medidas favoráveis aos trabalhadores aumentaram a tensão entre as principais classes sociais no Chile. Ao mesmo tempo, os EUA estavam sofrendo terríveis derrotas no Vietnã, não podendo permitir que mais um país (depois de Cuba em 1959) em sua área de controle, a América Latina, ameaçasse os lucros de suas multinacionais.

Tal ameaça não partia do governo Allende, mas sim do desejo de luta e de resolução das contradições latentes do capitalismo por parte do proletariado chileno fez com que este começasse a marchar em ritmo acelerado, ocupando fábricas e assumindo o controle operário da produção. Foram instaurados os cordões industriais, organismos de classe que logo se transformaram em poder paralelo à institucionalidade burguesa, tão importante para Allende e sua via pacífica para a revolução.

Em meio aos avanços e vitórias dos trabalhadores o presidente se viu pressionado a nacionalizar as minas de cobre, até então sob controle de multinacionais. Esta medida fez com que o governo perdesse definitivamente o apoio dos setores burgueses e médios, bem como da mídia e da igreja. Diante de passos como as estatizações (que chegaram a abranger 60% da economia), mas principalmente do surgimento dos cordões industriais e do controle operário das fábricas ocupadas, invariavelmente os antagonismos de classe vieram à tona com toda sua força.

O fato é que as mais importantes conquistas dos trabalhadores só foram possíveis na medida em que foram literalmente rompendo com o imperialismo. Esta foi a razão de Henry Kissinger, assessor do presidente Richard Nixon, ter dito que o governo americano “não podia ficar parado aguardando um país tornar-se comunista devido a irresponsabilidade do seu povo“. De fato não ficou. O imperialismo interveio diretamente na preparação e financiamento do golpe levado à cabo pelo general Augusto Pinochet. Em setembro de 1973 o Chile entrou numa das mais sangrentas das ditaduras latino-americanas.

Entretanto, é preciso avaliar qual o papel cumprido por Allende para tal desfecho. O grau de organização e mobilização dos trabalhadores criou uma correlação de forças na qual a burguesia estava de mãos atadas. O presidente, tentando “acalmar os ânimos” das classes rivais, impulsionava uma campanha pelo desarmamento dos operários organizados nos cordões, dizendo que o exército, o principal pilar do Estado capitalista, iria salvaguardar a democracia, as instituições e o presidente democraticamente eleito.

Quando conseguiu desarmar os trabalhadores, reverteu a correlação de forças em favor dos generais. Pinochet, com o caminho livre, bombardeou o palácio presidencial de La Moneda. Allende foi assassinado. Mas, minutos antes de sua morte, fez uma declaração no rádio pedindo para a população não resistir, não se armar e não ir a luta para defender suas conquistas. Até o último minuto o presidente tentou conciliar as classes em luta, tentou demonstrar para a burguesia que podia receber um voto de confiança. O preço pago pela classe trabalhadora chilena foi muito alto: milhares de mortos, desaparecidos, presos e torturados. Todas as conquistas retrocederam e o país voltou ao “normal”.

Lições a serem tiradas
Dessas experiências, quais as principais lições que podemos retirar para o atual momento em nosso continente?

A primeira, e talvez mais importante, é a independência de classe. Todas as vezes que os trabalhadores, pelo motivo que fosse, confiaram e se uniram às classes rivais, tiveram de pagar um preço muito alto. Qualquer programa que envolva distribuição real de riquezas não pode ser levado adiante por aqueles que se apropriam dessa mesma riqueza, gerada pelo trabalho de milhões. Esses milhões de mulheres e homens, exatamente por serem os produtores, são os únicos que podem travar uma luta conseqüente pela socialização da produção. Não tem nada a perder.

Daí decorrem mais duas conclusões fundamentais. A de que não há benevolência de governo, seja ele qual for. Se as classes dominantes ou os governos nos dão seus anéis, é por medo de que lhes arranquemos a mão. Se nos derem seus pingentes e colares, é por medo de que lhes arranquemos suas cabeças. Esse é o sentido de qualquer medida supostamente “progressiva” por parte de qualquer governo burguês “nacionalista clássico” ou frente-populista. Apóia-los, ainda que “criticamente” como tantos setores fazem, é não reconhecer que tais avanços são conseqüência da força do proletariado e não da benevolência de governos acuados.

A outra conclusão diz respeito exatamente à democracia. Em todos os momentos em que os trabalhadores impuseram derrotas eleitorais às classes dominantes, viram-se tendo de jogar nas regras de um jogo que não era seu. E não faltaram àqueles que queriam permanentemente se mostrar dignos de confiança aos seus senhores. Enquanto se esforçavam para convencer as massas de que as vitórias arrancadas nas lutas eram resultado da benevolência de burocratas de Estado com retórica de esquerda, preparavam, conscientemente ou não, as mais duras derrotas dos trabalhadores.

Estes episódios comprovam que para avançar num projeto voltado aos interesses da classe trabalhadora é preciso romper com os limites do capital. Conquistas realmente significativas só foram possíveis com medidas de ruptura com o imperialismo e suas multinacionais. E os retrocessos vieram justamente quando se tentou barrar ou reverter as rupturas iniciadas. As conseqüências foram desastrosas.

Morales e a nacionalização na Bolívia
Para Morales nacionalizar os hidrocarbonetos, somente apoiando-se na ação direta das massas e se enfrentando com a burguesia, o imperialismo e multinacionais como a Petrobras. Os trabalhadores bolivianos já deram incontestáveis provas de sua força. Contudo, correm o grave risco de cair no canto da sereia do parlamento, da institucionalidade, do “não fazer o jogo da direita”. A correlação de forças é favorável a ações cada vez mais conseqüentes. O instrumento capaz de aglutinar os diferentes setores de classe já existe. Não como cordões industriais, mas na forma da Central Obrera Boliviana – COB – que vem organizando mineiros, camponeses, estudantes moradores das periferias e favelas, desempregados, enfim, o conjuntos dos que sofrem com as conseqüências do capitalismo.

A questão que se impõe com maior força às massas bolivianas é qual será o caráter da direção que necessitam? Se reformista, atuando dentro dos limites da governabilidade de um estado ingovernável para os trabalhadores; ou revolucionária, apoiada não mais no parlamento branco dos senhores burgueses, mas no instrumento de luta construído pela própria classe cujo poder já extrapolou o limite de uma simples central sindical para tornar-se um duplo poder de fato, a COB.

O programa de Evo não é claro, e seu discurso se utiliza da velha fraseologia de belas palavras como dignidade, soberania, cidadania, etc. Na prática dá toda margem para as incansáveis tentativas de se mostrar confiável ao grande capital. Antes mesmo de tomas posse, começou dando suas provas “responsabilidade” nas viagens que fez, passando pelo Brasil e Europa deixando claro que não irá expropriar as multinacionais. Ainda que o novo presidente da empresa estatal de petróleo da Bolívia venha alardeando que seu gabinete está desenhando uma política “revolucionária” para a administração dos hidrocarbonetos, a imprensa do país confirma que não há nenhuma menção à estatização das multinacionais. Se o divisor de águas de qualquer projeto de nacionalização conseqüente é a ruptura ou não com o imperialismo, a cada dia o atual presidente parece deixar claro qual a opção feita, ainda que recorra da retórica populista.

Na Bolívia, assim como na esquerda latino-americana em geral, não haverão de faltar lideranças que apelarão para compreensão e a paciência doas trabalhadores, pedirão que aguardem o momento mais oportuno, para melhor preparar a vitória, enquanto o calor da luta passa e a reação se recompõe.

A revolução Boliviana certamente irá perecer se esperar pela “responsabilidade” de líderes “cautelosos”. Se isso ocorrer, a derrota será diretamente proporcional ao tamanho da vitória que já é possível conquistar. Cabe aos trabalhadores da Bolívia dar um passo à frente. Não esperar pela “cautela” Morales. A atual situação exige o tipo de ousadia que só pode partir dos que nada têm a perder.