Por trás de uma das cenas mais lamentáveis do Carnaval carioca – a Velha Guarda da Portela sendo barrada na entrada da Sapucaí -, esconde-se uma história de crescente mercantilização e de distanciamento dos valores da cultura popular que deveriam caracteCriado na Antigüidade para festejar a colheita e a vida, o Carnaval sofreu uma primeira tentativa de “domesticação” na Idade Média, quando o cristianismo reduziu a uns poucos dias o período em que os “valores da carne” (carnivalis) poderiam ser cultuados antes da imposição de um jejum alimentar e sexual.

De lá pra cá, a história da festa tem sido a de uma permanente luta entre a institucionalização e o controle desejados pelos setores dominantes e a explosão da irreverência popular, que vê no Carnaval a possibilidade (simbólica, ao menos), de inverter valores e costumes, através da sátira, do riso e da manifestação de tradições culturais e religiosas que sempre seguiram à margem da sociedade.

No Brasil, os “podres poderes” têm interferido não só na organização do evento (algo perceptível particularmente nos elevados preços dos ingressos e de tudo que está em torno da festa), como também na transformação do Carnaval em espetáculo para a exibição de valores e comportamentos que nada têm a ver com seu espírito popular e libertário: da vulgarização e exploração do corpo das mulheres (que alimenta o asqueroso mercado do turismo sexual) ao acintoso “embranquecimento” das escolas de samba.

Centro das atenções da mídia mundial, o Rio de Janeiro é, sem dúvida, o principal palco dessa relação promíscua entre grana e Carnaval. E o episódio da Portela é apenas um exemplo de como, em 2005, essa situação chegou às raias do absurdo. Para além dos muitos problemas técnicos enfrentados pela escola, a triste cena dos sambistas mais antigos da comunidade tendo de forçar sua entrada e percorrendo sozinhos a Sapucaí teve sua origem em algo muito mais grave.

Decidida a colocar na avenida uma descabida homenagem à ONU e suas fantasiosas oito metas para mudar o mundo, a direção da escola inflou suas alas com famosos: dos globais de sempre às delegações estrangeiras, passando por “modelos-atrizes” e afins. Criado o caos, sobrou espaço para aqueles que fazem da festa uma oportunidade para desfilar seus próprios egos e faltou para aqueles que carregam a tradição da comunidade.

Enredos no ritmo do capital
Ainda no Rio, acirrando uma tendência de anos, os sambas-enredo de uma parte significativa das escolas tiveram seus ritmo e tom, literalmente, determinados pelos patrocinadores, que investiram R$ 15 milhões nas escolas.

A Tradição (que acabou rebaixada) recebeu alguns milhões para colocar na rua o enredo “De sol a sol, de sol a soja: um negócio da China”, um louvor ao principal produto do agronegócio e aos transgênicos. Para burlar a proibição de propaganda explícita na Sapucaí, a escola se utilizou de lamentáveis recursos: colocou uma réplica da maior colheitadeira produzida pela CNH (uma das gigantes entre as fabricantes de máquinas agrícolas) e uma ala composta por trabalhadores da empresa.

Aliás, fazer propaganda por debaixo do pano é um dos fatores que mais contribui para a pouquíssima inspiração dos sambas-enredo que atravessaram a avenida. Um dos mais ridículos foi o da Grande Rio que, patrocinada pela Nestlé, enfiou a seguinte frase em seu enredo: “Moça o teu doce é saboroso (…) Lá em nosso ninho tem sabor especial!”. Uma risível e vergonhosa menção aos principais produtos da multinacional.

A lista de patrocinadores é infindável. A TIM bancou a Mocidade Independente, com um enredo sobre a Itália. A Petrobras (com um investimento de R$ 1,2 milhão) e a Eletrobras (R$ 800 mil) também praticamente tomaram a avenida de assalto, carregadas pelos ombros da Mangueira e seu enredo “A energia é nosso desafio”, considerado até mesmo pela grande imprensa como algo muito mais próximo de um jingle comercial do que de um samba-enredo.

Além disso, a Petrobras montou um luxuoso camarote recheado de diretores da estatal, políticos, como o prefeito petista de Aracaju, Marcelo Déda, membros do governo, como Luiz Gushiken, e até mesmo uma comitiva de funcionários da Petrobras argentina, o que ajudou em muito a transformar a Sapucaí em algo que não tem absolutamente nada a ver com o Carnaval: um balcão de negócios.

A Vila Isabel, por exemplo, foi patrocinada por um grupo de estaleiros controlados pela norueguesa Aker Promar. O maior interesse do grupo era aproximar-se dos dirigentes da Petrobras, com a expectativa de encomendas de 42 navios.
O resultado dessa história foi o quase desaparecimento, no Rio e em São Paulo, de temas vinculados à cultura popular e às próprias raízes (negras, é sempre bom lembrar) do Carnaval.

Houve exceções, é verdade – como a Unidos da Tijuca que celebrou o imaginário popular (mais pop, do que popular, na verdade); a Porto da Pedra que reeditou o enredo “Carnaval Festa Profana” e a Caprichosos de Pilares que celebrou 20 anos da Liga das Escolas de Samba –, mas, no geral, o que se viu foi uma “orgia de puro comércio”, como o jornal The New York Times caracterizou o Carnaval carioca deste ano, fazendo eco com a manchete do brasileiro Valor, em 9 de fevereiro: “Companhias transformam folia em negócios”.

Para além do comércio
Seria injusto afirmar que a mercantilização do Carnaval é uma exclusividade do Rio. Ou que este é o único problema existente.

Em primeiro lugar, por trás das escolas de São Paulo também há uma lista enorme de governos estaduais e empresas. Da mesma forma, na Bahia, os trios elétricos, como os de Ivete Sangalo e Carlinhos Brown, são praticamente movidos pelas cervejarias (que movimentam nada menos do que R$ 4 bilhões nesse período do ano), operadoras de cartões de créditos e telefonia e indústrias automotoras, como a Ford.

As garras desses patrocinadores, diga-se de passagem, já chegaram até a locais onde as tradições sempre foram mais preservadas, como em Olinda e no ultra-popular Galo da Madrugada, no Recife. Some-se a isso as festas e camarotes exclusivos que, entupidos de celebridades descartáveis, servem para rechear centenas de páginas de publicações e programas com gosto pra lá de duvidoso, e teremos um quadro nada agradável do que tem sido o Carnaval.

Um quadro cuja principal responsabilidade é do próprio Estado, que também lucrando montanhas com a festa, praticamente abandonou o patrocínio do Carnaval, deixando-o a cargo ou de traficantes e bicheiros (também amplamente festejados pelas escolas, inclusive pela Camisa Verde, campeã paulistana) ou da iniciativa privada.

Diante dessa situação – e como nem tudo precisa acabar numa melancólica quarta-feira de cinzas – cabe destacar que, como uma forma de reação espontânea e realmente popular a essa invasão mercantilista do Carnaval, país afora blocos de rua vêm crescendo em um ritmo cada vez maior, levando para as ruas centenas de milhares de pessoas embaladas por velhas marchinhas e sambas, e movidas por aquilo que jamais deveria deixar de ser a marca registrada do Carnaval: a crítica social, a irreverência e o festejo libertário de tudo que há de bom e prazeroso na vida.

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