Faixa levada pelo movimento LGBT ao ato de 1º de maio em 1980
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

No dia 29 de março, uma audiência pública da Comissão da Verdade, em São Paulo, foi palco para lembrar um aspecto geralmente “invisibilizado” dos crimes do regime militar: a perseguição à comunidade LGBT

No dia 29 de março, uma sessão especial do “Sábado Resistente” – atividade mensal promovida pelo Memorial da Resistência de São Paulo para resgatar a memória daqueles e daquelas que foram vítimas dos crimes da ditadura – recebeu a Audiência Pública “Ditadura e Homossexualidade no Brasil”, destinada a tratar da repressão e crimes cometidos contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais durante os chamados “anos de chumbo”.

Organizada pelas Comissões da Verdade Nacional e de São Paulo (“Rubens Paiva”), a partir de uma sugestão do militante LGBT, historiador e professor universitário norte-americano James Green (conhecido entre nós como Jimmy), a audiência lotou o auditório do Memorial e também serviu para resgatar a história movimento LGBT, principalmente no final da década de 1970, quando as entidades LGBT’s, feministas e negras foram reorganizadas, embaladas pelo ascenso que marcou processo de derrubada do regime militar.

Repressão, resistência e busca da verdade
Depois da abertura feita pelos representantes das Comissões, Jimmy e Renan Quinallha (advogado, doutorando da USP, membro da Comissão da Verdade Rubens Paiva e coautor do relatório que fez o levantamento dos casos) compuseram a mesa com pesquisadores e militantes LGBT que, no final do ano, irão lançar o livro “Ditadura e Homossexualidade no Brasil: repressão, resistência e busca da verdade”.

Em sua fala, Jimmy declarou o orgulho de ter sido um dos fundadores do “Somos: Grupo de Afirmação Homossexual” – a combativa organização LGBT que surgiu em 1978, na luta contra a ditadura –  e da Facção Homossexual da Convergência Socialista (CS), um das organizações que deram origem ao PSTU.

Diante de um público no qual ­mesclavam-se gerações do movimento LGBT, ativistas dos direitos civis e outros movimentos, como o Quilombo Raça e Classe, além de familiares e amigos de presos e desaparecidos, Jimmy resgatou parte da história do jornalista, escritor, guerrilheiro e ativista LGBT Herbert Daniel (1946-92), destacando seu papel na libertação de 110 presos políticos (através do sequestro dos embaixadores da Alemanha e da Suíça).

Atualmente escrevendo a biografia de Herbert, Jimmy lembrou não só da sua perseguição pelo asqueroso regime militar, mas também dos problemas que o militante gay teve com a própria esquerda que, na época, em sua maioria (sendo a Convergência uma honrosa exceção) não poderia ser descrita de outra forma que não homofóbica. Algo que refletia tanto a tradição stalinista quando a de setores da Igreja que militavam na esquerda. Isto para não falar do puro e simples fato de que a maioria dos militantes era contaminada por todo tipo de preconceito ou, ainda, defendiam a equivocada tese de que homofobia, o racismo e o machismo eram temas da “classe média”, alheios à luta de classes e que, consequentemente, só poderiam ser encarados depois da revolução.

A unidade entre LGBT e os trabalhadores
Enquanto falava, duas fotos se revezavam atrás do professor norte-americano. Em uma delas, lia-se “Contra a intervenção no ABC – Comissão Homossexual Pró 1º de Maio”. Na outra, estava estampada a frase “Conta a discriminação do/a trabalhador/a homossexual”, que Jimmy recordou ter pintado pessoalmente.

Ambas levadas para um ato do 1º de Maio de 1980, são marcos decisivos tanto para a história da luta contra a ditadura quando dos movimentos LGBT e, inclusive, de parte da esquerda, como foi ressaltado pelo fundador do Somos, na medida em que “ajudou na transformação da mentalidade da esquerda”.

Atuando na contracorrente não só da militância de esquerda da época, mas também do próprio movimento LGBT (que, não sem razões, não se identificava com os movimentos sindical, popular, estudantil etc.), a Facção Homossexual da Convergência Socialista e setores do Somos decidiram participar, com suas próprias faixas e bandeiras, do um enorme ato realizado no coração da luta classista contra a ditadura: o Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, onde dezenas de milhares de  operários estavam reunidos.

Esse episódio, mesmo que pouco conhecido pela atual geração de militantes, foi determinante e ainda ecoa na história do movimento LGBT brasileiro. Enquanto um grupo formado por militantes do Somos, da Facção da CS e de independentes decidiu levar sua solidariedade aos trabalhadores, mesmo sabendo da possível reação homofóbica dos trabalhadores; outro setor decidiu fazer um piquenique no Jardim Botânico, alegando que entrar no Vila Euclides era um tipo de ato suicida sem sentido ou propósito.

A luta contra a lesbofobia
Lembrando que a perseguição a gays, lésbicas, travestis e transexuais se intensificou já nos primeiros anos após ao golpe, quando diplomatas do Itamaraty começaram a ser demitidos por “atentarem contra a moral pública” – como também aconteceu com não se sabe quantas pessoas nas estatais, órgãos do governo, serviço público etc. –, Jimmy passou a palavra para Marisa Fernandes, que, no mesmo período, ajudou a fundar, por dentro do Somos, o Coletivo Feminista Lésbico.

Marisa, sem esconder a emoção como a maioria da mesa e do público, dedicou parte de sua fala à escritora Cassandra Rios (1932-2002) que, ousou abordar a homossexualidade feminina em seus 50 livros, que venderam mais de um milhão de cópias.

Um sucesso que, contudo, não a poupou da perseguição ditatorial. Trinta e seis de seus livros foram censurados (fato que ela ironizou no livro autobiográfico “Censura, meu amor, minha vida”) e ela acumulou 26 anos de perseguições, durante os quais foi indiciada dezenas de vezes (só “Eu demônia” lhe rendeu 16 processos).

Na sequência, Marisa também falou sobre o processo de organização das lésbicas que, exatamente pela sobreposição de opressões e a equivocada postura da maioria da esquerda na época, percorreram um árduo caminho até acharem seu espaço. O Coletivo surgiu em 1979, impulsionado exatamente por estas dificuldades.

Primeiro, tiveram que lutar pela visibilidade das mulheres dentro do movimento homossexual. Segundo, tiveram que enfrentar, nas palavras de Marisa, a “esquerda ortodoxa”, inclusive no interior do movimento feminista (como aconteceu no 2º Congresso das Mulheres Paulista, onde lésbicas foram ostensivamente hostilizadas e chegaram a ser agredidas fisicamente).

Quando as Paradas eram Marchas combativas
Enquanto Marisa falava, o painel do auditório expunha outra foto histórica do movimento LGBT: a Marcha contra a fascista “Operação Limpeza”, levada a cabo pelo delegado José Wilson Richetti, em maio de 1980, no centro de São Paulo, com o objetivo de prender homossexuais, travestis e prostitutas.

A absurda e criminosa repressão foi um exemplo concentrado de algo que particularmente as travestis conheciam em seu cotidiano, marcado por assassinatos, suicídios induzidos pela opressão. Uma violência que se voltava sistematicamente contra todo e qualquer um que não se encaixasse na heterossexualidade e nos reacionários padrões morais da ditadura.

O resultado não poderia ter sido outro: em apenas uma semana nada menos do que 1500 pessoas foram presas (187 travestis em uma única noite). Só que, em 1980, depois da luta pela Anistia (iniciada em 1977), das greves que explodiam por todos os cantos desde 1978 e de umas tantas outras lutas, a história foi diferente. Os LGBT’s já não tinham a menor disposição para permanecer invisíveis e calados diante da repressão.

E, assim, foi com muita garra e sede por justiça que, no dia 13 de junho, centenas de LGBT’s, ao lado dos seus aliados nos movimentos negro, de mulheres e nas organizações de esquerda, além do povo da rua, tomaram as ruas do centro da cidade, em um passeata que saiu das escadarias do Municipal.

Como Marisa lembrou, foi de extrema importância que as lésbicas tenham tomado a frente do protesto, num pelotão que levava a principal faixa contra a repressão do delegado-ditador. (leia o manifesto no artigo “1980: surge o movimento homossexual brasileiro”: http://www.pstu.org.br/node/14669)

LGBT’s transformados em ameaça à segurança nacional
O próximo orador foi o professor universitário norte-americano Benjamin Cowan, que apresentou sua pesquisa sobre a política de Estado que foi desenvolvida contra os LGBT e a própria ideia da homossexualidade, transformada, aos olhos medíocres dos militares, num verdadeiro atentado contra a segurança nacional.

Apresentando trechos de inquéritos, falas dos agentes de repressão e representantes do regime ditatorial nas mais diferentes esferas, Benjamin demonstrou que, nos documentos oficiais do período, todos aqueles que não se enquadrassem no padrão heterossexual, e particularmente aqueles que militavam por seus direitos (ou, no linguajar dos milicos, “fizessem proselitismo do comportamento homossexual”), eram caracterizados como responsáveis por “atentados contra a moral e os bons costumes” e às bases da sociedade.

Com sua lógica delirante, os generais e seus comparsas chegaram à estapafúrdia conclusão de a homossexualidade era uma “arma” que estava sendo usada para, “através da degeneração moral e sexual”, promover o “aliciamento da juventude em prol da construção de comunismo marxista leninista”.

Um dos porta-vozes mais raivosos desta tese foi o ainda impune general da Escola Superior de Guerra, Moacir Araújo Lopes, que produziu páginas e mais páginas de lixo para denunciar a “exacerbação do sexo” e a “baixa moral” propagada pelo movimento LGBT.

Na sequência, Rita de Cássia Colaço (a historiadora e especialista em gênero, orientação sexual e relações de poder da Universidade Federal Fluminense – UFF), discorreu sobre a história da repressão homofóbica no Brasil, lembrando, por exemplo, como a ditadura retrocedeu inclusive em relação a leis contra os não-heterossexuais que já haviam sido derrubadas a séculos, como a “sodomia” (sexo anal), que foi discriminalizada em 1830 e a contra o travestismo, que caiu em 1890.

Rita Colaço também deu exemplos de que a homofobia foi uma política de Estado durante a ditadura, como ficava evidente nas bobagens produzidas, por exemplo, por Adolfo João, presidente da Comissão Nacional de Moral e Civismo, que, em 1972, defendia a repressão implacável aos homossexuais por considerá-los como os principais propagadores de uma “perversidade moral” que “atacavam as bases do cristianismo”, com o objetivo de promover uma “subversão comunista”. O que, segundo o general, fazia com que os homossexuais tivessem que se colocados entre aqueles que ameaçavam a segurança nacional.

Essa lógica doentia serviu como base para enquadramento de homossexuais por “atentado à moral pública e aos bons costumes” e perseguições de inúmeras pessoas, além de demissões e perseguições no serviço público.

Um lampião que brilhou contra a homofobia
Jorge Caê Rodrigues (designer e professor da Universidade do Grande Rio – Unigranrio) dedicou sua fala à luta da imprensa LGBT, particularmente ao seu principal porta-voz e no processo de organização do movimento no final dos anos 1970: o “Lampião de Esquina”, publicado entre 1978 e 1981.

Suas páginas bela e rebeldemente diagramadas totalmente dedicadas a temas relacionados à homossexualidade, o “Lampião” foi de uma ousadia enorme. E, por isso mesmo, foi alvo permanente da fúria dos militares. Em 1979, por exemplo, todos os seus editores foram indiciados. Fato que, com a irreverência de sempre, eles noticiaram com ácida ironia, estampando suas próprias fotos em trajes de presidiários na capa da edição de abril.

Tendo servido como importantíssima “ferramenta” no processo de organização do movimento LGBT – sua história se confunde com a do próprio Somos – o Lampião também foi um dos alvos das bombas que explodiram nas bancas que vendiam a “imprensa alternativa” no final do mesmo ano.

“Amor, feijão, abaixo o camburão”
A última fala foi de Rafael Freitas, que no dia anterior havia defendida sua dissertação de mestrado sobre o movimento LGBT entre 1979 e 1982, com um título que repercute uma das principais palavras de ordem da época: “Amor, feijão, abaixo o camburão”, falou sobre as operações contra LGBT’s que foram desenvolvidas por duas figuras nefastas de nossa história: Paulo Egidio Martins (governador biônico de São Paulo entre 1975 e 1979), e Paulo Maluf, cujas canalhices e crimes dispensam apresentação.

Também abordando tanto a repressão quanto a resistência da comunidade LGBT, Rafael apresentou documentos que comprovam que a polícia não escondia a política homofóbica do Estado, destacava, por exemplo, camburões especiais só para travestis que passaram a ser presos às centenas pela “lei da vadiagem” – e extorquidos cotidianamente por policiais corruptos e violentos.

Além disso, Rafael deu exemplos de como a imprensa ou era conivente com a repressão ou, até mesmo, a incentiva, como foi uma campanha lançada pelo jornal “O Estado de S. Paulo” que, em abril de 1980, como preparativo para a operação desencadeada por Richetti, estampou em suas páginas uma campanha contra o perigo de uma “invasão de travestis”.

O pesquisador ainda ressaltou o papel cumprido por uma das mais asquerosas figuras da ditadura: o coronel Erasmo Dias, que também sujou suas mãos de sangue com os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog, do metalúrgico Manoel Fiel Filho e com a invasão da PUC, em 1977, no período em que foi Secretário de Segurança Pública.

Foi como representante do Estado que o coronel disparou sua metralhadora homofóbica por exemplo através de uma nota de apoio a Richetti, expedida pelo governo, na qual o delegado era celebrado por sua “guerra sem quartel contra os locais sabidamente condenáveis” de São Paulo.

Por fim, Rafael destacou outra regra do regime militar: a aliança inseparável com os setores da elite empresarial. No caso de Richetti, a perseguição aos LGBT’s tinha por trás sindicatos patronais, como o dos hoteleiros, dos lojistas e dos comerciantes, e até mesmo um restaurante, o ainda existente La Cesserole, que financiavam as operações para “limpar” suas vizinhanças.

A luta continua…contra o homofobia e a impunidade
Para fechar a audiência Renan Quinalha destacou a importância do evento para combater algo que sempre perseguiu a comunidade LGBT: a invisibilidade. Algo que, lamentavelmente, tem cercado inclusive a história da repressão ditatorial a lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis.

Por isso mesmo, ainda na abertura, James Green já havia destacado a necessidade de que seja ampliado o conceito de “vítimas da ditadura”, pois não foram somente os militantes e ativistas que foram criminalizados, perseguidos, torturados e mortos. O mesmo aconteceu com milhares de “cidadãos comuns”, ainda mais quando são, desde sempre, tratados como “cidadãos de segunda categoria”, como é o caso dos LGBT’s, das mulheres e negros e negras.

Quando a palavra foi aberta ao público, outro trecho da fala inicial de Jimmy ecoou em muitas das intervenções: “Vou lutar aqui, no Brasil, e também lá fora até que a Lei da Anistia seja mudada e os agentes do Estado que participaram dessas barbaridades sejam condenados por ter cometido várias violações aos direitos humanos (…). A luta continua”.

Algo com o que nós do PSTU, que temos o orgulho de estar dando continuidade, através da Secretaria LGBT do partido, à tradição inaugurada pela Facção Homossexual da Convergência, concordamos plenamente. Não podemos descansar, não podemos nos esquecer, até que todos os agentes da repressão sejam punidos; até que todo torturador covarde apodreça na cadeia.

E não só isso, como também foi lembrado. Não descansaremos até que todo o aparato criado pelos ditadores – em especial a Polícia Militar, até hoje movida pela lógica da higienização – e até que o Brasil deixe de ser o país campeão em assassinatos homofóbicos, na média de uma morte por dia.

Essa é a única forma de fazer justiça para aqueles e aquelas que foram perseguidos, torturados e mortos na luta pela liberdade ou pelo direito de viver sua orientação sexual. Algo que, de forma vergonhosa, lamentável e covarde, uma das ex-companheiras desta geração, que hoje está na presidência da República, ao lado de muitos que também foram perseguidos, torturados e exilados, se recusa a fazer.

Por isso, não faltaram menções ao fato de que, ao se ter aliado ao que há de mais reacionário neste país – inclusive criminosos da ditadura, como Sarney e Maluf – Dilma não teve até hoje a coragem de sequer encaminhar o kit anti-homofobia para as escolas, muito menos o PLC 122 original, como lembrou Paulo Sérgio Pinheiro, da Comissão Nacional da Verdade: “Vinte e cinco anos depois da Constituição de 1988 não existe uma legislação que puna o delito de discriminação por homofobia”.

Mas, se Dilma e o governo do PT se recusam a punir tanto a homofobia quanto os agentes da repressão ditatorial, temos certeza que nós o faremos. Mulheres, negros e LGTS’s, ao lado dos trabalhadores. Assim como foi na luta contra a ditadura militar, quando uma palavra de ordem que ecoou durante a passeata contra Richetti e no 1º de Maio de 1980.

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