A direitização do PT vem provocando uma reorganização nos movimentos sindical e político de esquerda. É necessário fazer o debate sobre as estratégias desse movimento.

Nos anos 80, o Brasil era motivo de interesse e objeto de estudos de toda a militância de esquerda internacional. A revolta da classe trabalhadora, despertada pela exploração capitalista, gerou um ascenso inédito das lutas a partir de 1978 e uma escalada grevista que durou mais de 10 anos. Esse processo provocou a reorganização sindical e política classista. Como resultado, nasceram a CUT e o PT. Até o nome do PT, Partido dos Trabalhadores, expressava a contraposição de classe contra os demais partidos, também manifestada no famoso slogan eleitoral de 1982, Trabalhador vota em trabalhador. A CUT, por sua vez, foi fundada com uma posição claramente contra os pactos com a burguesia.1

Na década de 90, integrado a um processo mundial, marcado pela falência do stalinismo e pela onda neoliberal, o PT já fortalecido, passou por um profundo processo de adaptação ao Estado burguês. Dentro do partido abriu-se uma ofensiva contra as características de classe. Essa ofensiva, política e ideológica, se manifestou explicitamente no interior do PT e da CUT, tendo como grande bandeira a adoção da cidadania e da ampliação da democracia burguesa como horizonte estratégico em lugar da visão original de classe.

A partir da política conciliadora da direção do PT e da CUT, iniciou-se um período de imposições de derrotas ao movimento operário, além da tentativa de controle de ondas grevistas, também foi retomada a concepção de colaboração entre empresários e trabalhadores, com a afirmação de que os sindicatos deveriam atuar como força auxiliar das políticas governamentais, típicas do populismo dos anos 50 e 60. A política da CUT de hoje e do governo Lula são a expressão mais acabada dessa mudança, desse retrocesso na reorganização sindical e política da classe trabalhadora brasileira.

A estratégia da cidadania e da democracia

A discussão da cidadania como estratégia, de encarar a sociedade como composta de cidadãos e não de classes sociais, culminou com a negação da visão que deu origem ao PT e à CUT. Isto significou abandonar a idéia de independência e unidade dos trabalhadores, cujos interesses são contrapostos aos da classe dominante. Passou-se a buscar a união de toda a sociedade para conseguir a cidadania para todos.

Portanto, se tratou de substituir o populista “povo”, utilizado pelo PTB nos anos 50 e 60, pela defesa da cidadania, na qual a conquista dos direitos sociais estaria associada a um trabalho “solidário” de todos, patrões e empregados, e seria exeqüível através de parcerias. Assim, se voltou à idéia chave do populismo, de que existem interesses estratégicos comuns entre pobres e ricos em função do bem da sociedade, como era antes da nação. Com boa vontade, se poderia unir e conseguir bons resultados para todos. Esta visão estimula a colaboração de classes. É uma reação contra a idéia de independência de classe, de união da classe operária e dos explorados enquanto tal contra os capitalistas.

A face cruel na CUT e no PT

Hoje, a expressão dessa concepção no PT aparece em sua face mais cruel quando Lula governa com a participação de grandes empresários e banqueiros nos ministérios. Foram esquecidos os manifestos que repudiavam os empresários e partidos burgueses, como “farinha do mesmo saco”. Por sua vez, a liderança da participação sindical no pacto social e na colaboração com a burguesia é a direção da CUT. Daí a mesma achar natural participar do Fórum Nacional do Trabalho e acertar as reformas Sindical e Trabalhista com patrões e governo, mesmo sem consultar a base dos sindicatos. O presidente da CUT, Luiz Marinho, há anos, quando era dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, já vinha dando declarações como esta: “Hoje você tem uma nova cabeça do empresariado com mecanismos de controle, e uma relação mais democrática entre capital e trabalho (…) O principal para nós foi essa conquista da cidadania no chão da fábrica.”2

A justificativa para essa nova estratégia seria a mudança positiva do capital que teria passado a ser mais “democrático” em sua relação com o trabalho. Numa entrevista à revista Veja, já em 1998, Marinho esclarecia sua análise sobre os avanços que, segundo ele, foram alcançados na relação com o capital:
“(…) Trinta anos atrás, o sindicato não tinha com quem negociar, nem que quisesse. Por isso fazia greves. Hoje,o sindicato está mais organizado nas fábricas e há mais respeito na relação com os empresários. É muito difícil um problema não ser resolvido na mesa de negociação (sic). Atualmente nós nos reunimos a cada três meses sem que exista um conflito específico para resolver, só para trocarmos idéias e discutirmos a situação da empresa e da economia.”3

Por isso, hoje, é considerado normal pelo mesmo Luiz Marinho fazer um ato-show gigantesco de 1º de Maio financiado por empresários e tomar café da manhã com eles no restaurante Fasano no dia que é considerado uma data histórica de luta dos trabalhadores. Os interesses de classe de trabalhadores e empresários já não seriam mais opostos pelo vértice.

A adoção da cidadania e da colaboração de classes não se restringe apenas às forças da maioria do PT e da CUT. Em um momento em que muitos setores rompem com o PT devido às traições e decepções causadas pelo governo Lula, é importante discutir como a concepção da cidadania tem servido para justificar a adaptação ao Estado burguês e à colaboração de classes que corrompeu o PT como um todo.

O peso dessa adaptação e de suas concepções inclui setores que se reivindicam da “esquerda do PT” e que não rompem com o partido para manter seus postos nos aparatos de Estado; inclui também os que participam da articulação de um novo partido conhecido como Esquerda Socialista e Democrática (ESD), movimento que aglutina a senadora Heloísa Helena, os parlamentares radicais e outros grupos. Essas correntes embora discordem de táticas, de algumas alianças, até rompem com o governo e dizem estar construindo uma nova esquerda radical, entretanto, não romperam com a concepção estratégica que norteou o PT desde de seu 1º Congresso, cuja idéia envolve a cidadania e a radicalização da democracia como caminho para uma sociedade “socialista”.

Afinal, falam em ‘socialismo e democracia’ sem dizer se propõem uma ruptura radical, uma revolução ou se o caminho passa por reformas. Correm o risco de repetir o processo do PT antes de 2002, ao buscar um caminho de reformas graduais na perspectiva da cidadania e da ampliação da democracia, ou seja, da colaboração de classes e da reforma do Estado burguês. Um dos formuladores do manifesto da Esquerda Socialista e Democrática, o intelectual Carlos Nelson Coutinho tem larga elaboração que se mantém no mesmo campo teórico que serviu de justificativa para a adaptação do PT à institucionalidade.

A defesa do parlamentarismo burguês

Para ver como é profunda essa concepção, tomamos um trecho do artigo “Cidadania e Modernidade”, do livro Contra a Corrente, de 2000, onde ele faz a defesa do parlamentarismo burguês como parte da estratégia socialista: “Por isso é um grosseiro equívoco, tanto teórico quanto histórico, falar em ‘democracia burguesa’ (…) Não concordo assim com a contraposição muito difundida em alguns setores da esquerda entre ‘democracia burguesa’ e ‘democracia operária’. Segundo essa visão redutiva, só seria ‘proletária’ a democracia direta, participativa, baseada nos conselhos ou sovietes. Ora, como vimos, também os institutos da democracia representativa tal como hoje existem – parlamentos eleitos por sufrágio universal (…) – são uma conquista dos trabalhadores”.

O primeiro teórico social-democrata a defender esse caminho e o das reformas graduais, sem romper com o Estado, havia sido Eduard Bernstein. E Coutinho reivindica sua contribuição: “Embora Bernstein tenha sido politicamente derrotado quando formulou sua proposta, esta se tornou paulatinamente hegemônica na ala majoritária do movimento operário ocidental, ou seja, na social-democracia. Penso ter chegado o momento de superar definitivamente os anátemas resultantes da divisão do movimento operário em 1917 (divisão pela qual a social-democracia é em grande parte responsável) e reconhecer claramente que essa opção dos social-democratas pelo reformismo possibilitou às classes trabalhadoras do ‘Ocidente’ significativas e duradouras conquistas sociais e democráticas, (…)”4.

Embora Coutinho faça algumas críticas às correntes atuais mais à direita como Tony Blair, da Grã-Bretanha, e Gerhard Schroeder, da Alemanha, ele reivindica a social-democracia como se ela tivesse garantido as conquistas democráticas e sociais dos trabalhadores.

Aliás, Coutinho saudava a prática do PT em 2000, quando o partido já havia feito todas as concessões fundamentais à política e à ordem burguesa. O que ele cobrava do partido era uma coerência como cabeça da ala reformista e por dentro da democracia burguesa, abandonando de vez qualquer veleidade revolucionária: “O PT precisa adequar de uma vez por todas a sua teoria e seu programa à prática política que já vem desenvolvendo nestes últimos anos, deixando de lado as ambigüidades que atuam como fortes empecilhos à explicitação corrente daquela prática, a qual já faz dele – objetivamente – o principal partido do bloco reformador e democrático.”

O que ocorreu foi que o PT foi tão à direita no governo que decepcionou esses setores que esperavam ter nele pelo menos um governo com algumas reformas sociais. Mas a ruptura é parcial, se restringe a diferenças táticas, não de estratégia, não são concepções antagônicas. Tentam retomar a estratégia acordada no 1º Congresso do PT, de mudanças dentro da ordem, do Estado burguês, de ampliação da democracia, enfim, de uma posição reformista.

Estamos vivendo um momento em que amplos setores do movimento, dezenas de milhares de ativistas repudiam o governo Lula à medida que ele se resume a implementar a política neoliberal e a continuar a política de FHC. Novamente está acontecendo uma ampla e rica reorganização como a da década de 80, o que torna necessário abrir a discussão sobre estratégia partidária com clareza.

Os ativistas que buscam uma nova alternativa ante a falência do PT precisam ter acesso a posicionamentos claros. É fundamental não repetir os erros, é necessário que um novo partido tenha uma estratégia revolucionária, e nesse aspecto a ESD, em seus primeiros manifestos, pela participação destacada de intelectuais com esse tipo de formulação já conhecida nos debates internos do PT, já está mostrando que não rompeu efetivamente com essa herança, candidatando-se a repetir o processo do partido.


NOTAS


1. Em sua fundação, a definição da CUT era categórica: “Diante da crise, cada classe social apresenta soluções que condizem com seus interesses. Enquanto setores ligados ao capital estrangeiro acham que a saída para a crise está em aumentar a exploração dos trabalhadores, lançando mão de todos os meios para garantir seus lucros, outros setores burgueses buscam atrair parcelas do movimento sindical dos trabalhadores para servirem de base a um pacto social, cujo objetivo é permitir a continuidade da exploração capitalista”. Resoluções do Congresso de Fundação da CUT-1983, p.151.

2. O então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em uma entrevista em 1998 ao Especial 20 anos depois, do Diário do Grande ABC, onde esclarecia o que mudou de 1978 para cá.

3. Veja, 25/3/1998, p.35.

4. COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente. São Paulo: Cortez, 2000, p.43

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