O governo de Evo Morales, na Bolívia, termina o seu primeiro ano ainda com grande popularidade, mas já com sinais de crise. É um tipo de governo que chamamos de Frente Popular, com representantes do movimento de líderes dos trabalhadores e da burguesia. Existe uma polarização crescente no país, enquanto Evo busca ganhar tempo e evitar definições.

Os índices de popularidade do governo chegam a 70% a 80%, fruto de seu discurso contra o imperialismo, do aumento do salário mínimo para 500 bolivianos (US$ 65), promessas de nacionalizar os hidrocarbonetos e de fazer a reforma agrária, mudanças nas leis trabalhistas, como o fim da dispensa sem motivos e do livre contrato. Pegando carona na proposta de Lula, Evo também instituiu o bônus Juanito Pinto para quem tem filho nas escolas, uma versão local do Bolsa Família.

No governo existem representantes dos movimentos sociais como Galvez, ex-dirigente da Federação dos Trabalhadores Fabris, e atualmente no Ministério do Trabalho; Abel Mamani, da Federação das Juntas de Vizinhos de El Alto; Guilhermo Dalance, o ministro das Minas, ligado à Federação Mineira. O Ministério das Forças Armadas está sob o controle de Wolker San Miguel, um dos representantes da burguesia.
Na oposição de esquerda estão a direção da Central Operária Boliviana (COB), os professores urbanos, a Federação Mineira e os mineiros assalariados.

Do outro lado, na oposição burguesa, encontraremos a burguesia de toda “meia lua” boliviana (os departamentos de Santa Cruz de la Sierra, Tarija, Beni e Pando), onde ficam as grandes reservas petrolíferas e as plantações de soja, e setores do imperialismo (EUA e Espanha). Todos com uma política de pressionar para ter mais concessões e maiores lucros.

Isso faz com que o governo Evo seja sistematicamente pressionado, por um lado, pelo movimento popular e operário que quer avanços no processo revolucionário e, de outro, pela burguesia nacional que luta contra qualquer mudança progressiva na Assembléia Constituinte e defende a maior autonomia de seus departamentos, os estados da Bolívia. O imperialismo, por sua vez, quer maiores concessões para suas empresas nas áreas mineiras e dos hidrocarbonetos.

Esta realidade dá ao governo Evo características de instabilidade e crise, apesar do grande prestígio que ainda goza no movimento de massas.

A fraude das nacionalizações
Uma das mais claras demonstrações da política do governo é a discussão sobre o gás. Primeiro, pressionado pelas mobilizações e pelo processo revolucionário, Evo ditou o Decreto Supremo 28701, anunciado como o da Nacionalização dos Hidrocarbonetos. Ainda que não apresentasse a expropriação das multinacionais, foi visto como uma medida progressiva.

Houve reações dos governos que controlam as transnacionais, particularmente de Zapatero (Espanha) e de Lula. O Brasil ameaçou diminuir o investimento no país de US$ 2 bilhões para US$ 90 milhões, o fim das perfurações em San Alberto e de processar o governo boliviano.

O ministro de Hidrocarbonetos, Solís Rada, tentou acabar com um bônus das refinarias estrangeiras que produzem para o mercado interno. Frente aos protestos imperialistas, entretanto, o governo decidiu “congelar temporariamente a medida para não interferir nas negociações com a Petrobras”. Totalmente desautorizado, Solís Rada caiu, apesar de ser o mais popular dos ministros.
Depois de seis meses de negociações, o governo assinou 44 contratos com 10 empresas, com duração de 24 a 31 anos. Estas empresas passaram a ser “prestadoras de serviço”, entregam formalmente sua produção à estatal boliviana, que passa a ser a fiscalizadora, mas não controla as operações do setor. As empresas seguem donas de seus investimentos e ativos.

Não houve, portanto, nacionalização alguma e ainda foi liquidada qualquer possibilidade de reconstruir uma empresa petroleira nacional. O governo simplesmente renovou os contratos e as empresas estrangeiras seguem atuando em ótimas condições.

A burguesia boliviana e as multinacionais comemoraram o acordo, mas povo já começou a entender que esta nacionalização é uma fraude. Pois os novos contratos consolidam os mega-campos nas mãos das multinacionais e a favor da exportação e não garantem nenhum processo de industrialização nacional do gás, nem distribuição para o consumo interno.

A crise da Assembléia Constituinte
Em agosto, começou a funcionar a Assembléia Constituinte. Sua convocação foi uma das principais reivindicações do movimento de massas na revolução de 2003, assumida por Morales.

A população indígena e camponesa vê a Constituinte como um instrumento para resolver os problemas da terra. Exigem que a Constituinte seja originária e de “refundação” da Bolívia (quer dizer, soberana para aprovar uma nova Constituição e com poder para criar uma nova estrutura de Estado, subordinando todos os outros poderes a ela). Por outro lado, a burguesia e o imperialismo querem que ela seja “derivada” (respeite os outros poderes e as bases da Constituição, limitando-se a uma reforma constitucional).

Por isso existe a luta para ver se as votações serão por maioria simples ou qualificada (dois terços). Na convocatória da Assembléia Constituinte, Evo tinha feito um acordo com a burguesia de que as votações seriam feitas por dois terços dos votos. No entanto, o MAS, (partido de Evo, grande vitorioso nas eleições constituintes), elegeu 55% dos deputados. Assim, não poderia aprovar nenhuma medida do governo. Pressionado pelo movimento de massas, Evo rompeu o acordo, e aprovou na Constituinte a maioria simples como forma de decisão. Agora, os setores da burguesia nacional, representados pelos prefeitos e governadores da região da “meia lua”, romperam com o governo e começam a realizar manifestações, com greves de fome e marchas. Uma paralisação patronal foi realizada no dia 8 de setembro. Outras mobilizações, certamente ocorrerão.

Frente à nova pressão da burguesia, Evo propôs que as questões polêmicas sejam votadas por dois terços. O problema agora é saber quais serão as questões polêmicas.
Como conseqüência, a Assembléia Constituinte está paralisada. Nos últimos meses não se aprovou nada, apenas discute o seu próprio regimento.

A privatização da Mutum
Apesar de todo discurso nacionalizante, Morales privatizou a mina de Mutum para a empresa Jindall Steel and Power, indiana com capital norte-americano. A Mutum é a segunda jazida de ferro da América Latina, atrás somente de Carajás, e a sétima reserva de ferro do mundo. Tem um potencial de 40 bilhões de toneladas de ferro, além de manganês, níquel e cromo. A concessão é por 40 anos.

Conflito entre mineiros
Os planos neoliberais levaram a uma brutal crise nas minas do país. Em 1985, a Lei 21060 fez com que fossem demitidos 27 mil mineiros. Houve o desmantelamento histórico da Corporação Mineira Boliviana (Comibol), única empresa estatal mineira do país. Várias minas de estanho foram privatizadas e outras fechadas.

Com isso, muitos mineiros optaram por formar cooperativas para manter seus trabalhos, em péssimas condições salariais. Alguns “empresários cooperativistas” entraram no ramo atuando como intermediários e ganhando muito dinheiro. Só foram mantidas algumas poucas minas estatais (como Huanuni, Colquiri e Caracoles) sob contratos de risco compartilhado com empresas estrangeiras ou nacionais. Hoje existem 5 mil trabalhadores nessas minas.

O aumento dos preços dos minerais a nível internacional voltou a dar destaque à questão mineira. Agora explodiu um confronto entre os trabalhadores das cooperativas (que exigem que as minas estatais que sobram sejam também transformadas em cooperativas) e os mineiros das estatais.

Morales nomeou Walter Villarroel, principal dirigente das cooperativas, como ministro das Minas. Como havia demora em cumprir os compromissos de campanha, centenas de cooperativistas tentaram tomar de assalto o morro de Posokoni, em Huanuni, maior jazida de estanho do país e uma das maiores do continente, atacando os trabalhadores estatais com dinamites.

Os mineiros estatais defenderam sua fonte de trabalho e ganharam o conflito em termos políticos e militares. No conflito morreram 16 pessoas (12 das cooperativas). Caiu o ministro representante dos cooperativistas e os trabalhadores estatais arrancaram promessas de Evo de novas estatizações.

Em La Paz os jornais anunciavam que, em represália, os mineiros cooperativados tinham atacado um comando policial, seqüestraram um soldado e o explodiram com bananas de dinamite em volta do corpo. A Federação de Cooperativistas Mineiros anunciou a ruptura com o governo.

Os mineiros estatais exigem a “reconstrução da estatal Comibol”, empregando todos os mineiros, rescisão dos contratos de joint venture com as empresas privadas estrangeiras e a sua expropriação.

Este tipo de conflito operário, além de colocar na ordem do dia a nacionalização, também mostra a necessidade da autodefesa operária e da construção de milícias dos trabalhadores.

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