Este é o terceiro artigo da série “As amarras da dívida externa”. A série começou com um artigo introdutório sobre a questão da dívida externa. O segundo artigo discutiu o tema “dívida externa e capitalismo dependente”. O presente artigo inaugura a parte histórica da série

A economia exportadora e a dívida externa
Até as primeiras décadas do século 20, a economia brasileira era essencialmente voltada para a exportação de bens primários (alimentos e matérias-primas) para as economias capitalistas industrializadas da Europa e dos EUA. Era também importadora de produtos industrializados.

Esta especialização na produção chegou a tal ponto que, de acordo com Caio Prado Júnior, apesar de a economia brasileira ser quase inteiramente agrícola, importava-se cerca de 30% dos alimentos consumidos internamente.

A dinâmica econômica interna era subordinada aos ciclos dos países industrializados. Quando havia crescimento nestes países, ocorria um aumento da demanda pelos produtos de exportação brasileiros, o que trazia consideráveis ingressos de divisas externas, utilizadas para pagar as importações, os juros e amortizações das dívidas externas.

Quando havia recessão nos países industrializados, os ingressos provenientes das exportações desabavam. Isto levava a crise econômica interna e ao crescimento do endividamento externo para sustentar as importações e financiar a burguesia exportadora.

Os principais credores eram os banqueiros ingleses ou franceses (posteriormente, os norte-americanos) e os intermediários comerciais, estrangeiros ou financiados com capital externo. Os empréstimos externos eram, em grande medida, para financiar as plantações dos proprietários agrícolas e a dívida pública, construir infra-estrutura para o escoamento das exportações, lidar com os períodos de crise nas exportações e pagar dívidas anteriores.

A dívida externa era feita sempre de acordo com os interesses dos segmentos sociais ligados ao setor exportador (produtores de café, intermediários comerciais, financistas e investidores internacionais). O Estado e a dívida pública também estavam voltados totalmente para o atendimento dos interesses destes segmentos.

Enfim, o endividamento externo era um dos mecanismos centrais de extração de excedente econômico pelo capital estrangeiro e cumpria papel decisivo na reprodução do modelo agrário-exportador e da dependência.

A evolução da dívida externa
O início da dívida externa ocorreu na própria ocasião da independência. Em troca de seu reconhecimento, o Estado brasileiro herdou as dívidas de Portugal com a Inglaterra (muitas delas assumidas no próprio combate à independência) e assumiu tratados econômicos e comerciais claramente desvantajosos. A dívida externa aumentou ainda mais em função de uma série de conflitos em que o Estado brasileiro envolveu-se e que foram financiados principalmente pelos banqueiros ingleses, como a Guerra da Cisplatina (1825-28), o combate às revoltas internas (Cabanagem, Farroupilha, Sabinada, Balaiada, etc.), e principalmente a Guerra do Paraguai (1865-70).

Até meados do século 19 havia uma estagnação das exportações e o endividamento externo permitia apenas a manutenção da capacidade de importação. Com o crescimento das exportações (especialmente do café) ocorrido desde então, a economia brasileira passou a registrar grandes saldos comerciais (exportações menos importações).

A partir de então, a dívida externa passa a ser um mecanismo de transferência de parte dos excedentes econômicos para os países industrializados. Segundo Marini, em “Dialética da dependência”, a partir da década de 1860, “quando os saldos da balança comercial se tornam cada vez mais importantes, o serviço da dívida externa aumenta: de 50% sobre esse saldo nos anos 60, para 99% na década seguinte. Entre 1902-1913, enquanto o valor das exportações aumenta em 79,6%, a dívida externa brasileira o faz em 144,6% e representa, em 1913, 60% do gasto público total”.

O balanço do endividamento externo durante o Império (1822-1889) e a “República Velha” (1889-1930) demonstra que os termos dos empréstimos eram extorsivos. Havia, por exemplo, a figura do “tipo do empréstimo”, pela qual se estabelecia um desconto prévio dos recursos emprestados. Assim, em uma dívida de tipo 75, por exemplo, só ingressava no Brasil 75% do dinheiro do empréstimo. Havia também o pagamento de grandes comissões aos banqueiros e intermediários. Com isso, uma grande parcela dos empréstimos ficava com os credores, sem nunca ter ingressado no Brasil.

Em “História Econômica do Brasil”, Caio Prado Júnior acrescenta ainda entre os compromissos crescentes que o Brasil precisava pagar com a utilização dos saldos da balança comercial, o pagamento de dividendos e lucros comerciais das empresas estrangeiras operando aqui e as remessas de dinheiro feitas pelos imigrantes a seus países de origem. Estas empresas estrangeiras estavam basicamente nos segmentos mais ligados ao setor exportador, como ferrovias ou alguns serviços urbanos. O capital estrangeiro dominava ainda as rotas de comércio internacional, pelo que recebia pagamentos pelos fretes e seguros. São estes elementos que explicam por que a Inglaterra, embora tivesse déficits comerciais, compensava-os com os ganhos sobre os empréstimos e investimentos de seus capitais em outros países e com os pagamentos de fretes e seguros.

A crise da economia exportadora
Em 1929, iniciou-se um período de fortíssima crise internacional no capitalismo, inaugurado com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque. O modelo agrário-exportador, em crise havia muito tempo, sofreu um golpe fatal. A crise de 29 levou a uma queda abrupta das exportações. Além disso, não só cessaram os ingressos de capital estrangeiro, como as empresas estrangeiras começaram a remeter dinheiro para seus países como forma de ajudar suas matrizes em dificuldades.

Estes fatos levaram à queda das reservas internacionais e comprometeram a capacidade de importação da economia brasileira, assim como dos demais pagamentos internacionais, como os serviços da dívida e as remessas de lucros e dividendos. Já nos primeiros anos do governo Vargas, tornaram-se necessárias a decretação de uma moratória da dívida externa e a adoção de uma série de medidas protecionistas. Foi a crise terminal do modelo.

As transformações pelas quais passou a economia brasileira desde então deslocaram definitivamente seu eixo ordenador para o processo de industrialização, consolidando uma tendência iniciada anteriormente. Mas esta industrialização não significou o fim da dependência, nem a resolução da questão da dívida externa. Apenas lhes deu um novo conteúdo, que será discutido nos próximos artigos.
Post author João Valentim, do Rio de Janeiro (RJ), e Cristiano Monteiro, de São Paulo (SP)
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