‘A Culpa é do Fidel!’: militantes como os nossos pais

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Yara Fernandes Souza, da redação

A culpa é do Fidel! (La Faute à Fidel!) é o primeiro filme de ficção dirigido por Julie Gavras, filha do cineasta grego Costa-Gavras. É uma adaptação livre do romance Tutta Colpa di Fidel, da jornalista italiana Domitilla Calamai, e conta a divertida e inteligente história de uma garota que vê sua vida completamente alterada com a adesão de seus pais à militância de esquerda.

Ao contrário do que parece, este não é um filme sobre como é terrível ser filho de comunistas. É muito mais a história bonita e cômica sobre os passos dados por uma criança desde a repulsa à militância dos pais até sua conscientização sobre o coletivo.

As realidades se chocam, contradições se estabelecem e se agudizam. Isso acaba mudando a vida, e posteriormente a visão de mundo, de Anna de la Mesa (Nina Kervel-Bey), personagem principal da trama.

O filme se passa no início dos anos 70. Anna tem nove anos, é uma pequena dama, estuda em colégio de freiras, faz natação e mora numa casa com lindo jardim. A morte do tio, assassinado pela ditadura franquista na Espanha, faz com que seus pais (Stefano Acorsi e Julie Depardieu) abracem a militância de esquerda. Eles já haviam participado do Maio de 68 e, agora, têm como centro de sua atuação o apoio a Allende no Chile.

Com isso, a família se muda para um pequeno apartamento. A babá anticomunista (que fugira de Cuba após a revolução) é substituída por militantes estrangeiras. Anna continua na escola católica, mas não pode mais ter aulas de religião. A mãe abandona seu emprego na revista Marie Claire para escrever um livro sobre o aborto, baseando-se nos depoimentos de várias mulheres.

Cena do filme

Anna começa a ver com freqüência sua casa ocupada pelas mulheres chorosas dos depoimentos para o livro da mãe e pelos “barbudos vermelhos”, definição estereotipada dos comunistas que lhe é apresentada pela ex-babá. O roteiro, aliás, desmonta os argumentos estereotipados sobre os comunistas com bastante humor.

Um dos grandes méritos estéticos do filme é enxergar tudo pelos olhos da criança Anna. A câmera está sempre na altura de seu olhar. As passeatas são multidões de pernas. E é a partir de uma pequena fábula ou metáfora contada por um dos ‘barbudos´, sobre a divisão de uma laranja (ou da riqueza) em partes iguais, que Anna começa a compreender todas aquelas mudanças. A cena se remete à primeira do filme, em que Anna tenta, sem sucesso, ensinar seus priminhos da alta classe a cortar uma laranja e comê-la com garfo e faca. Mas já não é a mesma laranja, ela agora é dividida.

Anna, que tinha como preferido o livro de Gênesis (primeiro da bíblia, em que se conta a história da criação), passa a ouvir com atenção as histórias mitológicas da nova babá grega. E quando começa a questionar as verdades incontestáveis das freiras de seu colégio, ela que se recusava a mudar de escola é quem pede para sair.

De fato, para os filhos de pais e mães militantes pode parecer um pouco invasivo ver a casa sempre ocupada por reuniões, jornais e panfletos. Podem parecer contraditórias a educação de dentro da casa e a do colégio. E pode ser duro entender o que é o mundo capitalista aos nove anos de idade. Mas perceber as contradições do mundo tão cedo é um privilégio que se carrega para a vida, algo que o filme de Julie Gavras conclui sem palavras nas últimas duas cenas. E alguns usam este privilégio para dar continuidade às lutas que eram e são de seus pais. Como esta que vos escreve.

*Yara Fernandes é filha dos militantes Fátima da Silva Fernandes e Paulo Henrique de Souza (falecido).

FICHA TÉCNICA:
Título Original: La Faute à Fidel
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 99 minutos
Ano de Lançamento: 2006 (França / Itália)
Direção: Julie Gavras
Roteiro: Julie Gavras, baseado em livro de Domitilla Calamai
Montagem: Pauline Dairou
Produção: Sylvie Danton
Música: Armand Amar
Fotografia: Nathalie Durand
Desenho de Produção: Laurent Deroo
Figurino: Annie Thiellement
Elenco: Nina Kervel-Bey (Anna de la Mesa), Julie Depardieu (Marie de la Mesa), Stefano Accorsi (Fernando de la Mesa), Benjamin Feuillet (François de la Mesa), Martine Chevallier (Bonne Maman), Olivier Perrier (Bon Papa), Marie Kremer (Isabelle), Raphaël Personnaz (Mathieu), Mar Sodupe (Marga), Gabrielle Vallières (Cécile), Raphaëlle Molinier (Pilar), Carole Franck (Soeur Geneviève), Marie Llano (Anne-Marie), Marie-Noëlle Bordeaux (Filomena)