Para entender a China, ao menos em parte, é essencial conhecer um pouco de sua cultura milenar. Para isso, uma obra fundamental é Cisnes Selvagens. Três Filhas da China, de Jung Chang. Escrito em 1990 e lançado em 2000, conta a história de três gerações de mulheres chinesas: Yu-fang, avó de Jung Chang (nascida em 1909), De-hong, mãe de Jung Chang (nascida em 1931) e a própria Jung Chang (nascida em 1952).

O livro é de uma riqueza incrível. Mostra o dia-a-dia do povo chinês, seus sonhos, alegrias e tristezas. Mostra, sobretudo, a dura vida de opressão das mulheres, vítimas de costumes ancestrais, que só começaram a se transformar com a revolução socialista de 1949. Mas a burocratização e depois a restauração do capitalismo na China fizeram com que o processo de emancipação das mulheres chinesas, iniciado com a revolução, fosse interrompido e muitas de suas conquistas, perdidas.

Anos intensos
Jung Chang faz uma grande reportagem sobre a China, tendo como fio condutor a trajetória de sua própria família. Quando sua avó nasceu, em 1909, a China vivia sob o império da dinastia Machu, logo derrubada para dar lugar à República.
Quando nasce seu pai, em 1921, o Kuomintang preparava-se para tomar o poder, o que ocorre em 1927, sob o comando de Chang Kai-chek, que instaura um governo burguês e esmaga em sangue a primeira tentativa de revolução socialista na China.

Quando nasce sua mãe, em 1931, o Japão invade a Manchúria e em 1937 ataca a China interior. O Partido Comunista, orientado por Stalin, se alia ao Kuomintang. Em 1946, explode a guerra civil entre os comunistas e o exército de Chang Kai-chek. O pai de Jung Chang integra uma unidade de guerrilheiros comunistas da região de Chaoyang. A mãe torna-se líder estudantil e junta-se aos comunistas na clandestinidade.

Em 1949, ao mesmo tempo em que é proclamada a República Popular da China, com a vitória do exército de Mao Tsé-tung, seus pais se casam. Tem início a reforma agrária e, em 1950, a China entra na Guerra da Coréia. Em 1951, sua mãe é líder da Liga da Juventude de Yibin e, no ano seguinte, nasce Jung Chang. A mãe e o pai eram chefes do Departamento de Assuntos Públicos e, como milhões de chineses na época, foram vítimas de perseguições pela burocracia do Partido Comunista. Todo aquele que fazia qualquer tipo de crítica ao regime era considerado contra-revolucionário. O pai perde o emprego, a mãe é presa, e libertada em 1956.

Em 1966, começa a Revolução Cultural e o pai de Jung Chang é preso. A mãe vai a Pequim apelar e consegue que o marido saia em liberdade. Jung Chang junta-se aos Guardas Vermelhos, mas, quando seus pais são novamente presos e torturados, em 1967, ela rompe com os Guardas Vermelhos. Novamente acusados de contra-revolucionários, seus pais vão para campos de trabalhos forçados e Jung Chang é exilada em Ningnan; depois trabalha como camponesa em Deyang, e, de volta a Chengdu, sua cidade natal, torna-se trabalhadora metalúrgica e eletricista.

Em 1972, Nixon vai à China, numa visita que virou símbolo da abertura chinesa ao Ocidente. O pai de Jung Chang sai da prisão, muito doente, e morre dois anos depois. Em 1977, Jung Chang entra na universidade e no ano seguinte ganha uma bolsa de estudos e vai estudar na Inglaterra, onde vive até hoje. Nessa época, Deng Xiaoping, o Gorbachev chinês, já estava de volta ao poder e, com ele, a política de restauração do capitalismo em seu país.

Foram anos extremos para a China. Depois de ter vivido o inferno, vive a alegria de receber os comunistas e a revolução socialista, e novamente vem a amargura e o sofrimento impostos pela política stalinista, com perseguições sobre todos os suspeitos, a cultura da desmoralização sobre um povo cioso de seu caráter e suas crenças, os requintes de crueldade que alimentaram as grandes revoltas contra a ditadura e o processo de restauração do capitalismo.

Pés enfaixados
Tudo isso foi vivido pela família de Jung Chang com muita intensidade. Ela descreve cada fato, sempre relacionado ao contexto político, mas as mulheres são seu foco.
Com apenas quinze anos, sua avó tornou-se concubina de um caudilho militar. Corria o ano de 1924 e a China estava mergulhada no caos. Em grande parte do território, incluindo a Manchúria, onde vivia sua avó, o poder era exercido por chefes militares, conhecidos como senhores da guerra. De acordo com o costume, seu bisavô casou cedo, aos catorze anos, com uma mulher seis anos mais velha. Considerava-se que uma das obrigações da esposa era ajudar a criar o marido. Como milhões de mulheres chinesas na época, sua bisavó nem sequer teve um nome (só os homens recebiam nomes), e como era a segunda filha, tratavam-na simplesmente por “Rapariga número dois” (Er-ya-tou).

Em 1909, ela tem uma filha, que já nasceu em melhores condições que a mãe, pois deram-lhe um nome: Yu-fang. Mas nem por isso escapou de um dos costumes mais cruéis contra as mulheres: os pés enfaixados, chamados em chinês “lírios dourados com oito centímetros” (san-tsun-gin-lian).

Conta Jung Chang: “Tinha a minha avó dois anos quando lhe enfaixaram os pés. A mãe, que também tinha os pés enfaixados, começou por enrolar-lhe à volta dos pés uma tira de pano com cerca de seis metros de comprimento, dobrando todos os dedos, com exceção do grande, para dentro e para debaixo da planta. Depois colocou uma grande pedra em cima, para esmagar o arco. A minha avó gritou de dor e suplicou-lhe que parasse, e a mãe teve de meter-lhe um pano na boca, para amordaçá-la. A infeliz desmaiou diversas vezes, devido à dor. O processo demorava anos. Mesmo depois de os ossos terem sido partidos, os pés tinham de continuar enfaixados, dia e noite, em tiras de pano, pois, no momento em que fossem libertados, tentariam se recuperar. Durante anos, minha avó viveu cheia de dores terríveis e constantes”.

Com os pés enfaixados, a mulher caminhava de forma vacilante, o que, segundo a crença, tinha um efeito erótico nos homens, sobretudo porque ela parecia vulnerável e despertava neles um impulso protetor.

Pese a sua opressão secular, as mulheres chinesas traziam no peito a revolta, a coragem e uma imensa capacidade de lutar para transformar a vida. Foi o que aconteceu com sua mãe e milhares de mulheres chinesas que aderiram à revolução e lutaram até o fim por seus sonhos. Daí o nome do livro, Cisnes Selvagens.

Cisnes Selvagens. Três Filhas da China, de Jung Chang
Companhia das Letras, 2000

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