Com a minissérie “JK”, a Globo mais uma vez se utiliza de sua alta qualidade técnica e de sua audiência para tentar “reescrever” a História de acordo com sua ideologia e interessesProduzida sob a justificativa de que em 2006 se celebram os 50 anos da pose do ex-presidente Juscelino Kubitschek e os 30 de sua morte, a minissérie é muito mais do que uma homenagem a JK. É uma quase canonização de um sujeito que, segundo a versão global, nasceu em uma família humilde, tornou-se um médico hiper-competente e transformou-se (meio que casualmente) em um político empreendedor, democrático e incorruptível.

No decorrer da minissérie, essa verdadeira “via-crucis” – que acabará com a morte de JK, num acidente automobilístico, em 1976 – será maculada por alguns “pecadilhos” os quais, como já está evidente, só servirão para “apimentar” a história ou para acentuar o bom caráter do “presidente bossa-nova”.

Construindo um herói
Como a Globo irá tratar a mais do que problemática presidência de JK é algo que só veremos a partir do dia 26, quando terá início a nova fase da “novela”. Contudo, algo é certo: o que iremos ver será um “herói brasileiro”.

Vivido nesta primeira fase pelo talentoso Wagner Moura, o JK da Globo é, desde já, de uma irritante perfeição, como o colunista Daniel Piza sintetizou bastante bem: “É o filho perfeito, o irmão perfeito, o aluno perfeito, o amigo perfeito. É a conciliação sem conflitos entre o pai sonhador e a mãe prática”. (O Estado de S. Paulo, 8/01/05).

Criado por Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, o personagem foi concebido em base a uma das técnicas mais rasteiras da teledramaturgia. Para se criar um herói, nada melhor do que fabricar um demoníaco antagonista. Este é o papel do Coronel Licurgo (Luis Melo), um personagem totalmente fictício criado sob medida para “ampliar” as qualidades do JK-herói. Ser humano asqueroso, racista, machista, sangüinário e violento, Licurgo serve, ainda, como exemplo de um Brasil “atrasado”. Ou seja, como contraponto perfeito para a “modernidade” que a Globo quer associar à figura de seu JK.

Ficcionalizando e distorcendo a História
Mais do que simplesmente mesclar “realidade” e “ficção”, o que se passa na minissérie global é uma “ficcionalização da História”, em base aos interesses e à ótica da classe dominante.

Na minissérie, a legitimação desse discurso se dá de diversas formas. Para começar, pelas fontes utilizadas pelos autores. Como consultor histórico a Globo contratou Ronaldo Costa Couto, ex-ministro e biógrafo oficial de JK, que escreveu um livro cujo título dispensa comentários: Brasília Kubitscheck de Oliveira. Outra fonte foi o livro Meu Caminho para Brasília, uma autobiografia de JK. Além disso, a família do ex-presidente interveio diretamente. Assim, por exemplo, os muitos e bastante conhecidos casos amorosos de JK foram resumidos em um único “deslize”.

Fontes que se casaram perfeitamente com a heróica visão da autora sobre seu personagem, como fica claro no prefácio do livro lançado junto com a minissérie: “Não houve outro presidente que pensasse o Brasil de maneira tão grandiosa e que tenha realizado tanto em tão pouco tempo (…) Ele não se abalava diante das dificuldades: tomava as rédeas e resolvia os problemas (…) Lançou o Brasil no rumo da modernidade”.

Depois de construir um personagem destinado a cativar a audiência, o próximo passo será oferecer ao público um banquete de otimismo e realizações, embalado pelos chamados “anos dourados”. Um clima que será potencializado pela já anunciada associação que se fará entre o JK e a efervescência cultural e o “bom astral” de uma época marcada pelo surgimento da bossa-nova, do cinema-novo, de novas estéticas teatrais, do rock, de novos padrões de comportamento e pela vitória do Brasil na Copa de 1958.

Sob medida para um ano eleitoral
Como a emissora não dá ponto sem nó, seria ingenuidade pensar que a minissérie não tem vínculos com a conjuntura atual do país, principalmente num ano eleitoral em que muitos dos pré-candidatos já se compararam ou procuram se identificar com JK.
Neste sentido, há um aspecto especialmente interessante no JK-Global: além de um “homem que faz”, ele é incorruptível. Em plena época do mensalão, o personagem tem demonstrado uma honestidade ímpar, recusando favores e demonstrando uma integridade imbatível, mesmo vivendo cercado por coronéis e ampla corrupção. Uma postura que, mesmo quando arranhada por algum “pecadilho”, é sempre e plenamente justificada pela narrativa. Nos capítulos que já foram ao ar, dois exemplos são impagáveis.

Em sua primeira eleição a deputado, JK foi auxiliado por um esquema de cabrestagem de votos, “justificado” porque ele está concorrendo contra os apadrinhados de Licurgo. Já eleito e tendo que exercer seu mandado no Rio de Janeiro, JK “justifica” suas freqüentes ausências com o argumento de que o “blá-blá-blᔠdo plenário não tinha muito de importante para alguém empreendedor como ele.
Como todo mito, o JK da Globo coloca-se acima do bem e do mal.

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