Este texto não é uma crítica a 28ª Bienal Internacional de São Paulo. Também não é uma crítica aos poucos artistas e suas obras. O objetivo deste texto é criticar a idéia de uma BienalNo século XVIII, os enciclopedistas criaram o conceito de museu, para guardar o tesouro comum, os bens culturais da humanidade, preservando-os das mãos da Igreja e dos Reis. Hoje, a burguesia está repetindo o papel do clero e da aristocracia, controlando, confinando e conformando os bens culturais da humanidade em seus “palácios” e “igrejas”.

A burguesia criou e recriou seus mecanismos culturais de legitimação e controle da arte. As instituições – que deveriam fomentar pesquisas, formação e divulgação – na verdade estão cada vez mais omissas, servindo como um tipo de estrada. O caminho da arte como mercadoria sofisticada, objeto de fetiche e lucros bilionários para uma meia dúzia.

A Bienal
A Bienal de São Paulo surgiu em outubro de 1951. O mundo tinha acabado de sair da Segunda Guerra e a economia capitalista mostrava força, possibilitando um relativo crescimento dos países periféricos. Neste período, nosso país começa a industrializar-se e surgem diversas instituições, como o Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 1947, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em 1948; o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), em 1949, e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em 1949.

Na apresentação da Bienal, Lourival Gomes Machado afirma que esta “deveria cumprir duas tarefas principais: colocar a arte moderna do Brasil não em simples confronto, mas em vivo contato com a arte do mundo, ao mesmo tempo em que, para São Paulo, se buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial.”

Podemos dizer com certeza que a Bienal não levou e não levará São Paulo para a posição de “centro artístico mundial”. Na periferia cultural do mundo, a importância da Bienal, infelizmente, está mais no volume de negócios que gera do que em sua importância artística e intelectual. Esse é apenas o disfarce.

A posição de centro artístico mundial não é conquistada com obras de arte e sim com armas e moedas. Hoje, mesmo com toda a crise na economia norte-americana, a moeda é ainda o dólar e a cultura hegemônica é a dos nossos “irmãos do norte”. A arte brasileira está longe do centro artístico mundial, mesmo com nomes fundamentais para a arte da humanidade, como Hélio Oiticica, Lígia Clark e Cildo Meireles.

O exemplo destes três artistas é ilustrativo: recentemente ganharam um relativo espaço na Europa e Estados Unidos, com publicações e exposições. Artistas de outras nacionalidades, além de norte-americanos e europeus, estão cada vez mais presentes no cenário artistico. Mas isso se deve mais a uma gigantesca internacionalização do mercado do que a um interesse intelectual e artístico.

O que existe hoje são ainda interesses pontuais sobre nossos artistas, muitas vezes movidos pela atração ao “exótico”. Por mais que a intelectualidade se recuse a acreditar, o mundo está cada vez mais sob o julgo do imperialismo. Nossa época não faz circular livremente a cultura, a arte e a informação, apesar de vivermos esta ilusão.

DÉCADA DE 50: A VANGUARDA BRASILEIRA EM VIVO CONTATO COM A VANGUARDA MUNDIAL
O segundo aspecto levantado por Lourival na ocasião da criação da Bienal era o de proporcionar um contato vivo com a produção mundial. Isso, de certa forma, aconteceu. E foi o único caráter progressivo da Bienal, ainda que durante um curto período.

As instituições de arte em países imperialistas – com o peso financeiro e de legitimação – muitas vezes desempenham o papel de cemitério para a vanguarda artística local. Este modelo, de grandes mostras internacionais, feiras, fundações e grandes exposições itinerantes, é parte do projeto elaborado pela burguesia. São centros de consagração, onde a arte recebe o carimbo de “valiosa”.

Nos países periféricos, no entanto, este modelo desviou-se de seu papel original. Em um deserto de museus, espaços culturais e instituições, sem infra-estrutura para a produção cultural, estes modelos de instituições tornaram-se, a contragosto, pólos de aglutinação. Nessas instituições, os artistas irão encontrar-se com a produção mundial, com o público, com cursos, debates e atividades.

Mario Pedrosa, crítico de arte e um dos representantes do trotskismo no Brasil, nos anos 1940, defendeu esse caráter da Bienal, de contato com a produção mundial. Ele foi o curador da II Bienal, em 1953, quando trouxe ao país a tela Guernica, de Pablo Picasso, e obras dos principais mestres da vanguarda artística daquele momento: surrealistas, cubistas, futuristas e abstracionistas, como Paul Klee, Mondrian, Calder, Edvard Munch, Marcel Duchamp e Juan Gris. Pedrosa buscava mostrar o potencial libertário da arte, expresso no “Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente”, escrito por Leon Trotsky e Andre Breton.

No início da década de 50, a linguagem da arte brasileira era uma continuação com pouca força das idéias da Semana de 22. A Bienal surge como um espaço que irá facilitar a atualização da linguagem, colocando os artistas e o público em contato com a produção mundial. Além de contribuir para um ambiente menos hostil à vanguarda que surgirá no final da década: os neo-concretos, como Hélio Oiticica.

Cemitérios
Porém, com o avanço da mercantilização da arte, o papel progressivo da Bienal e de quase todas as novas instituições rapidamente se esgotam. Com o mercado cada vez mais presente nestas instituições, estas também tornam-se cemitérios da arte. O neoliberalismo no Brasil foi o golpe final contra os poucos aspectos progressivos destes centros.

O capitalismo precisa sempre de um novo formato, uma nova embalagem para o mesmo conteúdo. Assim, recria a ilusão de “novidade”, para manter o ambiente menos cinza e morto.

Com as mudanças na economia mundial, as crises e esgotamento dos modelos destas mostras, o sistema de arte passou a buscar outros modelos mais viáveis e mais diretos: feiras internacionais de galerias, mídia de massa, exposições blockbuster, grandes mostras e retrospectivas. São formatos de circulação de arte mais dinâmicos e menos dispendiosos, com mais público e apelo publicitário e de mercado.

Hoje já não é polêmica a coincidência entre as feiras de arte, as bienais, as grandes mostras. Apesar disso tudo, a Bienal está aí. E nada melhor para abafar os grandes escândalos administrativos no últimos anos, envolvendo dinheiro, do que uma “grande polêmica”. Como a do conceito desta edição: A Bienal do Vazio.

Um vazio de espaços públicos e independentes
Na verdade a polêmica da Bienal vazia é uma grande ilusão. Tentando reafirmar a mentira de que as bienais são um espaço de troca livre e de confrontos entre artistas, curadores, críticos e o público e as feiras, por sua vez, seriam somente de venda de obras de artes. No entanto, as bienais a cada edição só afirmam o contrário: além de apresentar os mesmos artistas das feiras, compartilham com estas também o formato: curadoria, tema, debates e palestras.

As bienais têm boa parte dos trabalhos produzidos e bancados pelas galerias que, ao ter “seu” artista participando da bienal, passa a ter a certeza de lucros. É como os cartolas que investem e agem no submundo do futebol para que seu jogador seja convocado para a seleção – e tenha o passe valorizado.

Não há polêmicas nesta bienal. Nada foi inovado, pois a arte contemporânea encontra-se engessada pelo mercado. Esta bienal foi apenas uma mudança formal. Menos artistas e menos trabalhos. O vazio dando destaque à arquitetura – o prédio de Niemeyer como um trabalho em si mesmo. Uma praça aberta para o parque, para a cidade, mas com discussões hermeticamente fechadas. O curador, como um decorador, apenas teve uma postura mais minimalista e de apelos publicitários, inovando na casca e deixando o conteúdo exatamente o mesmo. Vazio.

As bienais têm recebido críticas desde a década de 60, no Brasil e no mundo. Desde então só se multiplicaram, mostrando-se como um grande sucesso comercial e impondo-se como júri do que é ou não arte, aqui e no mundo.

A Bienal morreu faz tempo e não sabe. Quer dizer, sabe, mas é um defunto lucrativo. Não vamos “reformar” a Bienal. Vamos enterrá-la. Não precisamos de uma vitrine para a burguesia vender seus produtos. Vitrine essa que custa milhões e é paga com o nosso dinheiro.