Um dos maiores pesquisadores da cultura popular brasileira, Tinhorão, completa 90 anos neste dia 10 de fevereiro.  São inúmeros os livros, artigos e ensaios publicados pelo pesquisador e jornalista. Seu acervo compreende 11.044 fonogramas de discos de 78 rotações, 3.932 discos de 33 rpm, 31.455 partituras impressas, 6.979 livros, 7.918 fotos e uma hemeroteca (acervo de jornais e/ou revistas) com mais de 30 mil itens. Hoje tudo isso se encontra disponível no site do Instituto Moreira Sales.

Tinhorão ofereceu uma inegável contribuição ao trazer à luz com suas pesquisas a arte e a cultura popular produzida ao longo da nossa história. Resgata, por exemplo, as festas do Brasil colonial realizadas por escravos e pela população mestiça pobre. Explorou como ninguém a complexidade do samba e de outros gêneros populares.   Para ele, música popular era aquela criada e executada pelas próprias camadas populares, e não formas estéticas impostas vindas da indústria cultural ou do gosto das classes sociais dominantes. Por isso, em pleno auge do Rock e da chamada MPB, em 1975 elege em sua coluna no Jornal do Brasil o disco “Brasil Puro” de Zé Coco do Riachão como o melhor trabalho do ano. O pesquisador chamou o músico de “renascentista” e “Da Vinci do sertão”, por compor suas próprias canções e executá-las em instrumentos fabricados por ele próprio.

Tinhorão é implacável na crítica à indústria cultural e sua capacidade em impor padronização cultural pautado sob regras mercadológicas que mata no ninho qualquer possibilidade de inovação . “A indústria do som envolve grandes capitais em área de tecnologia. Ela começa a querer ter certeza que vai colocar o produto dela no mercado. Então ela trabalha, impõe o modelo e, evidentemente, o sujeito que é da periferia, se ele pretende seguir a chamada carreira artística, ele vai em cima da onda, e a onda é criada. Aí tira a possibilidade de fazer alguma coisa diferente”, disse em entrevista ao Roda Viva em março de 2000.

Mas o pesquisador ficou conhecido mesmo pelas suas críticas contra a Bossa Nova, um movimento composto por jovens da classe média branca que faziam “jazz pasteurizado” “em ritmo de goteira”, segundo Tinhorão. Não por acaso, suas opiniões lhe rendeu o ódio de Tom Jobim entre outros expoentes da Bossa. Chegou a sugerir que Jobim, inconscientemente, chegou a plagiar certas canções como “Mr. Monotony” (1948), transformada em “Samba de uma Nota Só” (1960).

Sobre outro expoente do movimento, Tinhorão comentou: “Quando aparece o violão de João Gilberto, toda a harmonia da música norte-americana, pela qual esse povo era fanático, se encaixa perfeitamente. Ali, monta-se uma harmonia norte-americana tão disfarçada que parece música brasileira. Isso não é uma vitória da música brasileira. Os brasileiros ofereceram aos norte-americanos uma nova visão da sua própria música. É mais fácil para o norte-americano ouvir. Por que Frank Sinatra canta Tom Jobim e não Nelson Cavaquinho? Porque não casaria. Sinatra canta Jobim porque aquilo casa com o que ele já fazia nos Estados Unidos”.

Com o Tropicalismo sua crítica pegava mais leve, reconhecia no movimento alguma originalidade como, por exemplo, em canções do tipo “Domingo no Parque” de Gilberto Gil. Mas o crítico era da turma que era contra a presença da guitarra elétrica e da influência do Rock na música brasileira.

O pensamento de Tinhorão carrega uma certa concepção de arte advinda do velho PCB. Para ele, o desenvolvimento de grandes movimentos musicais foi bloqueado pela dominação cultural do imperialismo estadunidense, particularmente após a Segunda Guerra Mundial com a política da “boa vizinhança”, associada a uma indústria cultural que oferecia produtos a público formada pelas classes médias urbanas. Até aí, o pesquisador tem toda a razão. Muitos movimentos de cultura popular simplesmente foram esmagados e suprimidos pela “invasão” cultural dos produtos enlatados vindos do estrangeiro. Ademais, a crítica de Tinhorão atinge de forma contundente a alienação da classe média urbana, que rejeita o popular, considerado símbolo do “atraso”, e consome o que é “vindo de fora”, produzido pela indústria cultural.

A velha crença de que o melhor é o que vem de fora, se liga, como todos sabem, a um preconceito colonial de país historicamente exportador de produtos agrícolas e matérias-primas, e importador de artigos manufaturados. O que poucos percebem, no entanto, é que, à maneira que os países altamente desenvolvidos esvaziam os indivíduos das suas melhores qualidades humanas (vide a brutalidade nos grandes centros norte-americanos, traduzidas pelas séries de detetive da televisão), a vida cultural mais rica –ao menos no nível do povo– vai se revelar exatamente nas regiões mais pobres, onde o contato entre as pessoas depende menos da mediação de instrumentos tecnológicos alienantes, como a televisão, ou de locais de lazer empobrecedor tipo discotecas e jogos eletrônico”, explicou no artigo “Choro bom existe: o que é preciso, apenas, é ouvi-lo” (Jornal do Brasil, 02/11/1977).

Contudo, a crítica contém um indisfarçável nacionalismo que se propõe a valorizar a música popular (“manifestações populares autênticas, não contaminadas por influências estrangeiras”, como vimos) para travar uma espécie de luta de libertação nacional contra o colonialismo.

Mas há um grande equívoco nessa concepção: nem toda influência estrangeira (ou mesmo algum movimento musical criado nos EUA como o Jazz, Rock ou Rap) é ruim.  Aliás, sustentar uma posição como essa em um país cuja chamada “cultura nacional” foi forjada a partir da síntese entre a cultura indígena, europeia e africana é no mínimo contraditória.

Movimentos de vanguarda artísticas, a começar pelo movimento de 1922, apontam para outro caminho. Vanguardas são expressão de mudanças profundamente influenciadas pelas transformações ocorridas em escala global no campo cultural, do desenvolvimento científico e tecnológico e das lutas sociais. Revisam criticamente o nosso passado histórico e se revoltam contra a absorção acrítica da cultura acadêmica e da “influência estrangeira”.

A Antropofagia modernista, por exemplo, propôs devorar a cultura estrangeira e absorver o que nela há de melhor. Os artistas antropófagos não negam a cultura estrangeira, apenas não copiam nem imitam o que vem de fora. Assim como faziam a maioria dos indígenas Tupis que existiam no litoral brasileiro, que devoravam o inimigo acreditando assimilar suas qualidades, o movimento Antropofagia propunha devorar simbolicamente o estrangeiro e aproveitar as inovações artísticas, sem perder a identidade cultural.

Mais tarde, sob influência de outras vanguardas artísticas, Trotsky, Diego Rivera, Frida Kahlo, André Breton e Mario Pedrosa lançam um manifestado que é uma lufada de liberdade para quem procura uma interpretação marxista da independência da arte, fora das exaltações nacionalistas sobre ama suposta e verdadeira cultura popular.

Em matéria de criação artística, importa essencialmente que a imaginação escape a toda sujeição, não se deixe impor filiação sob nenhum pretexto. Àqueles que nos pressionam, hoje ou amanhã, para que consintamos que a arte seja submetida a uma disciplina que sustentamos radicalmente incompatível com seus meios, pomos uma recusa inapelável, e nossa deliberada vontade de nos manter no lema: todas as licenças em arte”, dizia o “Manifesto Por uma arte revolucionária independente”, de 1938.

Na época estava em voga as diretrizes stalinistas do Proletkult e do “realismo socialista” que queria impor uma suposta autêntica arte proletária sob a produção artística. Nessa perspectiva, a arte deveria ser obrigatoriamente engajada, denunciar as mazelas sociais e rejeitar as formas artísticas burguesas. Isso resultou na censura e condenação pública daqueles artistas que não se enquadravam nessas orientações.

Na contramão dessa concepção, Trotsky defendia que a tarefa primordial que o proletariado deveria realizar seria a apropriação crítica dos “elementos mais importantes da velha cultura”, o que dialoga explicitamente com a proposta do movimento antropofágico brasileiro.

Mas apesar das diferenças a respeito da concepção sobre as artes, Tinhorão continua a ser leitura obrigatória para o entendimento das tradições populares no Brasil. O autor comprova que, longe de expressaram nosso “atraso histórico”, como diziam as elites, havia sim uma música original, complexa e profunda feita pelas mãos dos oprimidos e pelas classes subalternas.