Combater toda forma de opressão é um princípio; não é possível lutar pelo socialismo enquanto um setor da população é deixado à margem

Piu, uma travesti de 25 anos que era passista da Beija-flor, foi assassinada no último dia 22. Seus assassinos divulgaram o vídeo que mostra ela sendo torturada. Piu foi encontrada com escoriações, sinais de espancamento e seis perfurações de tiros. Essa é a violência típica de um crime de ódio contra uma travesti, mas essa não é a única forma de transfobia fatal.

No dia 28 de dezembro, Leelah, uma adolescente trans de 17 anos de Ohio, EUA, cometeu suicídio, deixando uma longa carta. Ela explicou quem era: “Eu me sinto como uma menina presa num corpo de menino, e eu me sentia assim desde os 4 anos”. Depois de dizer isso a seus pais, com 14 anos, eles responderam que ela estava enganada, que ela jamais seria uma menina, pois “Deus não comete erros”. Ela foi levada a terapeutas que não aceitavam sua identidade e que não podiam curar sua depressão.

Revoltada, ela se assumiu como “gay” na escola, imaginando que talvez assim ela pudesse ser aceita. Seus pais, em resposta, isolaram-na dentro de casa por cinco meses, sem que ela pudesse entrar em contato com ninguém. Depois deste tempo, ela entrou em contato com colegas de escola, mas também lá não foi aceita. Sentia solidão, sabia que sua identidade não seria aceita, tinha certeza de que jamais teria o corpo que desejava. Por isso, desistiu da própria vida.

No começo da carta que deixou, ela escreveu: “Por favor, não fiquem tristes”. Sinto muito, Leelah, mas acho que isso não é possível.

Estes são alguns exemplos de violência que atinge travestis e transexuais na nossa sociedade. A violência que faz com que a estimativa de vida de uma pessoa trans seja de apenas 35 anos. Em um país onde a homossexualidade foi descriminalizada e despatologizada há décadas, a transexualidade e a travestilidade continuam sendo consideradas e tratadas como distúrbios.

Não existe direito à identidade de gênero, não existe nenhuma lei que permita alterar o nome e o sexo nos documentos, de forma que transexuais têm que se submeter a um longo tratamento e obter laudos de diversos especialistas para, quem sabe, talvez convencer um juiz de que seu nome deve ser alterado. Enquanto isso, o senso comum de que travestis são “homens gays muito afeminados” é propagado até mesmo pela medicina. Dizem que travestis são bichas pobres que não têm condições de “expressar sua feminilidade” e chamam a isso de teoria científica! A estupidez humana não tem limites.

A transfobia que existe em nossa sociedade leva muitas pessoas trans a fugir de suas casas, isso quando não são expulsas pelas suas próprias famílias. Nas escolas, não conseguem usar o banheiro. Se usam o banheiro masculino, são alvo de chacotas e de agressões. Se usam o feminino, são repudiadas. E se tentam usar o banheiro das professoras ou o banheiro dos professores, são impedidas! Nem mesmo as pessoas adultas lhes apoiam!

No mercado de trabalho, também dificilmente são aceitas. Quando são empregadas, são vítimas de assédio. O assédio é uma arma que os patrões usam para submeter trabalhadoras e trabalhadores às condições mais degradantes de trabalho, aos ritmos mais intensos e aos salários mais baixos. Essa arma funciona com muito mais força sobre as pessoas oprimidas, ainda mais quando esta opressão é encarada com naturalidade pela sociedade. No caso das pessoas trans, muitas vezes o assédio atinge tal ponto que elas desistem.

Que opção resta para a grande maioria das pessoas trans? Se elas são expulsas dos espaços públicos, do mercado de trabalho e até de suas casas, onde elas conseguem ficar? É por esse motivo que cerca de 90% das pessoas trans (na grande maioria, travestis) vivem na periferia, sobrevivem a partir da prostituição, na maioria das vezes desde a adolescência. Isso significa que elas, desde cedo, têm que se adequar a condições bastante precárias: realizar vários programas a um baixo custo, entregar uma boa parte à cafetina ou ao cafetão, submeter-se a situações de constrangimento e de agressão, etc. De outra forma, não há como sobreviver.

Invisibilidade
Em um estudo feito em Uberlândia, MG [1] 85,5% das travestis em situação de prostituição afirmaram usar álcool e 72,7% afirmaram usar outros tipos de drogas, sendo cigarro comum, cocaína e maconha as mais frequentes. Quando questionadas se elas são ou não dependentes, a maioria delas afirma que, se um dia saírem da “batalha” (isto é, dos espaços de trabalho com a prostituição) deixariam de usar drogas. Também existem muitas travestis que vendem drogas como uma alternativa de renda. O uso frequente de drogas por parte das travestis faz com que elas sejam alvo de chantagem e de agressão da polícia. Não é à toa que em várias prisões masculinas há uma concentração relativamente grande de travestis.

Enquanto tudo isso acontece com as pessoas trans, para o governo, somos totalmente invisíveis. Os censos realizados pelo IBGE não perguntam nem a orientação sexual nem a identidade de gênero, o que dificulta muito que nós possamos conhecer a população LGBT. Nesta população, as pessoas trans são ainda mais invisibilizadas. Tanto o governo federal encabeçado pelo PT, quanto os governos estaduais recusam-se a investir em programas de combate à violência e à discriminação sofrida pela população LGBT, um descaso que é ainda maior com a população trans. Por falta de investimento, esses programas não saem do papel!

Em 2014, o Diário Oficial da União publicou uma nota que dizia que homens e mulheres transexuais deveriam ser colocados (as) em prisões femininas, enquanto as travestis deveriam continuar encarceradas nas prisões masculinas. O mesmo Estado que permite que uma grande parcela das travestis sejam presas também cria ainda mais desigualdades entre travestis e transexuais, acentuando a estigmatização que as travestis sofrem da sociedade.

As injustiças do sistema capitalista mostram que é preciso dar um fim a ele. Não é possível calar-se diante de tamanha violência, não é possível aceitar um governo encabeçado por partidos que gastam centenas de milhões nas campanhas eleitorais, destinam centenas de bilhões aos bancos, enquanto os serviços básicos como saúde, transporte, educação continuam sendo privatizados e são tratados com completo descaso pelos governos, assim como os supostos programas destinados ao combate à “homofobia”. Recentemente, o PLC 122 foi arquivado e inclusive a presidente Dilma, que prometeu defender a criminalização da homofobia, ficou em silêncio.

Para nós, marxistas revolucionárias, combater toda forma de opressão é um princípio. Não é possível lutar pelo socialismo enquanto um setor da população é deixado à margem da sociedade. Se, para a classe trabalhadora, a liberdade e a justiça no sistema capitalista é uma pura ilusão, essa ilusão é ainda mais distante para os setores mais oprimidos da sociedade. Não é possível lutar por um socialismo que não seja socialista para toda a classe trabalhadora. Nossa tarefa é denunciar cada injustiça, cada desigualdade que existe em nossa sociedade. Queremos que a própria classe trabalhadora, que é alvo da exploração e também o maior alvo das diversas formas de opressão, tome para si a tarefa histórica de construir uma nova sociedade, combatendo a exploração capitalista e eliminando toda forma de opressão.

Por isso, neste dia, Dia da Visibilidade Trans, queremos lembrar a necessidade da luta pelos direitos das pessoas trans. Pela aprovação de uma Lei de Identidade de Gênero, como a Lei João Nery, que permita alteração do nome e do sexo nos documentos e acesso desburocratizado aos tratamentos. Por programas de inserção das travestis no sistema educacional e no mercado de trabalho formal, com toda a assistência financeira e de saúde necessária para se manterem. Por uma sociedade que seja socialista inclusive para as travestis e todas as pessoas oprimidas e marginalizadas neste sistema de opressão e exploração. Pelo fim de toda forma de violência transfóbica e travestifóbica.

Referências:
[1] ROCHA, Rita Martins Godoy; PEREIRA, Débora Letícia; DIAS, Thaísa Magna. O contexto do uso de drogas entre travestis profissionais do sexo. Saude soc., São Paulo, v. 22, n. 2, June 2013. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902013000200024&lng=en&nrm=iso>, acesso em 29 Jan. 2015. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902013000200024.