Resistência dos trabalhadores e trabalhadoras em Brasília
Zé Maria

Metalúrgico e presidente nacional do PSTU.

“Do rio que tudo arrasta, se diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”
Bertolt Brecht

 

A ocupação de Brasília em 24 de maio e antecedentes
A ocupação de Brasília, realizada no dia 24 de maio por dezenas de milhares de manifestantes vindos de todo o país, foi uma atividade soberba, um marco importante nas lutas da nossa classe. Destaco aqui a resistência ativa dos manifestantes à truculência policial. Esse é o foco destas notas. E, diferentemente do que pode parecer,  não foi a primeira vez que os trabalhadores e trabalhadoras enfrentaram a repressão para fazer valer seu direito de protestar.

Para tomar apenas a história recente das lutas da nossa classe, cito vários exemplos de enfrentamentos dos operários metalúrgicos contra a repressão policial que buscava sufocar sua luta, nas greves que ocorreram no final dos anos 1970, início dos 1980 e depois. Pode-se contar às centenas os momentos em que os trabalhadores disseram não às ordens da polícia, da Justiça e do governo e as enfrentaram. Foi assim no ABC, em São Paulo, em São José dos Campos, Jundiaí, Campinas, São Carlos, em 1979, para falar apenas dos locais onde iniciou aquele processo de lutas que depois se estendeu para todo o país.

Houve consequências? Sim. O companheiro Santo Dias foi assassinado pela PM num piquete na porta de uma fábrica em São Paulo, em outubro de 1979; governo interveio em sindicatos no ABC, em 1979 e em 1980; toda a liderança da greve metalúrgica de Santo André e São Bernardo foi presa pela ditadura em 1980 (entre os quais estavam o hoje ex-presidente Lula e este que faz essas reflexões aqui); isso para não falar nas centenas ou milhares de feridos naqueles conflitos, nas dezenas de milhares de lutadores anônimos que perderam seu emprego e tiveram sua vida desestruturada pela perseguição policial e dos patrões.

Lutar é o único meio de se obter mudanças na vida dos trabalhadores(as)

Apesar de todas essas consequências, é preciso dizer que a determinação desses operários e o seu exemplo de luta foram um elemento muito importante para tudo que veio depois: um amplo processo de mobilização de todos os setores da classe trabalhadora brasileira, em todo o país, foi decisivo para pôr fim ao regime militar, em 1984, que governava nosso país há mais de 20 anos.

Zé Maria na greve da Mannesmann em 1989

No final daquela década, em 1989, voltamos a viver momentos importantes em que operários, para defender suas reivindicações e seu direito de lutar por elas, enfrentaram forças policiais a serviço do empresariado. Em meio a um amplo processo de ocupação de fábricas na região de Belo Horizonte e Contagem, como desdobramento da Greve Geral de março de 1989, os operários da maior siderúrgica da região (Mannesmann, hoje Valourec) ocuparam a empresa e, ante a ordem judicial para desocupação, armaram-se com canos e barras de ferro, fizeram a tropa de choque da PM recuar, e a fábrica só foi desocupada dez dias depois, com um acordo que atendeu às reivindicações dos operários.

No ABC, no mesmo ano de 1989, tivemos a Batalha de Piraporinha, em 5 maio, quando a PM avançou sobre os metalúrgicos tentando impedir que prosseguisse uma passeata com mais de 20 mil trabalhadores. Os policiais foram rechaçados com pedras e paus pelos metalúrgicos. No ano anterior, em 1988, para conseguir derrotar a greve dos operários metalúrgicos da CSN, o governo federal (José Sarney era o presidente) teve de ordenar a invasão da fábrica pelo Exército. Três operários foram assassinados.

Esses exemplos são apenas uma pequena expressão de uma realidade bem mais generalizada entre os trabalhadores e trabalhadoras em nosso país naquele momento. Realidade que é, sem dúvida, um dos elementos que ajudam a explicar a força que teve nas eleições para presidência da República em 1989, o candidato do Partido dos Trabalhadores, o Lula.

Massacre de Volta Redonda, CSN, 1989

Medo havia? Sim. A perda de um Santo Dias e a morte dos três operários em Volta Redonda são apenas uma pequena expressão do que pode ocorrer num enfrentamento assim. Os operários que se entrincheiraram na ocupação da Mannessmann, em 1989, sabiam que um enfrentamento, se a polícia invadisse a fábrica, poderia tirar sua vida. Tinham medo disso, mas tiveram ainda mais medo de chegar em casa e encarar seus filhos sem poder dizer-lhes que tinham feito tudo que estava ao seu alcance para dar-lhes um futuro e uma vida melhor.

Não quero aqui perder tempo em rebater as acusações que o governo e a mídia burguesa fazem ao movimento que fizemos agora em Brasília. É da natureza deles, sabem que a nossa luta é para acabar com os seus privilégios de classe nesta sociedade e tratam de tentar desqualificar para enfraquecer nossa luta. É assim a luta de classes, e precisamos estar preparados para enfrentar isso.

Lutar é um direito: baderna e vandalismo é corte de direitos e corrupção

O que pretendo, aqui, é dialogar com amigos de longa data, companheiros e dirigentes do movimento sindical que, frente aos acontecimentos de Brasília neste 24 de maio, acabaram incorporando, e reproduzindo a denúncia da ação de “vândalos e baderneiros” no movimento e, de certa forma, culpando-os pelo que foi destruído.

O que eram aqueles operários e suas lutas, das quais falamos acima, lá na década de 1970 e 80? Eram vândalos? Baderneiros? Ou estavam legitimamente resistindo contra o desrespeito e a truculência com que eram tratados?

Para os governos da época, para os patrões e para a grande mídia, que é burguesa, não havia dúvidas: eram vândalos e baderneiros. E nós, o que pensamos disso? Eu acho o contrário. Esses operários foram nossos heróis naquele momento, ajudaram a levantar bem alto, acima da arrogância e da violência dos patrões e seus instrumentos de repressão, a moral da nossa classe e a sua dignidade.

E estavam certos. O direito à rebelião contra a tirania e a opressão é uma conquista da civilização desde as revoluções contra o absolutismo no século 17. Nem toda lei deve ser acatada se ela fere direitos que são fundamentais do ser humano. Nem toda ordem de autoridade deve ser obedecida se ela vai contra a dignidade e direitos fundamentais das pessoas.

O mesmo vale para os manifestantes que ocuparam Brasília em 24 de maio. Senão vejamos: os trabalhadores e trabalhadoras foram lá para protestar junto ao Congresso Nacional e ao Palácio do Planalto contra as reformas da Previdência e trabalhista e a terceirização. Trata-se de um direito seu, não só legítimo, como legal, está na Constituição Federal. Mais legítimo ainda considerando que o protesto era contra um Congresso e um governo que estão no bolso da JBS, Odebrecht, OAS etc.

Ao chegar em Brasília, depararam-se com um aparato de guerra para impedi-los de chegar perto do Congresso e do Palácio, ou seja, de exercer seu direito legítimo e legal de protestar. O presidente da República e os parlamentares que vemos todos os dias na televisão atacando nossos direitos, roubando e praticando todo tipo de maracutaia, se deram o direito de colocar a Tropa de Choque para impedir o nosso protesto contra tudo isso. Não havia nenhuma autoridade com quem se pudesse conversar. Só soldados armados para uma guerra, atirando bombas e bala de borracha contra quem se aproximasse da cerca que montaram para barrá-los.

Total e completo desrespeito aos direitos mais elementares da classe trabalhadora, e desrespeito às próprias leis do Estado que está aí, das leis que eles mesmo criaram! Onde está escrito que não se pode levar uma bandeira, com um cano de PVC como mastro, a uma manifestação? Onde está escrito que manifestantes não podem se aproximar do Congresso Nacional ou do Palácio do Planalto para se manifestar? Roubar como estão roubando, pode. Atacar os direitos da classe trabalhadora, como estão atacando, pode. Protestar contra tudo isso, não pode. Ora, isso sim é vandalismo, isso sim é baderna, e não a indignação e a resistência dos trabalhadores contra este estado de coisas. O que houve de dano a patrimônio em Brasília é consequência disso e responsabilidade dessas autoridades.

Parte do aparato de repressão destacado para impedir o protesto em Brasília

Violenta é a truculência da polícia. Autodefesa é um direito

Por isso, lembrei-me da frase de Bertold Brecht, quando ele fala que não se pode maldizer a violência das águas do rio, sem falar da violência das margens que as comprimem. O que os manifestantes fizeram em Brasília foi reagir contra uma opressão. Contra um desrespeito, ilegítimo, ilegal e violento que foi praticado contra eles. A revolta que se viu nas pessoas é fruto da indignação que as havia levado àquele protesto, pelos ataques aos seus direitos e à roubalheira generalizada que se vê no governo e no Congresso Nacional. Indignação que cresceu ainda mais pelo desrespeito ao seu direito de, pelo menos, manifestar seu desacordo e sua indignação frente às autoridades responsáveis por tudo isso.

Antes de culpar qualquer manifestante pelos estragos que eventualmente ocorrem em situações como essas, é preciso ver o que fizeram as autoridades. E o que as autoridades fizeram foi uma verdadeira barbaridade, não apenas desrespeitando os trabalhadores, mas também as próprias leis. Há pelo menos um trabalhador ferido a bala internado no Hospital de Base. Um jovem teve parte da mão destroçada por uma bomba. Os feridos contam-se às dezenas.

Numa situação como essa, não cabe aos dirigentes clamar aos manifestantes por passividade e respeito aos limites que as autoridades e sua polícia querem nos impor. Pelo contrário, precisamos estimular a resistência e a rebeldia contra a injustiça que ali se estava tentando fazer. Trata-se de algo muito simples, mas muito importante: os trabalhadores têm o direito de se defender dos desmandos das autoridades e da violência policial.

E isso não é só um direito. É uma necessidade, pois o capitalismo impõe, por sua própria natureza, uma degradação cada vez maior às condições de vida da classe trabalhadora. Para garantir isso, usa cada vez mais, e com mais violência, a repressão policial para conter as demandas dos trabalhadores e trabalhadoras. Se a nossa classe não organiza a sua autodefesa, estará cada vez mais impossibilitada de defender suas necessidades e interesses frente à ganancia por lucro dos bancos e das grandes empresas.

Nem eu, nem os manifestantes que estavam em Brasília somos a favor de causar danos ao patrimônio público como se isso fosse uma coisa boa. Não é. Pelo contrário, queremos que os operários e o povo pobre assumam o governo do país, o controle de todo o patrimônio e o coloque a serviço de atender às necessidades do povo. O que disseminou violência e causou danos foi a arrogância, o desrespeito e a violência com que as autoridades trataram os manifestantes. Se o Congresso Nacional já tivesse parado as reformas, como exige a ampla maioria da população (eles não são representantes do povo?), nada disso teria acontecido. Se Temer já tivesse procurado o caminho de casa (para não dizer da cadeia), nada disso teria acontecido. Não querem respeitar a vontade do povo nem admitir nosso direito a protestar contra eles.

Um exemplo a ser seguido

Na verdade, da mesma forma que aqueles operários nos anos 1970 e 80, os manifestantes que estiveram em Brasília e enfrentaram a truculência policial para defender seus direitos – não só os milhares de trabalhadores, trabalhadoras e jovens da CSP-Conlutas, mas também os da Força Sindical, da UGT, da NCST, da CUT, da CTB que participaram da resistência – estão de parabéns.

Deram uma linda demonstração da disposição e determinação que está presente em toda a nossa classe e em todo o país, afirmando bem alto: Não passarão! Não aceitaremos que tirem nossos direitos e continuem a roubar nosso país e o futuro de nossos filhos! E não vai haver violência ou truculência policial que nos desvie desse objetivo. Essa é a razão pela qual, por todo lado, dentro das fábricas, das obras da construção civil, nos bairros populares, é tão grande o apoio à manifestação que fizemos neste 24 de maio.

24 de maio: o oposto da tática Black Bloc

Por fim, abro parênteses para registrar que o autor dessas notas sempre foi e continua a ser frontalmente contrário às táticas Black Bloc. Havia sim algumas pessoas entre os manifestantes em Brasília que adotam essa tática. Mas foram irrelevantes nos acontecimentos que lá se sucederam, como sempre ocorre quando a classe trabalhadora organizada resolve ela mesmo tomar o leme de sua luta. A tática Black Bloc, ao buscar o enfrentamento desvinculado da ação da classe trabalhadora e sem aceitar sua direção (e muitas vezes infiltrada por policiais), presta-se apenas a provocações que na maior parte das vezes ajuda a própria repressão.

O que ocorreu em Brasília foi uma ação da classe trabalhadora que – para protestar contra os ataques que o governo e o Congresso Nacional estão fazendo aos seus direitos – teve de se defender da violência policial que tentou impedi-la de exercer seu direito à manifestação, previsto na Constituição federal. Não tem nada a ver com a tática Black Bloc. Digo isso porque uma declaração atribuída a um importante dirigente do PT e ex-ministro do governo Lula, publicada neste sábado, 27, no site do jornal O Estado de São Paulo, equiparou os manifestantes de Brasília aos Black Bloc. Provavelmente, ele não esteve lá. Com certeza não sabe o que está falando.

Agora é Greve Geral de 48 horas

Agora, independentemente das opiniões que cada um de nós pode ter sobre os temas tratados nessas notas, precisamos fortalecer a unidade e fortalecer a luta da nossa classe.

Precisamos marcar, urgente, uma nova Greve Geral, de 48 horas, para enterrar de vez as reformas da Previdência e trabalhista, a terceirização, e botar para fora Temer, seu governo e este Congresso Nacional cheio de corruptos.