Repressão em São Petesburgo

Em 1905, o proletariado russo protagonizou a primeira grande onda de greves do século XX. Foi em meio a ocupações de terras, greve operária e quebra da hierarquia militar que surgiram, pela primeira vez, os sovietesEm outubro de 1917 a classe operária russa protagonizou o principal evento de todo o século XX – a primeira revolução socialista vitoriosa da história. Mas isso não aconteceu sem um aprendizado que ocorrera 12 anos antes. Durante todo ano de 1905, uma série de acontecimentos levou a classe operária e seus aliados – os camponeses –, a fazerem experiência com seu governo – uma autocracia monárquica – a afiarem a arma da greve geral e a construírem suas próprias organizações de poder, os sovietes.

Mas o laboratório de 1905 não foi só prático. Os partidos operários precisaram levar suas concepções teóricas a campo e aprender a corrigir seus erros com este ensaio geral. Apresentamos a seguir um pouco da experiência feita pelos trabalhadores e seus partidos neste importante episódio da história da Rússia, esperando despertar o leitor para a continuidade da leitura sobre o conjunto da série especial que oferecemos nos 90 anos da Revolução Russa.

Domingo Sangrento
Em 9 de janeiro de 1905, um domingo, uma vasta, porém pacífica e ordeira multidão de um milhão e meio de pessoas, carregando retratos do Czar Nicolau II e dos santos ortodoxos, juntou-se na praça em frente ao Palácio de Inverno, a residência do Czar em São Petersburgo.

A manifestação foi dirigida pela Associação Operária das Fábricas e Usinas da Rússia, herdeira de organizações operárias legais, surgidas alguns anos antes com apoio do governo para corromper o proletariado com uma propaganda sistemática a favor da monarquia, financiada pela polícia. Embora de caráter legalista, estas associações foram utilizadas pelos operários para expressarem suas reivindicações. A associação era encabeçada por um padre e ex-capelão de prisão chamado George Gapon, sobre o qual recaía a suspeita de ser um agente da polícia.

Uma greve estava em curso, iniciada a 3 de janeiro na gigantesca fábrica metalúrgica Putilov na capital. Era uma greve econômica, por aumento salarial e jornada de oito horas. Numa noite, a greve abrangeu toda Putilov e várias outras grandes indústrias de São Petersburgo, atingindo 140 mil trabalhadores, em 7 de janeiro. A marcha foi proposta pelos liberais para pressionar o Czar e abraçada pelos trabalhadores, entre os quais os membros do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) cumpriram um importante papel.

Os social-democratas convenceram os trabalhadores a apresentar um grande número de demandas, como a anistia, liberdade civil, jornada de oito horas, aumento de salário e a progressiva transferência da terra para o povo. Mas, acima de tudo, era reivindicada a convocação de uma Assembléia Constituinte, eleita livremente, com sufrágio universal e não baseada na propriedade. A petição também pedia o fim imediato da guerra com o Japão e continha cerca de 13.500 assinaturas de trabalhadores, colhidas na véspera, nos bairros operários.

A petição refletia a consciência de uma classe operária recém-vinda do campo e que ainda acreditava que o Czar fosse o grande protetor de seu povo, o “paizinho”. Ela começava dizendo “Senhor! Nós, os trabalhadores, nossos filhos e mulheres e os velhos desamparados que são nossos pais, viemos a vós, senhor, à procura de justiça e proteção”, e terminava com o seguinte alerta: “essas, senhor, são nossas grandes necessidades, que vos apresentamos… Mas, se não as concederdes, se deixardes de ouvir nosso rogo, morreremos aqui, nessa praça, diante de vosso palácio”.

E morreram. O número de vítimas é incerto. Algumas publicações mencionam 150 a 300 mortos. Lênin citou um levantamento feito por jornalistas após o “Domingo Sangrento” que relatava 4.800 mortos. Em 1917, em conferência na Suíça, Lênin mencionou mais de 1.000 mortos. A razão dessa incerteza é que, segundo Trotsky, durante toda noite a polícia recolheu os corpos e os enterrou em local desconhecido. Mas, provavelmente, os números superaram o milhar, já que as tropas de cossacos atiraram durante todo o dia contra os trabalhadores apavorados.

Quando as novas do massacre se espalharam, a nação inteira ficou horrorizada. De um extremo a outro, uma grandiosa vaga de greves sacudiu o corpo inteiro da nação, espalhando-se por 122 cidades e atingindo aproximadamente um milhão de pessoas. Pararam os mineiros da Bacia do Don e dez ferrovias. Sem um plano definido, freqüentemente sem formular uma reivindicação, guiados pelo único instinto de solidariedade, a greve geral prevaleceu no país por aproximadamente dois meses. Lutas esporádicas surgiam em todo lugar. A exigência de uma Constituição e de uma Assembléia Constituinte cresceu mais forte e mais ameaçadora. Estava claro, agora, que a revolução era inevitável.

A greve de outubro e o manifesto constitucional
Em outubro de 1905, as greves voltam com toda força, novamente com centro em São Petersburgo. Dessa vez, com um claro conteúdo político.

Seu início foi inesperado. O Ministro da Educação decretou a liberdade de palavra e reunião no interior das escolas, e os reprimidos nas ruas encontraram refúgio nos muros da universidade. Os trabalhadores começaram a se reunir livres do açoite, e as aulas converteram-se num teatro de reuniões públicas nas quais milhares de operários discutiam aberta e livremente os problemas políticos. O fermento revolucionário voltou às ruas: começou com uma greve de tipógrafos e explodiu com as greves dos ferroviários. As estradas de ferro tornaram-se a rota para a epidemia espalhar-se até incluir inumeráveis ramos de produção. Nada ficou excluído. A greve fechou instalações industriais, farmácias e lojas, tribunais, tudo.

Em apenas um mês, a greve atingiu 500 mil operários fabris. A este número somam-se 750 mil ferroviários. Por causa da greve ferroviária, o sistema postal viu-se obrigado a recusar quase por completo a correspondência interurbana. Não só estavam paradas todas as estradas de ferro russas e polonesas, mas também as linhas siberianas, transcaucásias e de Vladikavkas. E numa velocidade vertiginosa.

As greves ferroviárias iniciaram em 7 de outubro e atingiram as principais regiões do país em cinco dias. A greve política geral era declarada numa cidade após a outra. Segundo Trotsky, 43 das principais cidades entraram em greve entre 10 e 17 de outubro. As principais palavras-de-ordem eram a jornada de oito horas, a anistia, a retirada das tropas das ruas e a Assembléia Constituinte.

A reação da autocracia foi entregar os anéis para não perder os dedos. Outorgou uma Constituição em 17 de outubro. Nela, era prometida a eleição da Duma com ampliação considerável do colégio eleitoral e com caráter legislativo e liberdades democráticas. Era a primeira vitória importante do movimento revolucionário.

O surgimento do Soviete de Deputados Operários
Alguns dias antes, em 13 de outubro, foi criado o primeiro Soviete de Deputados Operários de São Petersburgo. Com a participação de 34 delegados numa reunião no Instituto Tecnológico, decidiu-se convocar o proletariado da capital para proclamar uma greve geral política e eleger delegados.

O primeiro Soviete teve a duração de 50 dias, e organizou-se rapidamente para dar resposta a centenas de milhares de trabalhadores em greve e, ao mesmo tempo, uni-los à vanguarda dos social-democratas e socialistas revolucionários. Para isso, era essencial uma organização não-partidária.

Em poucos dias, a autoridade do Soviete tornou-se indiscutível e passou a cuidar de todos os aspectos da sublevação. Desde a distribuição de alimentos, a impressão de jornais até a requisição e distribuição de armas. A última composição do Soviete tinha 562 delegados, representando perto de 250 mil trabalhadores. O Comitê executivo era composto por 31 pessoas: 22 deputados e nove representantes de partidos (seis das duas frações social-democratas e três socialistas revolucionários). Sua vocação foi, desde o início, expressar a vontade de classe do proletariado organizado e a luta pelo poder revolucionário.

O jornal do Soviete, o Izvestia Sovieta Rabochij Deputatov (Notícias do Soviete dos Deputados Operários), surgiu em 17 de outubro e era impresso em gráficas requisitadas pelos destacamentos armados dos operários tipógrafos, inaugurando a imprensa operária legal. Os partidos revolucionários também aproveitam a liberdade de imprensa conquistada pelos trabalhadores. Em São Petersburgo, publicam-se dois jornais social-democratas diários, com uma tiragem de 50 mil exemplares.

De outubro a novembro
Após o primeiro impacto do manifesto constitucional do Czar, o Soviete de São Petersburgo declara:

“Então nos outorgaram uma constituição. Deram-nos liberdade de reunião, mas nossas assembléias estão rodeadas pelas tropas. Foi-nos dada a liberdade de palavra, mas a censura continua íntegra. Deram-nos liberdade de estudo, mas as universidades estão ocupadas pelas tropas. Deram-nos imunidade pessoal, mas as cadeias estão lotadas de prisioneiros. Deram-nos Witte, mas ainda temos Trepov. Deram-nos uma constituição mas a autocracia permanece. Deram-nos tudo e não nos deram nada”.

O Soviete resolveu: a greve geral continua. Retrocede no fim do mês, mas novamente toma corpo em novembro, com a entrada em cena dos levantes militares, principalmente dos marinheiros, e das insurreições camponesas contra seus senhores, que afetaram mais de um terço dos distritos. Os camponeses incendiaram mais de duas mil casas e repartiram os víveres que a nobreza havia roubado do povo. As labaredas iluminavam os céus noturnos. De manhã, longas fileiras de carruagens fugiam das fazendas, com latifundiários em pânico. Calcula-se em 29 milhões de rublos as perdas dos latifundiários nas dez províncias mais afetadas.

Nas cidades, o grito de guerra era “jornada de oito horas e armas”, enquanto entre os povos oprimidos da Rússia estourava um movimento de libertação nacional. O estopim da greve de novembro foi a decretação da lei marcial contra um levante dos marinheiros de Kronstadt – com a ameaça de pena de morte aos revoltosos – e contra a Polônia, que nesta época estava sob o domínio russo.

A lei marcial é abolida, mas a contra-revolução reage. Contra a jornada de oito horas, os capitalistas promoviam o lock out em suas fábricas, e o governo alimentava os progroms, vingando-se principalmente nos judeus. Foram mortos mais de 4 mil judeus e 10 mil foram mutilados. A burguesia liberal e a intelectualidade, que no início do ano haviam apoiado o movimento operário em suas reivindicações econômicas e na sua luta pela Constituição, retrocederam com a promulgação do manifesto constitucional e, principalmente, pelo medo de que as conquistas operárias avançassem até suas propriedades.

Mas a revolução continuava em sua escala ascendente. Novas forças uniam-se à classe operária. Nas cidades, havia reuniões de faxineiros, porteiros, cozinheiros, serventes, polidores de assoalhos, camareiros e lavadeiras. Era comum a participação de policiais e mesmo de cossacos politicamente conscientes. O espírito de subversão dominava os quartéis e a partir de 2 de dezembro começam a estourar insurreições nas guarnições de Moscou. A hora da decisão aproxima-se. Em 3 de dezembro o comitê executivo do Soviete de São Petersburgo decide preparar a greve política geral e, apoiados pela guerra camponesa e os levantes dos soldados, apontar para uma solução definitiva.

A autocracia, desta vez, não contemporizou. Enviou suas tropas ao edifício onde o Soviete estava reunido e prendeu os membros do comitê executivo. O centro da revolução muda-se para Moscou e encontra seu ápice nesta cidade.

A batalha final e a derrota
A greve em Moscou começou em 7 de dezembro com cem mil trabalhadores parados. No segundo dia, aumentava para cento e cinqüenta mil. Não era raro que falassem soldados e oficiais nos comícios. A 4 de dezembro, formou-se no seio do exército um Soviete de Deputados Soldados. A greve pára a cidade e as fábricas da região. No terceiro dia, começam a ocorrer os primeiros choques violentos com o exército. Os destacamentos armados operários, os druzhinnikis, entram em ação. Sua tática era a de guerrilha urbana. Atacavam as tropas leais ao governo e sumiam no meio da população. Estes ataques ajudavam a desmoralizar os soldados, que lutavam contra um inimigo invisível. Muitos se recusavam a lutar e vários casos de suicídios entre os oficiais foram relatados.

É Lênin que afirma, 15 anos depois: “durante nove dias, um pequeno número de insurretos operários organizados e armados – não seriam mais de oito mil – lutaram contra o governo czarista, que não confiava na guarnição de Moscou. Na verdade, viu-se obrigado a deixar as tropas rigorosamente aquarteladas e só pode sufocar a insurreição fazendo vir de São Petersburgo o regimento de Semionov”.

O Soviete de Moscou decide terminar a greve geral em 18 de dezembro. A revolução terminava. Naqueles dias, enterrou-se 454 pessoas, mas estima-se que o número de mortos em Moscou tenha chegado a, aproximadamente, 1.000. A vingança do Czar não se contentou com este número. Segundo Trotsky, “operários e camponeses da Letônia foram fuzilados, enforcados, açoitados até a morte com paus e estacas e executados ao compasso do hino czarista” após a rendição operária. Segundo cifras aproximadas, de 9 de janeiro de 1905 a 23 de março de 1906, foram assassinadas mais de 14.000 pessoas, executadas mais de 1.000, com mais de 20 mil feridos e 70 mil pessoas desterradas ou encarceradas.

As razões da derrota
As razões da derrota foram analisadas por Lênin e Trotsky: a falta de um partido revolucionário com implantação na classe operária, a imaturidade do campesinato e a débil aliança entre as duas classes.

O POSDR de São Petersburgo, dividido entre bolcheviques e mencheviques, era composto apenas por algumas centenas de trabalhadores que influenciavam alguns milhares de operários, “mas não conseguiu criar uma vinculação organizadora viva com as massas”, devido à necessária atuação na clandestinidade.

Para Trotsky, a fraqueza do Soviete era “a fraqueza de uma revolução puramente urbana”, isto é, a falta de uma aliança operária-camponesa, que levou, por fim, à derrota das insurreições de dezembro pelas “baionetas do exército camponês”.

Segundo Lênin, “os operários e camponeses uniformizados foram a alma das insurreições. (…) O movimento abarcou a maioria dos explorados. Porém o que faltou a este movimento foi, por um lado, firmeza e resolução das massas (…) e, por outro lado, faltou a organização dos operários revolucionários social-democratas que estavam recrutados: não souberam tomar a direção nas mãos, colocar-se à frente do exército revolucionário e lançar uma ofensiva contra o poder governamental”.

Esta história seria diferente em 1917.

REFERÊNCIAS:
CARR, E. H. The Bolshevik Revolution 1917-1923. v. 1, Pelikan Books, 1977.

LÊNIN, V. I. 1905 – Jornadas Revolucionárias. Editora História, 1980.

TROTSKY, L. A Revolução de 1905. Coleção Bases, Global Editora.

TROTSKY, L. Mi Vida. Editorial Pluma, 1979.

1905 Revolution. www.spartacus.schoolnet.co.uk/RUS1905.htm