Compositor, regente, muito dedicado e exigente com sua obra. Sem dúvidas, o maior compositor brasileiro do século XX ao lado de Heitor Villa-Lobos. Autor central do modernismo musical brasileiro, compôs peças como Dança Brasileira, Canção Sertaneja, inúmeras valsas, concertos, sinfonias e claro, dezenas de ponteios. Assim pode ser apresentadas vida e obra de Camargo Guarnieri, que há exatos 110 anos nascia na cidade de Tietê, no interior de São Paulo.

A infância e os primeiros estudos
Nascido em 1 de fevereiro de 1907 e batizado como Mozart Camargo Guarnieri, seu nome foi uma homenagem ao compositor austríaco, Wolfgang Amadeus Mozart. Outros de seus irmão também receberam nomes em homenagem à compositores como Verdi, Rossini e Bellini. O avô de Camargo era um culto funcionário público mas que teve que deixar a Itália por problemas políticos. Seu pai, Miguel Guarnieri, nascido na Sicília, também era ligado à música. Mas por dificuldades financeiras, já em solo brasileiro, teve que trabalhar como pedreiro e como barbeiro.

Foi com seu pai Miguel, que tocava flauta, que Camargo começou a estudar música logo aos sete anos de idade. “Meu pai não tinha senso pedagógico nenhum. Levei muita pontada de lápis nos dedos”, contava. Sua mãe, Grécia Camargo, também tocava piano. Para ajudar a família, Camargo chegou inclusive a aprender a profissão do pai, mas sempre detestou trabalhar como barbeiro.

Aos 11 anos, Camargo compôs sua primeira peça: Sonho de um artista (1918). Segundo ele mesmo, a peça foi inspirada pela primeira mulher por quem se encantou. Guarnieri dedicou a peça ao seu professor particular que, de imediato, recusou a homenagem por considerar a obra muito ruim. Seu pai, muito ofendido com tal postura, chegou a agredir o professor após ele dizer que o seu filho jamais passaria de um barbeiro. “Siciliano, né? Sangue mafioso”, brinca Guarnieri, lembrando que seu pai nascera na mesma região italiana onde surgiram as máfias.

São Paulo e seus empregos
Pouco depois do episódio, seu pai consegue se mudar com a família para a capital paulista, onde acreditava que seu filho pudesse ter um futuro musical mais promissor.

Na capital, a situação da família Guarnieri não era muito diferente. Para ajudar, Camargo acumulava empregos. Em uma de suas entrevistas, lembra da rotina. Entre as 13h e as 17:30h, trabalhava em uma loja de música na rua São Bento, no centro da cidade. Lá, como parte do ofício de vender partituras, Camargo era obrigado a ler praticamente todas as peças que estivessem à venda.

Após jantar na casa dos pais, na Barra Funda, tocava em um cinema na Avenida Rio Branco, onde ficava das 19h às 23:30h. Com uma pausa para um café com leite e um pão na chapa, Camargo ainda tocava piano em um bordel na Rua Xavier de Toledo, até por volta das 4:30h. E isso tudo de domingo a domingo, até os seus vinte anos.

Seus dois pais
Em 1925, quando a situação financeira da família tem uma relativa melhora, Camargo passa estudar harmonia, orquestração e composição com o maestro Lamberto Baldi, que veio da Itália como regente de uma companhia italiana de ópera e trabalhou também como regente da Sociedade Sinfônica de São Paulo.

Baldi reconhecia em seu aluno um grande potencial para compor, mas avaliava que lhe faltava ensino de um modo geral. Guarnieri tinha apenas o ensino médio completo. Foi por isso que o maestro lhe apresentou ao poeta modernista Mário de Andrade. Essa relação influenciou muito sua obra. “Desde que comecei a compor sempre tive, sem preocupação de nacionalismo… Sempre foi uma mensagem nacional, brasileira. Eu tive consciência disso quando eu conheci Mário de Andrade. Tudo quanto eu faço em matéria de composição, eu procuro traduzir como expressão daquilo que eu sinto do meu país, da alma do meu povo”.

Guarnieri estimava muito sua relação com Mário de Andrade e o maestro Lamberto Baldi, com quem costumava jantar às quartas-feiras. Ele dizia que eram como dois pais. “Um cuidou da minha cultura musical, o outro, da minha cultura em geral”.

Carreira profissional
Em 1930, Camargo escreve O Impossível Carinho, baseado no poema homônimo de Manuel Bandeira – uma importante obra no canto de câmara do Brasil. Em 1935 assume a regência do Coral Paulistano, com enfoque em compositores brasileiros. Algo raro na época. Em 1938 é premiado pelo Conselho de Orientação Artística do Estado de São Paulo com uma viagem à Europa. Em Paris, estuda com François Rühlmann, então regente da Orquestra de Ópera de Paris. Por conta da Segunda Guerra Mundial, retorna ao Brasil em 1939.

Entre 1942 e 1945, faz várias apresentações nos Estados Unidos e recebe prêmios por suas obras. Também assume, em 1945, a Orquestra Municipal de São Paulo como regente supervisor. Em 1950, se envolve em uma grande polêmica ao publicar a Carta Aberta aos Críticos e Músicos do Brasil, onde fazia duras críticas ao movimento dodecafonista (estilo de composição baseado em séries com as 12 notas da escala cromática). Para ele, isso levaria à “degeneração do caráter nacional de nossa cultura”. Entre 1956 e 1960 foi assessor musical de Clovis Salgado, ministro de Educação e Cultura de Juscelino Kubitschek, quando pode elaborar um plano de ensino musical para todo o país.

Em 1975 torna-se regente e diretor artístico da Orquestra Sinfônica da USP, onde permanece até ao fim de sua vida. Em 1992, um ano antes de sua morte, recebeu o prêmio Gabriela Mistral, concedido pela Organização dos Estados Americanos (OEA), sob o título de “maior compositor das Américas”.

Sua obra
Embora não se visse assim, Camargo Guarnieri foi um grande propulsor do nacionalismo na música brasileira. Detestava que associassem sua música ao folclore. Para ele, era um equívoco associar música nacional nas América com música folclórica. Considerava sua música nacional simplesmente por ter nascido no Brasil.

Na verdade, como comenta o maestro John Neschling, Camargo era um formalista, muito influenciado pelas obras de grandes formalistas do século XX, como Bartók, Prokófiev e Shostakovich. Guarnieri dizia que como pessoa buscava ser alegre para não chatear as pessoas. Mas como artista, era intransigente. “Não aceito meias medidas. Detesto tudo quanto é mais ou menos”.

Escreveu quase 700 obras e, entre elas, 50 ponteios. As peças foram nomeadas assim por sugestão de Mário de Andrade, em referência às “ponteadas” que violeiros sertanejos fazem antes de começarem suas músicas. Como professor, ajudou a formar importantes compositores contemporâneos como Osvaldo Lacerda, Sérgio Vasconcellos e Almeida Prado.

Com posições ideológicas firmes, Guarnieri não seguiu modismos e conduziu a música brasileira para onde achava que deveria ir, firmando claramente sua posição estética. “Em meio ao rebanho, foi um pastor”, comenta Neschling, sobre o legado musical de um dos pilares do modernismo brasileiro.