LIT-QI

Liga Internacional dos Trabalhadores - Quarta Internacional

Em 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas chilenas e os carabineiros (a polícia) realizaram um sangrento golpe contra o governo da Unidade Popular (UP), liderada pelo presidente Salvador Allende. O Palácio de La Moneda, sede do governo onde Allende se encontrava, é bombardeado e, após uma resistência débil ao ataque, Allende comete suicídio. Dezenas de milhares de ativistas foram presos nas fábricas e bairros operários e populares. Em Santiago, o Estádio Nacional de futebol é transformado em uma prisão gigante. Muitos presos são torturados e mortos.

Assim, terminou de forma trágica a experiência do “caminho chileno para o socialismo”, baseado na alegada possibilidade de realizar a transformação pacífica do capitalismo ao socialismo por dentro das instituições e por meio de eleições burguesas, sem destruir o Estado burguês e suas Forças Armadas. De acordo com toda a experiência histórica e a teoria marxista, a “via pacífica ao socialismo” culminava numa via violentíssima ao regime semifascista liderado pelo general Augusto Pinochet.

Esta experiência começou no final de 1970 com a vitória do candidato presidencial Salvador Allende, da Unidade Popular – coligação do Partido Socialista (PS), o Partido Comunista (PC), Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU) e o pequeno Partido Radical -, sobre os seus adversários do Partido Nacional (Jorge Alessandri) e da Democracia Cristã (DC – Radomiro Tomic). Allende havia conquistado 36,6% dos votos. O Congresso, após intenso debate, proclamou-o Presidente da República, com o apoio dos deputados da DC, e tomou posse em 24 de novembro.

O processo chileno foi acompanhado com muita atenção por toda a esquerda mundial. Além disso, como não poderia deixar de ser, gerou intenso debate entre as diferentes correntes sobre seu caráter, o programa a ser implementado pelas organizações revolucionárias e suas perspectivas. Neste artigo, apresentamos a análise e as posições da corrente morenista, hoje representada pela LIT-QI, expressadas naquele momento pelas publicações do Partido Socialista dos Trabalhadores (PST) da Argentina e um pequeno núcleo de militantes morenistas no Chile.

Contexto internacional

Para entender esses debates, é necessário considerar o contexto internacional em que se deu o processo chileno e como isso influenciou o país.

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, o imperialismo norte-americano desenvolveu uma colonização ofensiva na América Latina, iniciado já no final do século XIX, para assegurar e consolidar o subcontinente como seu “quintal”. No Chile e na Argentina, esta ofensiva havia sido postergada em relação ao resto do subcontinente porque ambos os países eram dominados pela Inglaterra, que retrocedia como potência mundial.

Esta penetração dos EUA provocava, junto ao desenvolvimento de novos setores da economia e o declínio de outros, mudanças estruturais e políticas na burguesia nacional. Isso explica por que a burguesia chilena estava dividida em dois partidos: os antigos setores, mais ligados ao latifúndio, permaneceram no Partido Nacional (PN), enquanto os novos, associados ao desenvolvimento capitalista recente, formavam o Partido Democrata Cristão (DC).

Ao mesmo tempo, a ofensiva norte-americana causava dois processos em vários países, muitas vezes combinados. Por um lado, um ascenso das massas contra as consequências da pilhagem imperialista, e por outro, uma pequena resistência de setores burgueses que queriam melhorar algumas condições de sua própria submissão.

Como parte da “guerra fria” e da política externa do “anticomunismo” travada pelos governos dos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial, quando o processo de massas ameaçava sair do controle ou quando o imperialismo sentia seus interesses ameaçados, golpes sangrentos foram perpetrados, como na Guatemala, em 1954, na Argentina, em 1955 ou no Brasil em 1964.

No momento em que se desenvolve o processo da Unidade Popular, vivia-se importantes processos de ascenso das massas no Chile (desde o governo democrata-cristão de Eduardo Frei), Bolívia, Argentina e Uruguai.

A divisão da burguesia chilena

A verdade é que, já antes de a UP assumir, a burguesia chilena estava dividida ante o processo de ascenso e esta divisão foi mantida por um bom tempo, em relação à política contra o governo Allende. Esta divisão ficou patente em vários fatos:

-A reforma agrária aplicada pelo governo Allende foi baseada numa lei já aprovada pelo governo Frei.

-A divisão do PN e da DC nas eleições de 1970, que levaram ao triunfo de Allende como a primeira minoria.

-O apoio de deputados da DC no Congresso para que Allende assumisse a presidência.

-O apoio de deputados de Washington às leis de nacionalização da mineração e dos bancos.

É verdade que a DC, uma vez que, como vimos, tentava negociar um espaço maior com o imperialismo, tratava dar um “abraço de urso”. Sua política destinava-se a manter o governo da UP no âmbito das instituições burguesas, esperando seu desgaste eleitoral. O governo de Allende respondeu com o “respeito pelas instituições” e, neste sentido, a política da DC foi bem sucedida. O que queremos destacar é que é impossível entender o curso do processo chileno de 1970-1973, sem compreender que, por todo um período, não foi apenas tolerado, mas, mesmo apoiado por um setor significativo da burguesia chilena. Ao mesmo tempo, a mudança de política da DC para a direita e seu acordo com o PN, ocorrido em 1972, é também um elemento muito importante para entender a radicalização e a polarização crescentes que o processo foi adquirindo.

Por sua vez, o imperialismo dos EUA sempre teve uma profunda desconfiança com o governo Allende e considerou que a nacionalização do cobre e dos bancos feriu seus interesses. Desde o início, teve uma política muito mais agressiva, com o boicote promovido pela administração de Richard Nixon, mediante a negação de créditos e os pedidos de embargo ao cobre chileno. Logo levou em conta, como uma das hipóteses possíveis, um golpe de Estado que envolveu em sua preparação a CIA e empresas norte-americanas, como a gigante das comunicações ITT. Portanto, o PN do Chile, refletindo sua maior ligação ao imperialismo, teve desde o início uma política mais agressiva contra o governo da UP.

Caracterização do governo

Neste contexto, um dos grandes debates que ocorreram na esquerda da América Latina e mundial foi sobre a caracterização do governo Allende e a política a se ter frente a ele. Para os PCs e outras correntes, tratava-se de um “governo revolucionário” para fazer avançar o “caminho chileno para o socialismo” e, portanto, a linha foi o apoio incondicional. A Esquerda Socialista chilena (tendência radicalizada dentro do PS) caracterizou-o como “reformista”, uma categoria sem definição de classe, que a levou a oscilar entre a crítica política e apoio. Inicialmente, a maioria das correntes ultraesquerdistas chamou-o de “burguês” (o que estava correto) e chamou a combatê-lo como qualquer outro governo desse tipo (que, em geral, também estava correto). Mas eles não consideravam as profundas contradições que surgiram na realidade e na consciência das massas, que veremos a seguir e que exigiam a formulação de táticas especiais. Por outro lado, mais tarde, várias correntes ultraesquerdistas mudaram sua posição e capitularam, como foram os casos do Movimiento de Izquierda Revolucionario chileno (MIR) e do Exército Revolucionário do Povo (ERP) da Argentina.

Por sua vez, a corrente morenista caracterizava que o conteúdo do governo de Allende era análogo ao dos movimentos e frentes nacionalistas burgueses que já existiam em outros países latino-americanos, como o peronismo na Argentina, que basicamente expressam a intenção de um setor da burguesia de negociar um espaço maior com o imperialismo. Assim, adotou algumas medidas “progressistas”, como a nacionalização da mineração e dos bancos, a tíbia reforma agrária ou o incentivo ao consumo popular. Mas ele fez isso sem quebrar os limites do Estado burguês e do capitalismo. Pelo contrário, manteve-se estritamente dentro deles e evitava a todo custo que a mobilização das massas superasse esses limites.

No entanto, por ser um processo que estava “num período de intensificação profunda da luta de classes e de ascenso geral” (Ernesto Gonzalez, Onde vai o Chile?), ao contrário das frentes ou movimentos nacionalistas burgueses clássicos, não foi a burguesia que assumiu claramente a liderança, mas foram os partidos operários e de esquerda que desempenharam um papel de direção. Isso lhe dava características semelhantes às “frentes populares”, governos burgueses surgidos na Europa na década de 1930, nos países imperialistas, analisados por Trotsky como “a penúltima trincheira contra a revolução socialista”. Estas características frentepopulistas e kerenskistas (semelhante ao governo de Alexander Kerensky na Rússia em 1917, antes da Revolução de Outubro) foram acentuadas com a radicalização do processo chileno.

Desta caracterização – um governo nacionalista burguês – a linha política central para os trotskistas é clara: por ser um governo burguês, não poderia ser dado nenhum apoio e, desde o início, devia-se fazer oposição de esquerda a ele. Mas, para desenvolver táticas específicas desta linha central, era necessário levar em conta duas contradições muito profundas que ocorreram na realidade e na consciência das massas.

A primeira é que, apesar de ser um governo burguês, os trabalhadores e as massas consideravam-no “seu” governo. Por isso, em muitos casos, por um período inteiro e enquanto as massas fizessem sua experiência, a tática para chamar a mobilização de massa devia ser formulada na forma de “exigências” ao governo (que expropriasse as indústrias que desabastecessem, que se aplicasse uma reforma muito mais radical, que punisse aqueles que preparavam o golpe militar, que armasse os trabalhadores para se defender, etc.). Era claro que essa tática tinha o objetivo de melhor promover a mobilização independente das massas, para acelerar sua experiência com o governo e quebrar seus apelos para a passividade e a disciplina (implementados, na base, com mão de ferro pelo PC). A segunda é que, apesar de também ser um governo burguês, que foi inicialmente “tolerado”, o imperialismo e grande parte da burguesia chilena não o consideravam como “seu” governo, atacavam-no e até mesmo prepararam um golpe. Isso exigia convocar mobilizações para defender as “medidas progressistas” – que foram atacadas bem como o próprio governo – frente ao golpe que estava sendo preparado.

Três anos de UP

Os quase três anos do governo da UP tiveram características diferentes. O primeiro ano (1971) foi, em grande medida, seu “período de glória”. Ele nacionalizou a mineração e os bancos, foram expropriadas várias empresas e se criou a “área social” da economia, a reforma agrária foi iniciada e, graças à capacidade produtiva ociosa e o aumento do consumo gerado pelo maior poder aquisitivo da população, o PIB cresceu 8%, com inflação baixa. Nas eleições municipais, os candidatos da UP conseguiram quase 50% dos votos. Parecia que a “via pacífica ao socialismo” era possível. No entanto, já começam a se manifestar alguns problemas: o déficit fiscal passou de 3,5% para 9,8% do PIB, as exportações caíram e a balança comercial tornou-se deficitária. Além disso, os primeiros sinais de escassez de produtos básicos, como açúcar, também começaram.

O segundo (1972) é um ano de transição. A DC começa a aproximar-se do PN e a endurecer sua posição contra o governo. A extrema-direita começa a formar os grupos armados Pátria e Liberdade para resistir à expropriação e à reforma agrária e para atacar as manifestações. Acentua-se a escassez e, em outubro, os proprietários de caminhões lançam uma paralisação que se transforma num verdadeiro locaute patronal de todo o país, com clara dinâmica golpista, que finalmente é quebrado pelos trabalhadores e pela mobilização popular.

Em 1973, a patronal, a direita e o imperialismo jogam-se abertamente na preparação do golpe. Como parte dessa preparação, realiza-se um trabalho intenso sobre os oficiais, a suboficialidade e a base das forças armadas para ganhá-los para seu campo. O levantamento de um regimento de blindados de Santiago, conhecido como o “tancazo” foi, nesse sentido, um ensaio do golpe de 11 de setembro.

A classe operária …

À medida em que a situação ficava polarizada, as mobilizações cresciam e a classe operária e o povo radicalizavam seus métodos. Enormes manifestações foram feitas (em Santiago, chegaram a reunir-se um milhão de pessoas), quebrou-se o locaute patronal de outubro de 1972 assumindo-se o controle das principais fábricas e canteiros de obras, as fábricas e bairros foram defendidas com armas (inclusive com a fabricação de armas caseiras) e foram criados embriões de duplo poder, como os cordões industriais (o mais importante deles, o Vicuña Mackenna, coordenando 350 empresas nos subúrbios de Santiago), sargentos e marinheiros de Valparaíso e Concepción denunciaram a ação dos golpistas e pediram apoio ao governo e seus partidos para combatê-los.

Por outro lado, frente a esta situação, em vez de incentivar a mobilização e a luta contra a burguesia e a direita, o governo da UP e os partidos da coalizão rumavam cada vez mais para a direita. Eles buscaram um acordo com a DC e para este fim, pararam a reforma agrária e a expropriação de empresas (inclusive defendiam devolver algumas já expropriadas). Basicamente, frente ao golpe que estava chegando, incluíram militares no gabinete (como os generais Pinochet e Urbina, que iriam desempenhar um papel chave no golpe), pediram “calma” para “aguardar instruções” e para confiar nas Forças Armadas golpistas.

Pinochet e Allende: golpistas dentro do governo

Mas se a classe trabalhadora e o povo do Chile aumentaram seu nível de mobilização e radicalizaram suas ações não conseguiram dar o passo para quebrar e vencer o governo e suas direções. Podemos dizer que iam nessa direção e que o melhor da vanguarda começava a tirar conclusões nesse caminho. Neste sentido, é instrutiva a entrevista de Cruces Armando, jovem operário, Presidente do cordão industrial de Vicuña Mackenna e militante da esquerda do Partido Socialista (publicada em Avanzada Socialista 72, em agosto de 1973, reproduzida no artigo “O fim da via pacífica”). Mas esse processo foi interrompido pelo golpe de Pinochet.

… E suas direções

Por não chegar a romper, a classe operária e o povo chileno ficaram atados à política de suas direções e estas os conduziram a uma terrível derrota. Este aspecto, a política de suas direções, é fundamental para compreender a tragédia chilena e a terrível derrota de 11 de setembro.

A principal responsabilidade foi do Partido Comunista, por ser a organização mais forte, mais organizada e disciplinada, e por controlar o aparato burocrático da central operária (CUT). Ele defendeu o governo e sua política de “calma” e confiança nas Forças Armadas até o fim. Neste sentido, é essencial ler a entrevista com seu secretário-geral, Luis Corvalán, reproduzida no artigo “O fim da via pacífica”. Com esta política, procurou sufocar e controlar com mão de ferro a mobilização independente das massas e, essencialmente, isolar o desenvolvimento dos cordões industriais e transformá-los em corpos secundários, disciplinados à CUT.

A Esquerda Socialista, embora tivesse posições mais críticas, e fosse composta de muitos dos melhores elementos da vanguarda, como o já citado Cruces, nunca atuou como uma alternativa real nem se construiu uma organização de combate, capaz de disputar a direção. Desta forma, acabou sendo apenas uma “válvula de escape” para conter muitos lutadores honestos.

O MIR, entretanto, como já dissemos, passou de uma política ultraesquerdista e sectária à capitulação, de fato, ao governo (a guarda pessoal de Allende, que o acompanhava no dia do golpe, estava integrada por militantes do MIR). É verdade que organizou ações e protestos independentes que lhe rendeu um forte peso em Concepción. Mas, além da ambiguidade geral da política, cometeu dois erros graves em questões fundamentais. Frente aos cordões industriais (os embriões reais de poder dual existentes) propôs a construção de “corpos fantasmas”: as coordenações regionais. E assim terminou por coincidir com o PC na sua política de restringir o desenvolvimento dos cordões e de submetê-los à CUT. Em relação ao golpe que se avizinhava, desenvolveu uma miniguerra de aparatos com Patria y Libertad. Mas, frente ao relato de suboficiais e marinheiros de Valparaíso e Concepción, manteve o mesmo silêncio que o governo e os partidos da UP. Assim, permitiu que eles fossem presos e torturados e matou no berço a possibilidade de desenvolvimento de um embrião de poder dual e de divisão nas Forças Armadas.

O que faltou no Chile?

O que fez falta no Chile para que um grande processo de ascenso e mobilização das massas avançasse até uma revolução socialista? A resposta, em si, é simples: Faltou um partido revolucionário que defendesse um programa de transição para que a mobilização de massas avançasse desde a luta por suas reivindicações mais sentidas até a tomada do poder pela classe operária e o povo. Um programa que fosse implementado para cada situação e circunstâncias do processo, como fizeram os bolcheviques de Lênin e Trotsky na Rússia, entre fevereiro e outubro de 1917.

Os eixos do programa foram esboçados em diversas publicações do PST argentino e defendidos por um punhado de militantes morenistas no Chile: impulso à mobilização autodeterminada das massas, independente do governo, começando por suas necessidades básicas e as contradições de sua consciência; uma política de exigências à CUT e aos partidos de esquerda, promoção e desenvolvimento do poder dual existente, os cordões industriais; contra golpe: armamento operário para enfrentar a reação e trabalhar na base e na suboficialidade das Forças Armadas para dividi-la.

Mas este programa e orientação não passavam de propaganda, à medida que não havia um partido revolucionário que pudesse aplicá-los. Postulava-se construir este partido revolucionário, com o potencial de influenciar a realidade, à medida em que avançavam as rupturas dos melhores setores das organizações de esquerda de massas.

E aqui surge outra conclusão muito importante do processo chileno: na grande maioria dos casos, os processos revolucionários não dão o tempo suficiente para se construir esse partido, para que amadureçam as condições que o façam surgir com peso e que impeça as antigas direções de manter seu controle. É o que ensina todo o processo histórico e muitas derrotas. Por isso, é necessário iniciar antes as bases de sua construção para que, quando o processo revolucionário explodir, haja um embrião sólido desse partido. Em fevereiro de 1917, os bolcheviques eram uma minoria em comparação com as correntes da esquerda reformista (mecheviques e SR). Mas já havia alguns milhares de quadros organizados e educados que foram capazes de lutar e ganhar a direção. Sem essa organização, muito possivelmente, não teria havido a Revolução Russa. Essa é a tarefa à qual está empenhada hoje a LIT-QI: a construção desses embriões de partidos revolucionários em cada país para evitar a repetição de novas tragédias como a do Chile.