“-Moço, eu vim direto do serviço. Só quero comer um Mac (McDonald’s).
-Se eu soubesse que hoje era dia de rolezinho eu tinha vindo mais arrumadinha!
-Eu também!
-E agora, como é que nóis entra?
-Vão pro shopping do Tatuapé.
-Hahaha, moço, eu moro longe e eu vim pro shopping de I-T-A-Q-U-E-R-A.”

O adolescente que pretendia passear no Shopping de Itaquera, Zona Leste da capital paulista, se decepcionou ao descobrir que estava proibida a entrada de menores de idade desacompanhados dos pais no dia 5 de dezembro. O motivo era impedir que o rolezinho marcado pelo Facebook acontecesse.

O shopping, que compartilha seu espaço com as linhas Corinthians-Itaquera do Metrô e da CPTM, organizou um forte esquema de segurança, cobrindo todas as entradas secundárias e obstruindo a passagem desde a plataforma próxima ao metrô.

 

A medida era explicitamente discriminatória desde a abordagem: ao invés de solicitar documentos a todos que desejassem entrar no estabelecimento, os seguranças barravam principalmente dois perfis: garotos negros de tênis, bermuda e boné da moda e garotas negras de shortinhos jeans e tops coloridos.

A aleatoriedade do procedimento levou pessoas visivelmente maiores de idade, mas sem documentos, a serem proibidas de entrarem no local. Ainda mais grave, apesar de provar sua idade mostrando o RG, um rapaz teve seu acesso ao shopping negado, pois o segurança alegou que se tratava de um documento falsificado. “Sem maldade, deixa eu entrar aí, quero comer um Mac”, pediu o rapaz com o documento na mão. Esse caso mostra o real objetivo da operação: barrar que jovens periféricos, em sua enorme maioria negros, pudessem atrapalhar as vendas de fim de ano em meio à crise econômica atual.

Os jovens barrados se amontoavam nas portas pedindo que, ao menos, os seguranças fossem comprar seus lanches, que eles pagariam e comeriam lá fora. “É, isso aí! E não esquece de passar no Bob’s, hein?”.

Curiosamente, são esses jovens indesejados pelo estabelecimento os seus melhores consumidores. A Revista Exame revelou esse ano que o McDonald’s do Shopping de Itaquera é uma das 10 lojas da rede que mais faturam em todo mundo. São 6.000 clientes atendidos por dia, sendo necessário repor os produtos diariamente – em média, o McDonald’s renova seus estoques três vezes por semana. Apenas em 2009, dois anos após a abertura do shopping, a loja atendeu 2,3 milhões de clientes, encerrando dezembro com um faturamento de 8,7 milhões de dólares, como mostrou a reportagem do Estadão. Não por acaso, o McDonald’s está construindo uma loja própria no estacionamento do shopping.

Apesar das dificuldades, alguns jovens conseguiram entrar; seja por provarem sua maioridade ou por serem zica e terem burlado a segurança. O que se viu no interior do shopping não era muito diferente do que gerações anteriores faziam nas pracinhas: circular pelos corredores, com a intenção de ver e ser visto, tomar um sorvete, comer um Mac e, com sorte, ficar com alguém. A atitude dos jovens era compatível com o que advertia o evento do rolezinho no Facebook: se divertir sem violência ou depredação. Diante dos fatos só nos resta perguntar: quem tem medo de rolezinho no Shopping de Itaquera?

“Claro que é São Paulo, capital das nota de cem”
Aqueles que criticam a escolha dos jovens por um passeio no shopping ao invés de um parque ou uma biblioteca, ignoram uma somatória de fatores muito importantes. Moradores da cidade mais rica da América Latina, essa garotada se torna turista em sua própria cidade ao se depararem com os redutos distintos, com arquitetura de primeiro mundo, onde a elite paulistana transita.

Esses lugares são muito diferentes da cidade que cruzam todos os dias entre o trabalho e o bairro distante. Se o capitalismo se sustenta criando sonhos de consumo, como podemos reclamar quando o objetivo é alcançado e o jovem trabalhador descobre o que é uma Hornet, um Juliet ou uma Louis Vitton? Com o aumento do acesso ao crédito, aproveitando uma boa fase econômica, os mais de dez anos do governo petista enfatizaram que consumir garante a inclusão. Desse modo, o surgimento do funk ostentação em São Paulo durante esse período não é mera coincidência. “São Paulo é ostentação/o dele é lata, o meu é ouro/O que eles têm, nóis tem em dobro”.

Assim, esses jovens passam a consumir marcas que se envergonham deles e desejam frequentar lugares que, supostamente, não deveriam. Incomodada com os novos frequentadores, cujo dinheiro é muito bem-vindo, mas as presenças são intoleráveis, a burguesia paulistana tenta disfarçar o seu racismo e preconceito de classe com questões de segurança.      

“Depois que gastei 10 mil, perguntaram quem eu sou”
Shoppings centers se propõem a serem espaços de livre circulação e aberto ao grande público. Passear em um shopping é um dos poucos divertimentos que um jovem pode ter sem ser obrigado a pagar, caso nada consuma. Portanto, negar a entrada de alguém de determinado perfil para evitar que “tumultos” aconteçam é discriminação. E, nesse caso, trata-se de um duplo preconceito: o de raça e o de classe; pois, apesar de que jovens brancos periféricos também tenham sido impedidos de entrar no shopping, esse era muito mais um resultado do calor do momento e da arbitrariedade do procedimento, do que da crença de que fossem suspeitos (e suspeitos de quê?).

Que os ricos se apavorem com rolezinhos em seus espaços, não é de causar espanto. Curioso é tornar-se suspeito em seu próprio bairro. O grande capital precisaria rever como trata seu público mais fiel e recebê-los com tapete vermelho na porta, e não com seguranças da G4S, uma grande companhia britânica de segurança com muito sangue nas mãos.

Em 2008, o líder aborígene australiano Mr Ward morreu dentro de um camburão da G4S; como o ar-condicionado dessa parte do veículo estava quebrado, a alta temperatura fez com que a placa de metal sobre a qual estava deitado queimasse seu estômago. Em 2010, sob custódia da empresa, o imigrante angolano Jimmy Mubenga foi morto por asfixia durante seu processo de deportação do Reino Unido. Além disso, a companhia britânica fornece equipamentos de segurança para os checkpoints do Muro do Apartheid na Cisjordânia e para as prisões israelenses, onde prisioneiros políticos palestinos são presos sem julgamento e sofrem torturas. No Brasil, a G4S é responsável pela segurança de bancos públicos como a Caixa e o Banco do Brasil, da Embraer, Petrobrás e de duas linhas da CPTM.

O que talvez muitos não saibam é que o Shopping de Itaquera é pura ostentação: lojas que nas décadas passadas só existiriam do Tatuapé para lá, encontram seu público aqui. Basta conversar com vendedores das grifes para descobrir que há listas de clientes que gastam até 3 mil reais em uma visita – o mesmo preço de uma câmera profissional do quiosque da Cannon. Fica evidente que essa juventude, cuja educação foi negligenciada tanto pelos governos do PSDB quanto do PT, e hoje se encontram em postos de trabalho precarizados, deixa seu salário de meses no shopping acreditando na inclusão e ascensão social pelo consumo, e de que permanecerão empregados para honrarem as prestações. Porém, os tempos mudaram, as promessas apagaram, e, se antes o brilho de um novo Galaxy parecia lanterna, hoje ele não alumia o futuro nebuloso.

Do Tatuapé pra cá: ser jovem do fundão da Zona Leste
Há vinte anos, tanto o shopping quanto o metrô existiam apenas nas palavras dos corretores de imóveis que não nos vendiam terrenos, mas o progresso. Tudo demorou e doeu para chegar aqui: água, luz, telefone, asfalto, fazendo com que a paisagem ficasse irreconhecível. Dentre todos os desafios de ser daqui um é especial: o estigma. Ser da extrema zona leste é sinônimo de ser cafona, maloqueiro, pobre, pois uma linha social imaginária sobre o Tatuapé divide a região entre a Zona Leste e a “zona lost”. Para a nossa própria classe, estamos perdidos. Resolver esse problema implica em escolher entre ficar e partir; as duas opções são complicadas.

O problema, portanto, não é a falta de compreensão desses jovens sobre qual é o seu lugar, mas que suas presenças são inconvenientes em todos eles. Seja no bairro de luxo, no shopping da quebrada ou até em sua própria escola, como o projeto de reorganização escolar de Alckmin quis mostrar. A única resposta satisfatória é a que foi apresentada pelos estudantes secundaristas paulistas: ocupar e resistir. Se a classe trabalhadora tudo produz, a ela tudo pertence.