“O cheiro do ralo” exala capitalismo decadente

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Yara Fernandes Souza, da redação

O cheiro do ralo chega aos cinemas para entorpecer, incomodar, trazer risos nervosos aos espectadores. O filme, baseado no primeiro romance do quadrinista brasileiro Lourenço Mutarelli, é dirigido por Heitor Dhalia (Nina, 2004). Em 2006, O cheiro do ralo foi escolhido como o melhor filme da 30ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo. Foi a segunda vez que um filme brasileiro foi eleito o melhor pelo júri (a primeira foi com Cinema, Aspirinas e Urubus, de Marcelo Gomes, em 2005).

Dos R$ 2,5 milhões originalmente orçados, o filme foi feito com R$ 315 mil. Também contou com a atuação voluntária de Selton Mello e com inúmeros objetos de cena de segunda mão e emprestados.

Nas grandes telas, o espectador assiste a um grande personagem, muito bem construído e interpretado por Selton. Lourenço compra e vende objetos usados. Como ele mesmo explica, é preciso oferecer um preço bem baixo pelas coisas para obter lucro neste negócio. Como quem recorre a ele geralmente está em situação de desespero financeiro, tal tarefa não é muito difícil. Ocorre que nosso personagem principal se diverte e se satisfaz com o desespero alheio e em humilhar ainda mais essas pessoas. E, como um colecionador bizarro, Lourenço exerce e sacia seu poder comprando as pessoas, seja metaforicamente, através de seus objetos, seja literalmente.

O cheiro, que dá nome ao livro e ao filme, vem do banheirinho da sala de Lourenço. Ele faz questão de explicar o problema do encanamento para todos os clientes, temendo que eles concluam que o odor exala dele próprio. Com o tempo, a sede de poder do personagem faz nele surgir diversas obsessões. Uma delas é a bunda da garçonete, que ele deseja e idolatra como objeto, pretendendo inclusive pagar por ele. Outra das idéias fixas desenvolvidas por ele é remontar ou resgatar a imagem de um pai que ele nunca conheceu. Ele compra um olho de vidro e passa a tê-lo como amuleto, contando a todos que se trata do olho de seu pai. Na mente doentia deste personagem, tudo está relacionado ao cheiro que vem do ralo do banheirinho.

O Cheiro escrito
No livro de Mutarelli, publicado pela editora Devir, os personagens, incluindo o protagonista, não têm nomes, o que reforça a idéia de “coisificação” das pessoas que negociam com ele. E na transposição desta figura para as telas não ocorre apenas o acréscimo do nome (no filme, o personagem é batizado com o nome de seu criador). No livro, ele se parece com o “cara da propaganda do Bombril”, imagem mais próxima do físico do próprio Mutarelli do que de Selton Mello. Entretanto, é difícil acreditar que outro ator, ainda que fosse o próprio Carlos Moreno (o garoto Bombril), pudesse encarnar Lourenço com tamanha habilidade.

E, apesar da semelhança física, o malvado negociante de O cheiro do ralo pouco se assemelha ao garoto propaganda, que transmite um inevitável sorriso de alegria e uma confiança inabalável que fez o personagem da Bombril sobreviver tantos anos no posto.

No livro, os pensamentos do personagem principal também estão melhor descritos. Uma das reflexões sádicas dele expõe a alegria e prazer com que ele se recusa a comprar algo bem grande e pesado, principalmente se quem oferece veio de muito longe e de ônibus.

A obra é escrita num formato dinâmico, com frases curtas, episódios ou cenas breves, algo muito semelhante à narrativa de um blog. A linguagem mais leve e direta se deve provavelmente à familiaridade com os quadrinhos, linguagem prioritária do autor. Nas telas do cinema, muitas das frases do livro estão praticamente intocadas.

Cheiro invade salas de cinema
Nas grandes telas, Lourenço é a personificação de um capitalismo decadente, que se sacia ao explorar, sugar e humilhar as figuras sem nome, ícones representativos do povo pobre. Lá estão todos eles, os desempregados urbanos, o homem do campo, o imigrante, a jovem viciada, o músico que vende seu instrumento, o homem de idade, que o mercado de trabalho já não quer e que Lourenço também não “vai com a cara”. A principal dessas figuras exploradas talvez seja a garçonete subempregada e explorada, que, além disso, é para o protagonista a mulher como objeto sexual, que ele quer comprar.

Vale destacar que um dos personagens, o segurança de Lourenço, que ajuda a selecionar os vendedores e só se veste de vermelho, é vivido pelo próprio Mutarelli.

Lourenço não quer saber das histórias que essas pessoas têm para contar sobre seus objetos, não quer saber quem são e porque precisam de dinheiro. Ele as coleciona e sente prazer em humilhá-las. Ao mesmo tempo, ao acumular objetos e dinheiro, ele se torna vazio, não gosta de ninguém e ninguém gosta dele.

A sala de Lourenço, as ruas cinzentas e com muralhas ásperas pelas quais ele anda ou a indigesta lanchonete em que ele almoça trazem o mesmo ar decadente do personagem e de seu ralo.

Apesar de estar centrado neste personagem frio e sádico, o filme cria situações cômicas, leva o público às risadas, um riso muitas vezes nervoso ou incômodo.

O ralo pútrido e entupido não é só uma das malucas obsessões de Lourenço. É uma metáfora da vida deste personagem e do próprio sistema capitalista. E, como explica o encanador no filme e no livro, para acabar o fedor e desentupir o cano, não adianta jogar cimento ou tomar qualquer medida paliativa (na verdade isso só faz piorar), tem que quebrar tudo.