Carta de divulgação do filme
Divulgação

O filme Batismo de Sangue, do diretor mineiro Helvécio Ratton, baseado na obra homônima de Frei Beto, estreou no fim-de-semana passado. A obra é, antes de tudo, um grito contra o esquecimento e a mentira aberta ou velada que impera sobre os anos da ditadura.

É essencialmente por isso que o filme gerou tantos comentários desabonadores.

O jornal Folha de S. Paulo, por exemplo, diz que Ratton optou pelo caminho fácil “e redundante, o do embate entre os freis e os torturadores, incluindo o infame delegado Fleury”, quando, na opinião da mesma, o correto seria explorar “o conflito interno de freis educados para pregar a paz, mas dispostos a apoiar a guerrilha”.

A revista Veja diz que o filme “esbarra, contudo, nos clichês, nos estereótipos (vide o delegado Fleury na atuação de Cássio Gabus Mendes), nas frases de efeito e no panfletarismo”.

Essas são apenas as opiniões mais açucaradas de uma visão pró-ditadura do tema. A Usina de Letra, em seu site, publica uma matéria que diz que “o Brasil inteiro será bombardeado por mais uma mentira, ou seja, de que aquele grupo de angélicos frades dominicanos de São Paulo combateu a ditadura militar, quando na verdade eles queriam implantar aqui uma muito pior, copiada de Cuba”.

O que nenhum desses órgãos de comunicação burgueses tem coragem de dizer é que, para eles, ambos os lados estavam igualmente errados e que, portanto, no fim das contas foi bom que, apesar de tudo, venceram os militares.

Ratton opta por outro caminho. Fiel ao livro de Betto, o diretor faz um filme que mostra que sim, houve violência dos dois lados, mas que elas não eram iguais. Corretamente, Ratton fica ao lado da violência do oprimido contra a violência do opressor.

Numa comparação feliz a Agência Reuteres diz que “exibindo cenas de tortura com uma franqueza que o cinema nacional não registrava há muito tempo, como aconteceu em filmes como Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia (1977), de Hector Babenco, e Pra Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, Batismo de Sangue aborda um período que começa em 1968, quando um grupo de jovens frades dominicanos aderiu à luta armada”. Essa foi, sem dúvida, a opinião mais justa sobre o aspecto central da polêmica desenvolvida na imprensa nacional. Ela captou do filme a franqueza que outros órgãos não quiseram ou não souberam ver e, corretamente, o compara com outros dois filmes que mostraram a realidade nua e crua das prisões desse país.

Tortura nua e crua
Uma das seqüências mais criticadas do filme é quando os dominicanos aparecem sendo brutalmente torturados pela polícia política. Para a Folha de S. Paulo, “Ratton prefere deixar de lado o poder de sugestão do cinema e investir em um naturalismo sensacionalista”. Essa é obviamente a opinião de quem, sem entrar no fogo, quer discutir qual a melhor maneira de se queimar.

Não são as cenas do filme de Ratton que deveriam causar repulsa ao tão asséptico jornal. Deveria lhe causar asco o fato de que houve, e ainda há, tortura no Brasil, de que uma parcela da população brasileira, entre eles a atual massa carcerária, passou e pode passar a qualquer momento pelo terror horripilante e indescritível de serem vítimas da sanha de homens como Fleury e a fauna que o cercou durante os anos terríveis da ditadura Militar.

O filme, com uma crueza digna de nota, recoloca o debate sobre a tortura, os torturados e os torturadores. Numa cena do filme que aparentemente passou despercebida aos críticos partidários da leveza e da beleza sem máculas, Fleury conversa com o Presidente da República para informar-lhe da morte de Marighella. Ora, Fleury podia até ser um sádico, um louco ou o que se queira, mas não torturava por esses motivos: torturava por um governo e por um regime.

Aliás, hoje, nas campanhas cada vez mais devastadoras (para as quais toda a grande imprensa faz eco) contra os direitos humanos para os que violam a lei, se pode notar os resquícios do apoio irrestrito que Fleury e seu circo de horrores gozou nos palácios e nos círculos limpos da alta sociedade brasileira.

O que esses senhores não suportam não é a tortura, seja ela praticada contra militantes de esquerda ou contra os marginais criados por eles mesmos, mas é o fato dessas imagens escaparem dos porões e salas escuras das delegacias do país, de ontem e de hoje, e entrarem em seu mundo de “faz-de-conta”.

Os senhores da imprensa nacional preferiam que o filme “explorasse o conflito interno de freis educados para pregar a paz, mas dispostos a apoiar a guerrilha”, ou seja, seria melhor que o filme discutisse as contradições reais ou imaginárias no campo dos que lutavam contra a ditadura ao invés de denunciar cruamente como essa ditadura se impôs.

Retirar da maldição e do silêncio
Outro aspecto do filme que merece ser destacado é o de reabilitar aqueles que têm sido esquecidos pela historiografia oficial (e oficiosa) do Brasil.

Ao recontar a história do assassinato de Marighela, militante do PCB, um de seus principais quadros que rompe com a orientação geral desse partido para organizar a resistência armada à ditadura, Ratton dá a esse personagem o direito que já tinha conquistado: o de ser lembrado pelo sacrifício que fez.

Apesar do heroísmo presente na ação guerrilheira, a estratégia se demonstrou um grande equívoco. A guerrilha, implementada logo após, estava alheia ao movimento das massas de trabalhadores. Negava, portanto, a luta política dentro das organizações de massa – como os sindicatos – para apostar numa aventura que, literalmente, sacrificou seus militantes: uma geração inteira de quadros da vanguarda se viu presa, torturada. Nesse processo, muitos mortos foram contabilizados.

É bem verdade, também, que alguns daqueles que corajosamente arriscaram sua juventude por ideais tão nobres, sujaram sua biografia quando por outras vias, com outros aliados e defendendo outras idéias, chegaram aos palácios do governo. Não podemos, no entanto, julgar os que morreram, certos ou errados, por seus pares transviados que continuaram vivos.

Uma época para ser lembrada
Os vinte longos anos de ditadura militar brasileira devem ser constantemente lembrados em todos os seus aspectos. Esquecer que houve tortura, que houve silêncio forçado, que houve perseguição política, esquecer, enfim, que a ditadura não foi uma insanidade, mas uma política de poder, significa nos desarmar para algo que pode acontecer de novo. É fazer o jogo do governo Lula que se recusa enfrentar os militares a abrir os arquivos da ditadura.

Ratton corajosamente recoloca o problema. Vejamos como poderemos seguir a debatê-lo.

SINOPSE:
Durante a ditadura militar no Brasil, os frades dominicanos resistem ao regime. Os freis Tito, Betto, Oswaldo, Fernando e Ivo apoiam o grupo guerrilheiro “Ação Libertadora Nacional”, dirigido por Carlos Marighella, quando sao presos e torturados pelo Dops. O filme se passa na cidade de São Paulo, na década de 1960.

FICHA TÉCNICA:
Título Original: Batismo de Sangue
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 110 minutos
Ano de Lançamento: 2007 (Brasil/França)
Direção: Helvécio Ratton
Roteiro: Dani Patarra e Helvécio Ratton
Produção: Helvécio Ratton
Edição: Mair Tavares
Música: Marco Antônio Guimarães
Fotografia: Lauro Escorel
Direção de Arte: Adrian Cooper
Elenco: Caio Blat (Frei Tito), Daniel de Oliveira (Frei Betto), Cássio Gabus Mendes (Delegado Fleury), Ângelo Antônio (Frei Oswaldo), Léo Quintão (Frei Fernando), Odilon Esteves (Frei Ivo), Marcélia Cartaxo (Nildes), Marku Ribas (Carlos Marighella), Murilo Grossi (Policial Raul Careca), Renato Parara (Policial Pudim), Jorge Emil (Prior dos dominicanos)