Clarir Zahanassian, interpretada por Denise Fraga. FOTO: Caca Bernardes/Divulgação

Qual o limite entre a justiça e a vingança?  Ou quanto nossa moral é condicionada por nossas condições de existência? Quão elástica ela é? Essas são algumas das questões tratadas na peça A visita da velha senhora, que estreou ontem (18) no Teatro Sesi, em São Paulo.

A peça conta a história dos cidadãos de Güllen, uma cidade afundada há décadas em crise econômica, que recebe a visita de uma bilionária prometendo tirá-los da recessão. Entretanto, Clarie Zahanassian (interpretada por Denise Fraga) impõe uma condição para sua doação. Em troca, ela exige que Alfred Krank (Tuca Andrada), um estimado e popular cidadão, seja morto. Clarie e Alfred foram namorados durante a juventude e ele a abandonou durante a gravidez. A cidade fica então sabendo que Krank pagou falsários para que depusessem contra Clarie e ele não precisasse assumir a paternidade.

A partir de então, a tragicomédia assume uma escalada de eventos cotidianos que exploram a superficialidade e a fragilidade moral da condição humana.  Todos admitem que a doação salvaria a cidade. Pouco a pouco, nos pequenos gestos, Alfred percebe que os seus concidadãos vão naturalizando a ideia da doação, passando a viver como se ela fosse certa. Um sapato novo, um cigarro importado, um sino novo para igreja… Mas quem assumiria o ônus de dar cabo à vida de Alfred Krank? E a pequena Güllen, aceitando a oferta, estaria sucumbindo à sua própria ganância, atendendo a um pedido de vingança ou fazendo justiça?

O mundo fez de mim uma puta, agora faço dele um puteiro. Quem não puder pagar, tem que aguentar […] Güllen por um crime, o progresso por um cadáver!, exclama Clarie, em um acesso de fúria.

FOTO: Cacá Bernardes/Divulgação

Aproximações com Brecht

A peça foi escrita pelo dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) em 1956 e já teve algumas encenações no Brasil. Uma delas, inclusive, pelo Teatro Cacilda Becker. Dürrenmatt se aproxima do tetro de Bertold Brecht na medida em que busca envolver o público em um debate maior, e não apenas em oferecer entretenimento. Mas se Brecht buscava fazer de seu teatro uma alavanca para a política, Dürrenmatt o faz para a filosofia.

Em A visita da velha senhora, através do cômico e da ironia, o enredo procura desconstruir a naturalidade do estado de coisas, revelando uma justiça não apenas como valor moral, mas também como instituição de poder. E assim sendo, suscetível e determinada por suas condições de existência, por sua historicidade. A moral dos cidadãos de Güllen era inabalável até que a oferta de doação fosse feita.  A partir dela, passa-se a cogitar uma exceção, uma certa elasticidade de sua rigidez. Ou seja, diante de uma determinada condição, a moral da pequena cidade passa a admitir um assassinato sem que isso ponha abaixo a própria moral. E o mesmo vale para todas as outra instituições, encarnadas nos personagens do professor, do médico, da família, do prefeito, do padre etc.

A moral é uma vara que se pode envergar, admitindo exceções. Mas quais casos serão admitidos como exceções e quais não? Até onde se pode torcê-la sem que se quebre? Dürrenmatt não oferece uma resposta, apenas abre o debate.

Denise Fraga em Galileu Gallilei, 2015

A aproximação com Brecht se dá também pelas últimas duas peças estreadas por Denise Fraga: A alma boa de Setsuan (2010) e Galileu Galilei (2015), ambas peças do dramaturgo alemão. A primeira trata da dificuldade de se bondoso em um mundo competitivo, e a segunda conta a história do pensador italiano e a dificuldade de se manter os ideais diante do poder político e econômico. “É quase uma trilogia”, brincou Denise Fraga em uma entrevista, se referindo ao paralelo temático entre as três peças.

Entretanto, para quem assistiu recentemente Galileu Galilei, talvez a peça não tenha todo o brilhantismo e a densidade de Brecht. Talvez por se tratar de uma peça biográfica. Já Dürrenmatt, opta por trabalhar com a ironia sutil e a superficialidade dos personagens, talvez mesmo com o intuito de retratar a pobreza da condição humana, ou o quão rasa e corruptível é nossa ética diante do poder do dinheiro. Um tema bastante atual para um Brasil em tempos de Lava Jato, grampos e delações premiadas.

E para completar a ironia, a peça está sendo apresentada gratuitamente no prédio da FIESP.

A peça tem direção de Luiz Villaça e tem no seu elenco atores como Ary França, Romis Ferreira, Eduardo Estrela e Fábio Heford. Fica em cartaz até 26 de novembro, de quinta a domingo, às 20:00, e a entrada é gratuita. É preciso reservar ingressos no site do Teatro Sesi, mas há a possibilidade de se conseguir na hora caso haja lugares remanescentes. O Teatro fica na Avenida Paulista nº 1313, Jardins.