Foto Iphan
Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação do PSTU

A Unesco declarou o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro (RJ), um Patrimônio da Humanidade. É o mais importante vestígio material, fora da África, do tráfico negreiro. E, para quem me conhece…. Lá vem História!

Isso é algo que, certamente, tem de ser celebrado, pois vai pode significar (não obrigatoriamente, dado o descaso que envolve tudo que tem a ver com os patrimônios históricos, artísticos e culturais) a preservação do local.

Contudo, é também uma daquelas histórias cercadas das contradições e exemplar do racismo e de tudo que diz respeito a negros e negras no Brasil. Uma história que, inclusive, fica evidente na matéria publicada pela Folha de S. Paulo. O artigo começa dizendo que o local é um marco da “herança africana no Brasil”, quando, na verdade, de acordo com os próprios critérios da Unesco, Valongo é um patrimônio da humanidade exatamente por ser um registro de ações criminosas da humanidade e um local de memória e sofrimento. Isso o coloca na mesma categoria de patrimônios tombados como o campo de concentração de Auschwitz e a cidade de Hiroshima.

Mas o ato falho do jornalista está longe de ser a pior contradição nessa história. O cais foi oficialmente fechado em 1831 como reflexo de uma lei que proibia o tráfico negreiro para o Brasil. Uma resolução que foi adotada devido à pressão do Império Britânico (motivado pelos seus interesses com o avanço da Revolução Industrial, substituição da mão de obra escrava pela assalariada etc.) e era tão hipócrita que deu origem a uma das expressões mais populares entre nós: “lei para inglês ver”.

Como sabemos, o tráfico correu solto até o final dos anos 1800, mas o Cais do Valongo só foi aterrado em 1911 como parte das reformas feitas pelo prefeito Pereira Passos, em 1902. Essas, por sua vez, ganharam o apelido popular de “Bota Abaixo” e foram um marco da higienização (racista como todas) do Rio de Janeiro.

Centenas de casas foram demolidas, milhares de pobres e negros que moravam na região portuária (conhecida como a “Pequena África”) foram deslocadas, o que, inclusive, deu origem ao processo de “afavelamento” da cidade.

A ideia era europeizar a capital federal e, evidentemente, as lembranças da escravidão tinham de ser deletadas. Assim, como Rui Barbosa havia queimado os documentos da escravidão (motivado, principalmente, pela intenção de impedir que os ex-senhores de escravos reclamassem por indenizações), o Cais foi apagado da História.

Não dá para esquecer que apagar essa história era visto como uma necessidade particularmente importante no momento em que conflitos que tinham um forte caráter étnico-racial estavam explodindo na cidade, como a Revolta da Vacina (1904) e, de forma muito especial e presente, a Revolta da Chibata (1910).

O capítulo mais recente da história do Cais do Valongo não é menos contraditório. Os vestígios foram redescobertos em 2011, junto com centenas de milhares de artefatos (correntes, peças de vestuário, adornos e materiais relacionados às culturas e religiões de nossos ancestrais e um longuíssimo etc.) quando estavam em curso as obras das malfadadas Olimpíadas.

Na época, o tradicional desleixo com o patrimônio histórico fez com que muita coisa se perdesse (ou fosse desviada para colecionadores). Por muitíssimo pouco, o Cais não foi literalmente detonado. De lá até o decreto assinado agora pela Unesco, há umas tantas outras histórias que merecem ser conhecidas. Para quem quiser, tem uma espécie de dossiê que foi publicado com artigos dos arqueólogos que trabalharam no local.

Para quem puder, recomendo ir ao local. Para muitos, aquilo é um ponto turístico. Para nós, negros e negras, evidentemente, é outra coisa completamente diferente.

Aquele local de sofrimento e dor é parte do nosso passado. Para além das correntes, ali também estão nossas raízes. Confesso que quando estive lá não deu para conter as lágrimas. Sentar naquele lugar e olhar para o mar, inevitavelmente, nos faz pensar no sofrimento inominável nos tumbeiros.

Mas também nos faz lembrar que foi ainda nos tumbeiros que nossos(as) ancestrais se fizeram malungos e malungas – uma gíria criada a partir de um termo da língua kigongo, da região da atual Angola e Reino do Congo, utilizada para designar aqueles e aquelas que se fizeram companheiros(as) na travessia do Atlântico.

Olhando para aquelas pedras e para o mar, duas coisas martelavam na minha cabeça com a intensidade dos tambores que sempre simbolizaram nossa reconexão com a Mãe África.

Primeiro, Solano Trindade dizendo: “Lá vem o navio negreiro / Com carga de resistência / Lá vem o navio negreiro / Cheinho de inteligência…”.

Ao mesmo tempo, a letra não censurada de “Mestre sala dos Mares”, que Aldir Blanc fez em homenagem a João Cândido, sempre me faz lembrar que o nosso patrimônio histórico raramente assume a forma de monumentos, prédios, bustos etc. Ele está gravado e cravado na luta (e, também, na dor):

(…) Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o Almirante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo…